Personalidade autoritária e caráter violento: a banalização da crueldade e o negacionismo em tempos de crise de legitimidade, Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

Fenômenos mórbidos e banalização da crueldade dependem de um quadro de crise de hegemonia ou orgânica que parece ser a marca deste início de século com a tripla crise da economia global, da representação política e da biosfera (aquecimento, pandemia etc).  Um processo de deterioração moral, com o retorno da lógica da guerra difusa no imaginário e nos conflitos que se generalizam, pode fortalecer na dimensão do agir coletivo a passagem ao ato violento, despertando certo tipo de fúria que intensifica os fenômenos extremos. 

A noção de necropolítica atualiza a confluência do genocídio e da colonialidade nos novos quadros de guerra civil generalizada. Como este fenômeno é vivido na consciência coletiva , com a força das ideologias na era da sociedade do espetáculo em rede? 

Destruir instituições, eliminar adversários impor regimes de força se torna uma tendência.  Neste quadro, ao contrário de um tipo de seleção e recrutamento que buscava no passado recente certas características equilibradas para estruturar a vida cotidiana, na relação com o que chamamos personalidade, muda pela maneira como somos afetados pela passagem ao ato violento. Na crise é transição do sistema mundo as componentes sádicas do comportamento coletivo são valorizadas por forças sociais desesperadas, inseguras, temerosas de perderem poder ou ameaçadas pelos clamores legítimos para a mudança. 

As novas cruzadas morais se tornam decisivas para fazer renascer o espírito de conflitos religiosos que expressam o colapso relativo das políticas de integração social. Uma deriva fascistizante cresce no meio de uma generalização da afirmação da vontade de poder de um certo tipo de ator político. Se torna urgente vermos com clareza os traços mais fortes deste processo, nas suas implicações de destruição do Estado de Direito, mesmo nas suas versões mais frágeis e periféricas.

A personalidade autoritária se manifesta como um fator necessário mas não suficiente para explicar o efeito de horda, a barbárie potencial que se acentua com o colapso ético-político e jurídico-normativo  que se acentua com a crise societária. O momento grave da mudança na dimensão molecular se dá quando o "mau-caráter", o tipo considerado violento e covarde passa a aparecer com destaque na vida cotidiana através das mídias. O elogio da tortura parece ser o principal traço deste caráter mórbido, considerado doentio na história da modernidade, que se torna objeto de valorização no quadro atual de mistificação acentuada pelas performances agressivas intensificadas pelo uso das bolhas de falsidades e fantasias. 

A valorização da mediocridade, os traços destacados do "homem sem qualidades" abrem as comportas para  a identificação com a emergência desta valorização de um tipo de característica considerada, até então imoral e ilegal. A que gera uma espécie de identificação com o que existe de mais desqualificado no terreno moral e abjeto em matéria de crueldade. 

Vivemos este acentuar de traços, através da deformação de caráter, que sublinha a singularidade de certos aspectos perversos  já presentes na normalidade da falsa consciência,  na componente que foi chamada de personalidade autoritária. Estamos numa conjuntura marcada por um tipo de colapso moral, em que se define o que existe de pior no que denominamos caráter. Cuja intensidade da passagem ao ato violento passa a sobredeteminar e, dar relevo, ao comportamento irracional do tipo de indivíduo voltado para o uso, sob qualquer, pretexto, do abuso brutal da violência material e simbólica. 

A violência como expressão da desmedida na forma da crueldade valoriza certos tipos humanos grotescos, cuja lógica perversa esteve sempre submetida pela lei, que até então, delimitava a relação dita de "normalidade". Nossa atenção é tomada a todo momento por uma atitude agressiva, um ato gratuito ou uma afirmação que afirma a lógica do culto da seletividade usando uma composição ideológica que mistura darwinismo e uma noção apocalíptica da punição divina. Até o início do século a ocorrência de distúrbios no trato das relações pessoais, ou a forma de produção de certos traços abusivos de caráter sempre se organizava, pela delimitação dos lugares e das formas aurorizadas de canalização da força, como na guerra formalizada. Já que desde sempre a guerra difusa e a lógica do inimigo tendeu a imperar nas superestruturas do capitalismo mundializada e no cotidiano da vida social, em especial na forma de governar pelo medo e a segregação. Estados de emergência e regimes de segurança proliferaram na cena mundial por conta da análise dos riscos, trocando direitos por segurança.

O sistema mundial se reproduzia, até então, na segunda metade do século XX, pela reprodução das práticas legais, em que a exceção era sempre afetada pela regra, como no limite ao porte de armas nas distintas sociedade nacionais. Na vida social o plano normativo racional legal se relacionava, em última instância, com modos de moralidade que operavam sob as bases de algum revestimento de coerção legal,  limitando o gozo do agir perverso nos termos do enquadramento de lógicas de normalização. O monopólio do uso legal da força esteve no centro da noção de Estado, um atributo da soberania, que vem sendo quebrado em paralelo com está transformação ou corrosão do caráter, que também se relaciona com o declínio da centralidade social no trabalho no contrato social. 

Mas em tempos sombrios a crise moral libera o caráter violento e medíocre que permite que a personalidade autoritária ganhe os contornos de comportamentos socialmente valorizados. Nos extremos da ética permissiva chegamos ao valor da imoralidade, destacando como os falsos líderes na figura existente dos indivíduos que buscavam se afirmar pela  violência   covarde sobre o medo do outro. A partir da sua satisfação em promover o sofrimento e a dor do suposto inimigo. Este quadro de viraliza com a desregulamentação negacionista, que libera estas forças até então relativamente subordinadas. Até então estas formas do caráter grotesco de certos indivíduos existiam nas bordas da dominação, encobertas pela razão cínica. Agora elas se mostram numa projeção sem véus nos quadros da sociedade do espetáculo, aos poucos sus ação vem destruindo as mediações que impediam, parcialmente, a passagem ao ato mortífero no plano institucional.  

Desta forma indivíduos até então desqualificados e contidos irrompem na cena pública com seu subversivismo de extrema direita. A crise societária é afetada por dispositivos, máquinas e aparelhos que atuam em prol da naturalização do "direito de matar", como um inverso da hegemonia pela destruição do consenso. 

Os novos blocos sociais extremistas vem  justificando a emergência das figuras brutais, dos homens medíocres que agem sobre a base estrutural da psicologia autoritária. O seu traço violento é a marca da singularidade que define o caráter  que deriva da liberação de forças prepotentes que, normalmente, apenas servem aos poderes de forma subordinada a certas regras morais. 

Mas quando o negacionismo se instaura na vida política, como um modo discursivo de articulação das ideologias conservadoras, o caráter individual se converte na forma social fascista. O exibicionista e o covarde se unem, o que torna a face da mediocridade do caráter de personagens perversos e sombrios o traço  marcante do processo coletivo, que se alimenta das personalidades autoritárias.

 Os fenômenos mórbidos acentuam os traços que tornam lideranças os seres mais nefastos, figuras do desejo de extermínio se exibem sem pudor em toda a sua desumanidade alimentando a cultura do medo e do gosto pela morte. O caráter fascista nasce da crise moral que expande os elementos presentes na personalidade autoritária, animada com a força aparente da lógica do desejo por saídas sangrentas e destrutivas que marcou a guerra híbrida que destrói a dignidade política e a dimensão ética nos modos de vida nas diferentes sociedades atingidas pelo tripé negacionismo, neoliberalismo e necropolítica.

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Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor do PPDH/NEPP-DH/UFRJ.

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