A permanente acusação de antissemitismo como arma do Apartheid, por Bruno Beaklini

Artigo originalmente publicado no Monitor do Oriente Médio.


Recentemente escrevemos um artigo abordando as instituições centrais de apoio ao projeto colonial israelense. São elas a Organização Sionista Mundial, fundada em 1897; Fundo Nacional Judaico/JNF, fundado em 1901; Agência Colonial, fundada em 1929 e o Comitê de Relações Americano-Israelense. Existem outras estruturas permanentes que valem ser observadas com atenção. Uma delas, infelizmente, é a Liga Antidifamação (ADL na sigla em inglês, adl.org). Afirmo isso porque nem toda a atuação da ADL é passível de crítica, mas se trata de instrumento fundamental para legitimar o apartheid colonial israelense dentro do guarda chuva dos “direitos civis” e do liberalismo político do Partido Democrata dos Estados Unidos.


Fundada em 1913, nas suas primeiras décadas de existência, não estava diretamente vinculada ao sionismo e sim à defesa da comunidade judaica nos Estados Unidos. Considerando o ideal racista de “pureza” do país criado pelas treze colônias de peregrinos, puritanos e outras minorias professantes de um sionismo protestante, imigrantes eurojudeus eram muito mal vistos, em especial pela intensa e gloriosa participação no movimento socialista internacional desde os primórdios. Criada para proteger da calúnia, do estereótipo e da difamação vinda de grupos de mídia, políticos profissionais e aparelhos de Estado (como o manual do exército imperialista), a ADL teve relevante papel na luta em conjunto com a comunidade afro-americana e contra o extremismo da direita branca. Como a extrema-direita dos EUA é assumidamente antissemita, a Liga Antidifamação tem muito trabalho e adversários na política doméstica. “Curiosamente”, trata-se do mesmo campo de alianças para sustentar o projeto colonial de Israel, apoiado de forma incondicional pelo Tesouro da superpotência e seu complexo industrial-militar.


Propositadamente, a ADL “confunde” o antissemitismo proferido nos países ocidentalizados com a posição anti-imperialista de críticas ao Estado de Israel. Afirmam, de forma cínica, que as campanhas nos campus universitários contra os estrangeiros que ocupam a Palestina formam uma preocupação permanente, e colocam esse ato legítimo no mesmo potencial de ameaça que os comícios da Klu Klux Klan e outras agrupações semelhantes. O cinismo é do tamanho do financiamento militar do império para Israel. Se hoje a maior ameaça doméstica dentro dos EUA é o extremismo racista branco, o apoio incondicional deste setor à administração Trump, o papel nefasto de Jared Kushner, a mudança da embaixada do império para Al Quds ocupada e a escalada da tensão no Oriente Médio jamais incomodaram esta instituição.


A projeção internacional da Liga é ainda pior. Ao fazer um mapa global do antissemitismo, a instituição é cínica o bastante de acusar a povos semitas e camitas como sendo contra si mesmos. Seria uma espécie de inconsciente coletivo, caso de tratamento psiquiátrico em escala societária, ao afirmarem que 74% da população do Oriente Médio e do Norte da África professa alguma espécie de “antissemitismo”. Beira o absurdo, europeus e seus descendentes, coletividades étnico culturais convertidas ao judaísmo, denominarem de “antissemitas” a populações árabes, arabizadas ou que culturalmente se expressem na língua árabe; assim como países islamizados como Turquia e Irã. Segundo a ADL (https://bit.ly/2UY5LUW) cerca de dois terços da cidadania do Marrocos, Tunísia, Argélia, Líbia, Egito, Iêmen, Omã, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Arábia Saudita, Jordânia,  Palestina Ocupada, Líbano, Síria, Irã e Turquia manifestam alguma forma de odiar ou a si  mesmos ou a seus vizinhos milenares. Ainda segundo esta mesma instituição, dos 275.147.371 adultos destes países, ao menos 200 milhões estariam sob o alvo ou reproduziriam o “antissemitismo”. Tal afirmação seria apenas ridícula se não escondesse o fato, concreto, que o Estado Colonial de Israel, país inventado por potências imperiais, invasores europeus e anglo-saxões, simplesmente importa população para impor o Apartheid na Palestina. As denúncias a este absurdo a Liga denomina de “antissemitismo” ou críticas contra Israel que ultrapassem o limite. Qual limite? Quais seriam os limites toleráveis para criticar o regime semelhante implantado na República Sul-Africana a partir de 1949, incluindo a ocupação militar da atual Namíbia além da aliança racista com a antiga República da Rodésia (Zimbabwe)?       


O jogo duplo da ADL


Outra atribuição clássica da ADL é perseguir intelectuais judeus que não apoiem o colonialismo de Israel. O professor Noam Chomsky, intelectual judeu socialista e antissionista, foi alvo de espionagem da Liga Anti-difamação já na década de 70 (https://bit.ly/3iHrg4X). Ao mesmo tempo, o próprio Chomsky aponta o trabalho de denúncia da ADL “antirracista” (por conveniência diria):


“Algumas indicações sobre o “racismo na era Trump” são fornecidas pelo registro de violência racialmente motivada. De acordo com a Liga Anti-Difamação, em 2016, antes da posse de Trump, essa maldição representava 20% das mortes relacionadas ao terrorismo nos EUA. Em 2018, o número subiu para 98%. E continuou nesse nível desde então. O diretor do FBI, Christopher Wray, relatou que extremistas com motivação racial e étnica eram a principal fonte de incidentes e violência letais motivados ideologicamente desde 2018, e que 2019 marcou o ano mais mortal da violência supremacista branca desde o atentado a bomba em Oklahoma City em 1995, relata a Foreign Affairs.” (https://bit.ly/3hRkXws).


Noam Chomsky, justamente em função de seus posicionamentos públicos contra  a política expansionista de Israel, foi impedido de entrar na Palestina Ocupada em 2010.


“Segundo o próprio Chomsky, em entrevista à televisão al-Jazeera, o motivo seria o convite a dar uma palestra na universidade palestina Birzeit e no Instituto para Estudos Palestinos, em Ramallah, na Cisjordânia. Depois de ter sido interrogado durante mais de três horas, Chomsky teve o seu passaporte carimbado com a frase “entrada recusada” (https://bit.ly/3kzAKBF).


Trata-se de mais uma comprovação que o Apartheid persegue inclusive judeus antissionistas, além de acusar a todas e todos de “antissemitas”, mesmo quando se trata de semitas defendendo-se da agressão de europeus!


Israel é um Estado colonial baseado no antissemitismo


Se compreendermos a condição mitológica de “semita” como também sendo uma pertença dos povos árabes, o Estado de Israel é “essencialmente” antissemita. Considerando que as colônias judaicas foram povoadas basicamente por pessoas com origem europeia, a perseguição antissemita e de apostasia islamofóbica, além de promover pogroms e limpeza étnica no território, trata-se de uma política semelhante ao da “reconquista Ibérica” e mitos semelhantes. Não há uma “santa” inquisição para queimar “hereges” judeus e árabes; mas temos europeus financiados por anglo-saxões perseguindo semitas e expulsando uma população de suas terras ancestrais. 


O objetivo estratégico é a diplomacia pública do sionismo


A ADL afirma: “... está preocupada com quantas campanhas anti-Israel, como o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), fornecem respostas simplistas, injustas e não construtivas para o complexo conflito israelense-palestino, sem dar importância ao avanço do diálogo israelense-palestino, reconciliação e paz” (https://bit.ly/3hPtUq3).


Desta forma, sem meias palavras, se posiciona a favor de um Estado de apartheid e classifica iniciativas legítimas como o BDS (https://bdsmovement.net/pt) como retórica extremista que leva ao antissemitismo. Pura guerra de propaganda e jogo cínico de palavras, indo ao encontro de redes alinhadas com o Ministério de Assuntos Estratégicos (https://bit.ly/3zgNvW2) e suas campanhas difamatórias em escala global.

_______________________________________________________

Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini) é cientista político e professor de relações internacionais de origem árabe-brasileira, editor dos canais do Estratégia & Análise. E-mail: blimarocha@gmail.com.

Nenhum comentário: