Pitacos e impressões sobre o pronunciamento de Bolsonaro, por Daniel Samam


De cara, entendo a narrativa por parte da imprensa em tratar o breve pronunciamento de Bolsonaro como reconhecimento da derrota. Mas, política e juridicamente, não. Convenhamos, o que ele reconheceu nos dois minutos de pronunciamento?


Primeiro, pode-se dizer que ele reconheceu "a injustiça de como se deu o processo eleitoral", ao validar essa motivação como causa dos motins nas estradas. Vejam, se ele resolver não aceitar o resultado das eleições, não cairá em contradição.


Segundo, pode-se dizer que ele reconheceu a legitimidade dos motins e bloqueios nas estradas ao dizer que são "fruto de indignação" e que são "pacíficos". Elementar, meus caros, "pacífico" se opõe a "violento", adjetivo sempre usado para deslegitimar protestos.


Mas a questão é que mesmo movimentos inteiramente pacíficos podem causar danos sérios. Por exemplo, bloqueios de estradas podem ser até "pacíficos", mas causam desabastecimento, falta de insumos básicos, gerando o caos. E a derrubada de uma estátua em homenagem a um escravista pode ser dita "violenta'', mas legítima.


Bolsonaro sabe que as manifestações podem ser pacíficas e, ao mesmo tempo, causar danos sérios e levar a comoções sociais graves. Por isso não bastava celebrar manifestações pacíficas. Ele precisava ter pedido a imediata liberação das estradas. Não pediu porque, no fundo, não quer. Segue coerente com sua estratégia e narrativa do caos como método.


O "continuarei cumprindo todos os mandamentos da Constituição" vindo da boca de Bolsonaro não quer dizer absolutamente nada. Mas reitero que a imprensa e o establishment cumprem um papel ao tratar o discurso de Bolsonaro como se fosse um reconhecimento de derrota, pois precisamos caminhar, seguir em frente. Temos uma transição de governo a ser feita.


No entanto, tenhamos clareza de que no discurso de ontem, o presidente derrotado não aceitou o resultado das urnas, tampouco desautorizou movimentos golpistas. Bolsonaro seguirá jogando gasolina na fogueira do golpismo. E o golpismo de caráter fascista só sobrevive à base de radicalização, e a radicalização só é possível em um ambiente de comunicação digital que permita a difusão impune de um discurso paralelo à realidade.


Que fique claro, o fascismo é um fenômeno de massas. É pura ilusão e irresponsabilidade histórica achar que não passa de uma simples movimentação do "gado". O bolsonarismo, o fascismo à brasileira, tem base popular e militância orgânica. O governo Lula não terá uma oposição convencional e os desafios serão enormes.


A tarefa fundamental é a sociedade civil brasileira em conjunto com as instituições da república conterem o avanço do fascismo à brasileira. Do contrário, este continuará vivo. Pode até ficar isolado no sistema político, mas seguirá com 1/3 de apoio na sociedade se outras medidas não forem tomadas. Daí a urgência de investigar todos os indícios de crimes, processando-os, julgando-os e punindo-os, sem qualquer margem para anistia.

Nenhum comentário: