Proibição na Bienal: a fratura exposta da ausência do debate de gênero nas escolas, por Mariana dos Reis


O assunto mais comentado na última semana foi a tentativa de proibição da circulação do livro “HQ Vingadores” no evento da XIX Bienal do Livro no Rio de Janeiro, censurado pela gestão do prefeito Marcelo Crivella. O mesmo gestor executivo se dispôs a colocar fiscais para percorrerem estandes na Bienal atrás de um suposto conteúdo impróprio no livro para crianças que exibiria um beijo gay. O desfecho deste capítulo lastimável se estabeleceu no domingo (dia 8 de setembro de 2019) com a intervenção do Supremo Tribunal Federal, proibindo a ação de apreensão de Marcelo Crivella.

No campo da sociedade civil, a queda de braço entre  organizações ultra conservadores e movimentos sociais neste episódio insuflou o debate dos padrões morais e culturais impostos atualmente pela ascenção dos governos ultra conservadores que coadunam deste pensamento e colocou em xeque a liberdade de criação dos escritores. O youtuber Felipe Netto foi a figura pública que mais se engajou nos protestos contrários a censura de Crivella, comprando milhares de exemplares de livros para distribuir de graça na Bienal em repúdio a censura do prefeito neste sábado. Houve também protestos expressivos de movimentos LGBT, professores e ativistas  dentro da Bienal com gritos de “Não vai ter censura!”. Na internet, o bom humor virou a principal arma contra a censura e os memes se proliferaram ao utilizarem a imagem do casal se beijando em cenários de situações caóticas dos reais problemas da cidade.

Por mais descabida  que pareça esta proibição em vias de Estado democrático de direito, no contexto das famílias brasileiras, o assunto ainda divide opiniões de muitos pais ou responsáveis  que afirmam que as imagens representam um “mau exemplo” para as crianças. Outros responsáveis consideram a faixa etária do livro imprópria para a leitura de seus filhos. Já há grupos que não acreditam que o  conteúdo da orientação sexual seja uma demanda importante a ser abordada dentro do currículo escolar ou em literaturas infantis/ infanto juvenis. Por isto, o assunto em tela reascende a importância de se debater “ Gênero e  Sexualidade” em diversos espaços educativos.

Deste modo, qual a importância  da temática de Gênero no currículo das escolas públicas em tempos atuais?

A construção do nosso pensamento acerca de questões sociais deve  sobrepor opiniões “ senso comum”. Neste sentido, espera-se que as formulações perante determinado assunto sejam baseadas em pesquisas sociais ou situações elucidativas  da realidade que evitem análises superficiais dos acontecimentos. Por isso , quanto mais cedo o indivíduo tem acesso ao conhecimento, estará mais longe opiniões pouco fundamentadas ou pré concebidas como por exemplo naturalizar a situação de desigual entre homens e mulheres na sociedade ou afirmar que a homossexualidade é uma patologia.
No entanto, o conteúdo relativo à orientação sexual/ identidade de gênero por exemplo é considerado tabu até mesmo pelos profissionais de educação que muitas vezes não se sentem capacitados pedagogicamente a abordar tal temática em sala diante dos possíveis questionamentos do grupo ou se veem pressionados de maneira negativa junto a suas direções ou responsáveis de alunos. As disparidades sociais, culturais e territoriais entre professores e responsáveis expõem no cotidiano escolar os códigos de comportamento de alguns alunos que formam sua linha de pensamento seguindo as bases de um certo fundamentalismo religioso. Deste modo, as práticas discriminatórias destes na escola são endossadas algumas vezes no seio familiar, consentindo diversas violências (físicas e simbólicas) a grupos de alunos que consideram “ anormal” como homossexuais, lésbicas e transexuais.

Estas violências estão presentes no cotidiano escolar não só pelas questões relativas a Gênero e Sexualidade como também referentes a Raça e Religiosidades, excluindo as pessoas que não se encaixam nesses padrões normatizadores. Sendo assim, é urgente o combate a construções senso comuns e obscurantistas centradas em formulações ultra conservadoras e pouco científicas nas escolas e universidades.

Com  a guinada da onda conservadora, os termos “Gênero, Sexualidade e Raça/etnia” foram vetados nos últimos Planos de Educação em níveis federal, estadual e municipal, alegando-se que a “Ideologia de gênero” (conceito fictício criado pela direita ultra conservadora) confundiriam os alunos de seus papeis sócio culturais normativos de meninos e meninas. A ampla propaganda do movimento “Escola sem partido” nos últimos anos se prestou ao desserviço de vulgarizar as importância das discussões relacionadas ao debate de gênero no espaço escolar. Utilizando-se de discurso heteronormativos e patriarcais, tais grupos buscam impor uma “pauta de costumes” aos indivíduos, ganhando certa legitimidade junto à população. A apropriação destas ideias ganhou tanta força nos últimos anos que atropelou o texto da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394), garantindo aos professores autonomia aos professores nas discussões que envolva o tema Gênero e Sexualidade como temas transversais.

A ausência  de debates como Gênero/ Raça/ Etnia e Diversidade Sexual  atualmente nos espaços educativos vem a naturalizar ações escancaradamente ditatoriais como a apreensão dos livros na Bienal pelo prefeito Marcelo Crivella, ferindo os princípios universais da dignidade humana. A pesquisadora da UERJ sobre a temática de “Gênero e Sexualidade” Denise Sepulveda opina sobre o tema, ressaltando que:

Para mim, é extremamente importante debatermos “Gênero e sexualidade” na escola para não termos pessoas preconceituosas  e dogmáticas como temos hoje. Na minha época se estudava “Gênero e Sexualidade” pelo viés das doenças venéreas, reprodução e prevenção ficava muito no aspecto da saúde, o que não achava ruim porque na minha geração estes debates não eram feitos na escola. E nós sabemos que as famílias que não querem esse debate na escola, também não o fazem em casa (...). 

Dizem que a “ideologia de gênero” atrapalha mas também não ajudam no debate. Hoje dizem que trabalhar “Gênero” na escola é transformar menino em menina e menina em menino. Trabalho com essa temática desde 2008 e nunca vi professor ou professor querer interferir na orientação sexual dos seus alunos. Isso que estão fazendo com os professores é um caça às bruxas horrorosa. Então agora por que o menino tem um comportamento considerado feminino eu saio batendo? Faço bullying? Por isso, os professores devem estar munidos de conhecimentos para que ninguém seja discriminado por seu gênero, sexualidade ou raça.

Ao opinar sobre a questão da proibição dos livros na Bienal, Denise ressalta: O que tem a ver a sexualidade com a masculinidade? Então um homem que é herói numa história não tem desejo em outro homem? Aquilo não estava nem acontecendo no espaço da escola. Querendo eles ou não, a homossexualidade, a lesbianidade, a transexualidade, a intersexualidade estão presente na sociedade. Vai matar essas pessoas para só existirem heterossexuais na sociedade? Se está presente na sociedade, os jornais, as revistas em quadrinhos e os livros retratam a realidade. Ele mandou retirar os livros na Bienal na quinta feira e no mesmo dia eu estava participando de um estande a convite da Secretaria Estadual lançando meu livro sobre “Gênero e sexualidade”. O paradoxo é tremendo!

Por fim, a compreensão da relevâncias da temática de “Gênero e Sexualidade” na escola permitirá aos diversos educandos problematizarem e combaterem comportamentos homofóbicos, racistas e classistas que estão presentes nas relações de poder do mundo contemporâneo. A nós educadores, cabe optarmos por estratégias metodológicas e intervenções pedagógicas agregadoras que possam desconstruir estereótipos heteronormativos, além de criar formas de acolhimento no cotidiano escolar, respeitando as múltiplas aptidões, diferenças e orientações sexuais dos educandos.
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Mariana dos Reis é doutoranda em educação pela UERJ, professora do Instituto Benjamin Constant e militante anti racista e feminista interseccional.

Um comentário:

  1. A fuga é a única saída para quem não quer encarar a realidade que escreveu um texto mais-do-mesmo.

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