A “independência” do BC e o governo em conflito, por Paulo Kliass

Publicado no Outras Palavras.


O governo do capitão insiste em aprofundar seu isolamento político no país, bem como sua vergonhosa reclusão no cenário diplomático e internacional. Alguns analistas chamam a atenção para essa trilha aparentemente suicida, de não levar em conta as necessidades mínimas da própria sobrevivência política em um contexto de vigência de regras supostamente normais da institucionalidade democrática. No entanto, nem tudo que aparenta ser contraditório pode ser debitado na conta da incompetência pura e simples. Talvez esteja aí, inclusive, uma das muitas hipóteses a explicar essa opção — levar a conjuntura ao cenário de paralisia e abrir espaço para as vozes que clamam por uma intervenção militar explícita e ditatorial.

Apesar de tudo, um fato é inconteste. O cenário é confuso e o governo segue batendo cabeça a cada dia, a cada hora. A cerimônia de balanço dos 100 dias da chegada de Bolsonaro e sua trupe ao Palácio do Planalto é exemplo cristalino disso. O grau de improvisação e de amadorismo leva mesmo a supor que alguém avisou, de última hora, ao ministro da Casa Civil que algo precisava ser apresentado a esse respeito ao longo da semana passada. Mas o problema era de fundo, pois não havia praticamente nada de positivo a mostrar. A não ser o crescimento exponencial das despesas com campanhas publicitárias e de propaganda do próprio governo junto aos grandes meios de comunicação.

Nessas horas, sempre sobra para o assessor e para o estagiário. É o momento da conhecida estratégica de tirar leite de pedra e buscar a apresentação de alguma coisinha boa, por mínima que seja. Nem que, para isso, aspectos tidos como “secundários” — a exemplo de dados estatísticos e postura ética perante as informações — sejam mandados para escanteio. Assim, ao fim e ao cabo, de acordo com as páginas oficiais da Esplanada ficamos sabendo que todas as metas haviam sido cumpridas. Ufa, ainda bem! Afinal, o isolamento político do governo se deve tão somente a uma manobra sórdida promovida pelos comunistas que dominam os bancos, os órgãos da grande imprensa, a maioria dos partidos políticos, as universidades, os sindicatos e por aí vai. Respiremos e sigamos em frente.

Nem a meta 34 foi cumprida.

A penúltima das 35 metas estabelecidas refere-se à independência do Banco Central. Trata-se de matéria antiga e requentada, que vira e mexe sobe ao primeiro plano da agenda política. Em verdade, esse pleito é um antigo sonho acalentado carinhosamente pelos setores mais refinados do financismo tupiniquim. Como todos nos recordamos muito bem, um dos grandes impulsionadores da vitória de Bolsonaro no pleito passado foi a postura dos dirigentes do sistema financeiro. Abandonaram descaradamente Henrique Meirelles e Geraldo Alckmin ainda no primeiro turno, na mesma operação em que abraçaram a candidatura do defensor da ditadura, da pena de morte e da tortura. E o resultado está aí, escancarado, para que todos sintam do veneno que mais lhes aprouver.

A vinculação de Paulo Guedes junto ao mundo da finança dispensa comentários e explicações. É de natureza genética. Mas a aproximação entre os demais futuros integrantes do primeiro escalão do time do capitão e de seus generais na direção do universo da banca necessitou costuras e entendimentos. Afinal, o apoio desse importante segmento de nossas classes dominantes não viria sem exigência de contrapartidas.

Onyx Lorenzoni começou a falar mais forte e incorporou em seu discurso de candidato a ministro da Casa Civil, ainda no final do ano passado, proposições e avaliações um tanto bizarras. Nada de novo, pois essa é uma conhecida estratégia de pavimentar caminhos e se fortalecer junto ao príncipe. Em uma entrevista em dezembro, anunciava um ponto dissonante em relação a tudo o que o futuro superminsitro da economia espalhava pelos quatro cantos. O deputado federal do DEM/RS dizia que a primeira pauta a ser encaminhada a votação pelo governo Bolsonaro seria a independência do Banco Central (BC). E para espanto geral da plateia: antes mesmo da “Reforma” da Previdência!

Bingo! Onyx conseguia, a um só tempo, afagar seu colega de bancada do antigo PFL (Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, eleito pelo DEM/RJ) e fazer um agrado especial aos emissários do financismo que apostaram pesado na vitória do capitão. Relembremos um pouco. Em 2003, o jovem deputado carioca apresentava um projeto que já previa alguns elementos da tal da independência do BC. O PLP 32/2003 estabelecia que os diretores do órgão teriam um mandato de 4 anos e não mais seriam passíveis de demissão pelo presidente da República. A proposição ficou parada, não avançou sequer nas comissões temáticas e foi finalmente arquivada no final de janeiro passado, depois de passar quase 16 anos imobilizada e esquecida.

Independência de quem?

A principal inspiração dos autênticos liberais brasileiros refere-se ao modelo do FED, o banco central norte-americano. Com isso, tentam importar a ideia tresloucada de conferir “independência” a um órgão que detém mais poder do que a maior parte das instituições de nossa República. O argumento mais do que surrado — mas que sempre volta à baila — diz respeito a uma suposta influência “política” na gestão da política monetária. Esse raciocínio malandro procura travestir de “técnica” a instrumentalização de um dos aspectos mais essenciais de nossas políticas públicas.

É óbvio que o saber específico envolvido no manejo das mais diferentes ferramentas de política econômica não pode ser desconsiderado no momento da indicação dos ocupantes dos cargos. No entanto, tal observação passa longe de considerar a hipótese de conferir maior poder a esse servidor público do que a própria Constituição oferece ao dirigente máximo do Poder Executivo — esse sim escolhido pelo voto da maioria da população. A consigna “independência do BC” remete a pergunta que vem na sequência: independente de quem, cara pálida? Os dirigentes de uma instituição com tal dimensão e magnitude não podem estar livres, leves e soltos para desenvolverem o que bem entenderem à frente dos cargos que ocupam por indicação política delegada. Na verdade, a absoluta maioria dos que por ali passaram ao longo das últimas décadas apresentaram um traço comum: dependência total e explícita em relação aos interesses do sistema financeiro.

Qual o sentido de conferir independência política e institucional a quem tem por missão constitucional: i) estabelecer as diretrizes da política monetária; e, ii) atuar como órgão regulador, fiscalizador e controlados do sistema bancário e financeiro? Trata-se de uma completa inversão de valores. A lista dos ex presidentes do BC está recheada de banqueiros, ex-banqueiros, filo-banqueiros, aspirantes a banqueiros e semelhantes. Quase todos atuaram à frente do órgão para defender os interesses do oligopólio privado que sempre manteve controle férreo sobre esse importante setor de nossa administração pública.

Isso significou promover de forma entusiástica o aprofundamento da política de juros oficiais elevados e de geração permanente de superávit primário. O Brasil quase sempre se manteve isolado no campeonato internacional de taxa de juros e destinou ao longo dos últimos 12 meses a bagatela de R$ 373 bilhões do Orçamento da União para o sistema financeiro, a título de pagamento de juros da dívida pública. Nessas condições, quem precisa de independência?

Desde 2003, o cargo do Presidente do BC ganhou o status de ministro. Uma verdadeira excrescência jurídica — um subordinado do ministro da Fazenda, com igual equiparação hierárquica que o mesmo. Na verdade, Lula ofereceu essa bondade a Henrique Meirelles, para que o ex presidente do Bank of Boston aceitasse ser o dirigente da autoridade monetária do país que mais devia àquele banco estrangeiro. Uma loucura! O deputado federal recém eleito pelo PSDB/GO temia aparecer nas fotos algemado, como havia ocorrido com alguns de seus antecessores no cargo. Com o novo estatuto de “ministro”, tudo passaria a depender também do STF, por conta do foro privilegiado. Nessas condições, quem precisa de independência?

Nas funções de órgão responsável pela regulação, fiscalização e controle do sistema bancário e financeiro, talvez seja até desnecessário dizer qual o balanço realizado. O BC sempre esteve ao lado da banca, na defesa de seus interesses e contra a vontade da grande maioria da sociedade brasileira. Tal postura de conivência pode ser vista no tratamento do escândalo histórico e persistente dos “spreads” praticados e na corroboração das tarifas igualmente elevadas que os bancos impõem a empresas e cidadãos. O que dizer então de alguma tímida medida “moralizadora” quanto ao destino dos vergonhosos lucros bilionários apropriados por uma minoria reduzidíssima de nosso topo da pirâmide já ultra concentrada? Os dirigentes do BC sempre se mantiveram quietos e calados. Nessas condições, quem precisa de independência?

Paulo Guedes: #pedeprásair

Onyx Lorenzoni faz uma jogada arriscada, na tentativa de desviar a atenção de uma derrota do governo, que já se anuncia na questão da “Reforma” da Previdência. A base aliada parece pouco animada a dar sequência na tramitação da PEC 06/19 com as maldades ali presentes. A maioria da população já se mostrou contrária à medida e as manifestações de centrais sindicais, associações de aposentados, OAB e outras entidades da sociedade organizada parecem caminhar no mesmo sentido.

Ao anunciar no dia 11 que o governo havia enviado um projeto de lei complementar a respeito da “autonomia” do BC, o Chefe da Casa Civil faz mais do que uma tentativa desesperada de enganar a população. Mal conseguiu dar um “tic” formal e mentiroso na sua lista de metas (in)atingidas. Afinal, até hoje, dia 16, ninguém viu a cor de tal proposição. Ele tenta oferecer uma boia de salvamento aos agentes políticos que se envolveram na desastrada estratégia da “Reforma” da Previdência. Como que para, logo depois, argumentar com seu sorriso matreiro: “não falei que a independência do BC deveria vir antes da Reforma da Previdência”?

Talvez com isso, o parlamentar gaúcho ingenuamente imagina que conseguiria se cacifar para indicação do eventual substituto do atual ocupante do superministério da Economia. Afinal, Paulo Guedes já disse em mais de uma oportunidade que não tem como permanecer no cargo caso a mãe de todas as reformas não seja aprovada da forma como ele a encaminhou ao Congresso Nacional. E os sinais emanados da Câmara dos Deputados parecem concordar com #pedeprásairpauloguedes.
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Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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