Legalidade e o Cinema Nacional, por Paulo Branco Filho


A capacidade de indignar-se com o que é injusto, desumano e vil é o que alimenta os grandes pessoas. Aqueles que agem destemidamente diante de um poderoso algoz, vislumbrando a libertação e o bem do seu povo, alimentam a fé no improvável, fazendo o oprimido acreditar em si e lutar pela mudança.

No Brasil, figuras assim são ferozmente combatidas. Faz-se isso porque a força de suas ideias é revolucionária, fruto de uma dignidade, amor e coragem que assustam os perversos. São criminalizados e difamados até o ponto onde não possam mais atrapalhar os interesses escusos de alguns. Para manter o Brasil com traços de colônia - atrasado e desigual - suas ideias e ações devem ser esquecidas para que não sirva de alimento à imaginação das novas gerações. E assim, o país pode ser moldado de acordo com os interesses de quem não tem compromisso com o povo, fazendo a grande maioria crer que somos fruto de fraqueza e incompetência.

Falo disso tudo para chegar em “Legalidade”, filme de Zeca Brito, com a atuação de Cléo Pires e Leonardo Machado (in memoriam). A obra resgata a vitoriosa campanha da Legalidade, ocorrida em 1961, em que o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, empreende com o povo uma resistência armada para que João Goulart assumisse a presidência da República.

Com a iminente renúncia de Jânio Quadros, então presidente, cabia ao vice-presidente assumir o comando do país. A claque golpista - com apoio norte-americano - traçou planos distintos para o Brasil, o que infringia a nossa Constituição. Coube a Brizola e ao povo peitar o golpe, mesmo com um poderio bélico precário: uma demonstração de que a força moral de uma grande liderança é motivo de temor dos imorais. 

O filme abre mão de um conteúdo exclusivamente documental dando espaço para uma trama amorosa, que se encaixa bem ao contexto de luta e amor à causa brasileira. O romance também serve para atrair o público em geral, fazendo-o conhecer e contemplar a história de forma mais leve e prazerosa.

A campanha da Legalidade é uma das histórias que a história não conta, como cantou o samba enredo da Mangueira em 2019. Seu esquecimento proposital é uma tentativa de manter o povo desacreditado da própria força e distante dos ideais de seus maiores defensores.

Manter a memória viva é ir à contramão do atraso: é um exercício de reconhecimento de nossas raízes, que nos traz vivacidade e autoestima.

O desprezo pela memória tem sido uma marca trágica de nosso país. Pouco se sabe sobre o passado; pouco se cultiva e propaga os gestos de grandeza de pessoas que deram suas vidas pela causa popular.

O desmonte da cultura é um ponto nevrálgico dos governos de direita que assumiram o poder nas últimas eleições. Para 2020 prevê-se o corte de 43% do fundo que abastece o setor de audiovisual. O projeto também prevê redução na capacitação de recursos oriundos de empresas e projetos. Trata-se de uma afronta institucional contra o pensamento crítico, o desenvolvimento de pautas sociais e o amadurecimento da população.

Valentes são as figuras que enfrentam esse desmonte e, apesar da falta de incentivo e financiamento, ousam realizar obras e eventos em prol da cultura, elemento fundamental para uma sociedade consciente e saudável.

Devemos todo nosso apoio a essas iniciativas, que fazem da produção cultural e audiovisual, meios de resistência, reflexão e convidam a sociedade civil através de financiamento coletivo a contribuir para viabilizar as realizações e manter a ocupação qualificada de espaços.

Vale destacar e apoiar ações como o Cabíria Festival – Mulheres & Audiovisual, evento inédito previsto para novembro no Rio de Janeiro, que tem como pauta a maior representatividade de mulheres e diversidade no audiovisual e o Festival do Rio, que contribui há duas décadas para audiovisual brasileiro e o situa na escala dos festivais internacionais de cinema.

Ambos os projetos encontram-se em campanha de financiamento coletivo pela plataforma Benfeitora: www.benfeitoria.com/cabiriafestival; www.benfeitoria.com/festivaldorio.

Que façamos com luta, audiência e apoio a cultura nacional o nosso Bacurau de cada dia!
___________________________________________

Paulo Branco Filho é professor de artes marciais e cronista.

Nenhum comentário: