Paulo Guedes, exemplar aprendiz do ultraliberalismo, por Paulo Kliass

Publicado no Outras Palavras.


Os devaneios liberaloides do superministro Paulo Guedes parecem não ter mesmo nenhum tipo de limite. Desde que recebeu a missão do então candidato Jair Bolsonaro no segundo semestre do ano passado, o ex-Chicago boy parece ter acreditado que estava frente à oportunidade de aplicar por aqui todos os sonhos do neoliberalismo mais tacanho. O dublê de capitão e deputado federal nunca escondeu sua ignorância para temas econômicos e delegou ao operador do mercado financeiro a responsabilidade de desenhar e implementar essa agenda.

Essa estratégia foi exitosa no sentido de abrir as portas de sua candidatura junto aos demais agentes do financismo e contribuiu para facilitar sua aceitação junto a uma parcela das elites que ainda mantinha um certo pé atrás quanto às reais intenções daquele político ainda bastante desconhecido, integrante do baixo clero, tosco e defensor da tortura e da pena de morte. A contrapartida dessa delicada operação foi o recém-convertido ao liberalismo oferecer uma ampla autonomia a Paulo Guedes para o tratamento das matérias de natureza econômica.

O passado de Bolsonaro teve de ser rapidamente varrido para debaixo do tapete. Aquele parlamentar que se declarava nacionalista e contrário à privatização das empresas estatais foi sutilmente recolhido à caserna. Aquele deputado federal que sempre havia votado contra a propostas de reforma da previdência também teve de deixar a cena e os holofotes. Algo como um “esqueçam o que falei e escrevi” em sua versão 2.0. As suas palavras de ordem agora passaram a ser internacionalização, modernização e austeridade fiscal.

Guedes, o poderoso

Esse intenso e arriscado movimento de troca de pneu com o veículo ainda em movimento tem provocado algumas dificuldades de articulação política e um sem número de arestas no interior do próprio bloco de apoio ao governo. Mas como o presidente precisa urgentemente que o superministro lhe ofereça alguma notícia boa no front da economia, a relação de dependência política entre ambos se aprofunda e se estende. Operam como hospedeiro e parasita, ambos sabendo que uma hora a coisa acaba.

Guedes conseguiu fazer com que o governo formalmente encampasse o texto original da PEC 06 da Reforma da Previdência, com um conjunto impressionante de maldades, enviado no início à Câmara dos Deputados. Ali estavam temas como a capitalização, a quase extinção do Benefício de Prestação Continuada (BPC), os obstáculos à aposentadoria rural e outros assuntos na linha da destruição do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Apesar das mudanças todas ocorridas ainda na tramitação no interior da Câmara e agora no Senado, o fato concreto é que aquela proposta original tinha a chancela do Palácio do Planalto.

Em outro front de intento destruidor, Guedes nunca escondeu seu desejo de promover a privatização completa das empresas estatais federais. Fazia um jogo de cena com ensaios de alguns recuos recheados de oportunismo, mas no fundo sempre que podia ele abria seu projeto maximalista: vender tudo que significasse presença estatal na economia. No fundo, era a satisfação de colocar em prática aquela busca pelo Estado mínimo, ícone liberal que seu mestre e guru Milton Friedman tanto defendia. O fato é que a privatização avança pelas beiradas. Toda a área do Pré-sal já foi licitada e leiloada para as grandes empresas petrolíferas internacionais, concorrentes da Petrobrás. O governo conseguiu a bizarra liberação do Supremo Tribunal Federal (STF) para privatizar as subsidiárias das estatais sem necessidade de autorização legislativa. O empresário Salim Mattar, à frente da Secretaria das Estatais, espera o momento apropriado para comandar o bote final.

No quesito Reforma Tributária também Paulo Guedes não desiste. Forçou a barra com a ideia do Imposto Único de seu colaborador Marcos Cintra, mas foi obrigado a demiti-lo por exigência do Presidente. Afinal, o então Secretário da Receita Federal defendia abertamente em eventos a criação dessa medida que se inspirava na antiga CPMF. Uma proposta que traga à baila qualquer tipo de compromisso de Bolsonaro com aquele tributo massacrado pelas elites e pelos grandes meios de comunicação é vista com muita desconfiança por Bolsonaro. Mas Paulo Guedes mostra autoconfiança, peita Bolsonaro de público e não desiste. A ver os próximos passos também nesse domínio.

Brincando de câmbio e destruindo o Brasil

Mas a iniciativa tresloucada de Guedes para o momento atual envolve a liberalização geral do nosso mercado de câmbio. A medida já vinha sendo estudada a boca pequena pelos dirigentes do Banco Central (BC) e do Ministério da Economia. Mas eis que a semana começa com um grande estardalhaço. O Palácio do Planalto resolve oferecer ampla visibilidade ao PL 5387/2019, cuja exposição de motivos havia sido encaminhada a Bolsonaro ainda em 18 de setembro. Ali, como sempre, a narrativa apresentada pelo pessoal da área econômica é sempre a mesma:

(…) “se propõe a modernizar, simplificar e trazer mais eficiência ao mercado de câmbio brasileiro” (…) “barreiras não são mais consistentes com a economia globalizada e que se vem modernizando com crescente nível de inovação” (…) “tendo como alicerce os princípios da inserção da economia brasileira no mercado internacional, da livre movimentação de capitais e da realização das operações no mercado de câmbio de forma mais simples, transparente e com menor grau de burocracia” (…)

A retórica da necessidade de modernização do mercado de câmbio e de sua estrutura operacional não passa de cortina de fumaça para justificar a abertura generalizada de nossa economia à dinâmica do capital financeiro internacional. A soberania da sociedade brasileira frente aos demais atores da economia global se efetiva por meio da existência de moeda própria e de um sistema de controle de entrada e saída de recursos estrangeiros. Prática essa, aliás, adotada pela grande maioria dos países do mundo que não tenham optado por se transformar em paraísos fiscais. Isso significa dizer que o padrão monetário de livre trânsito por aqui é a moeda brasileira – o real. Todo o processo de conversão passa por procedimentos de controle da autoridade monetária, no caso o BC. Vai daí que existem os bancos oficialmente autorizados a realizar operações de câmbio – compra e venda de moeda estrangeira, como dólar norte-americano, euro, iene, yan e outros.

As razões para tal conformação institucional se relacionam ao grau de fragilidade das economias nacionais face à convulsão cada vez maior que está reinante no ambiente da especulação internacional. Os países tendem a adotar medidas de proteção econômica e financeira para evitar que os cenários internos sejam negativamente impactados pelas crises recorrentes no resto do mundo. Precaução, aliás, mais do que necessária e recomendável nos tempos atuais.

Pois a mais recente das maquinações do aprendiz de liberal pretende justamente criar um foco potencial de perturbação em uma área onde a economia brasileira está felizmente conseguindo resistir aos solavancos do financismo global. Refiro-me à dinâmica de capitais externos e seu impacto sobre a nossa realidade interna. Basta ver o que está acontecendo com a nossa vizinha Argentina para avaliarmos os riscos de um país que não apresenta uma robustez de proteção externa como a nossa. Afinal, nossa dívida externa foi reduzida a quase nada e contamos atualmente com uma importante rede de proteção representada por quase 390 bilhões de dólares na forma de reservas internacionais junto ao BC.

Contas em dólares pra quem quiser

A proposta de Guedes sugere a liberalização completa do mercado de câmbio, um liberou geral tão ou mais irresponsável quanto a sua intenção de destruir a previdência social ou privatizar todas as empresas do governo federal. Vale observar que ele é sempre guiado por uma estratégia que visa a beneficiar apenas os interesses do financismo. No lugar do INSS viria a capitalização dos bancos das seguradoras. No lugar da empresa estatal, surge a generosa oferta aos conglomerados financeiros internacionais.

Segundo o projeto de lei, qualquer instituição financeira – inclusive as que começam a pipocar sem controle algum (as chamadas fintecs) – poderiam operar com câmbio por aqui. Além disso, qualquer cidadão ou empresa poderia passar a ter uma conta bancária operando em moeda estrangeira em nossas terras. Uma loucura! Com o tremendo grau de instabilidade e especulação atualmente reinantes nos ambientes interno e global, qualquer movimento mais sério e comprometedor dos grandes agentes nesse mercado descontrolado pode transformar nosso estoque de reservas internacionais em pó.

Algum grau de instabilidade e risco nós já temos pela própria dinâmica da globalização. Situação essa que já vem sendo agravada há muito tempo pela ausência de qualquer controle sobre a conta de capitais. O capital especulativo entra e sai como quiser, mas sempre com algum tipo de controle exercido pelo BC. No entanto, o que o PL 5387 introduz como novidade é a obrigatoriedade da conversibilidade para moeda estrangeira em qualquer circunstância sem esse controle da autoridade oficial. Enfim, mais um experimento de laboratório pseudoliberal levado a cabo pelo superministro, com custos e riscos elevadíssimos para o conjunto da sociedade.

É preciso barrar o PL 5387!

As economistas Prates, Farhi e Ramos desenvolvem com bastante competência as consequências negativas de uma eventual aprovação da proposição. Em seu artigo, as professoras e pesquisadoras da UNICAMP alertam para os perigos de maior turbulência nas operações do mercado interno em razão da sofisticação dos produtos oferecidos pelo sistema financeiro. Além disso, passaríamos a conviver com a iminência de substituição monetária também internamente, uma vez que todos os agentes poderiam trocar sua conta em reais por outra em dólar ou outra moeda estrangeira.

O Presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia expressou seu deslumbramento com a medida e prometeu oferecer “celeridade” à sua tramitação. Na linguagem codificada do parlamentês, isso significa atribuir grau de urgência à matéria, de forma a que não haja uma discussão ampla nas comissões temáticas, com audiências públicas chamando especialistas para debater a matéria tão polêmica quanto essa.

Cabe aos partidos de oposição e às forças políticas comprometidas com um projeto de desenvolvimento brasileiro evitar que mais esse devaneio liberal de Guedes se transforme em pesadelo para a maior parte da nossa sociedade.
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Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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