O perigoso empoderamento do Judiciário, por Julia Demuth

Radar, Rede e República



Fabiano Contarato é uma pessoa pública muito respeitável, honrada, com uma biografia admirável, e uma energia laboral incomum. Posicionado no campo progressista, arrebata cada vez mais corações e mentes de uma juventude arejada e interessada em uma política alternativa ao PT, ao PSDB e ao conservadorismo fascista de Bolsonaro.

Recentemente, Contarato publicou como vitória a decisão de Juíza do Distrito Federal ordenando a manutenção dos radares que o presidente Bolsonaro anunciou que retiraria das rodovias federais, classificando-os como "indústria de multas". Foi o próprio Contarato quem propôs a ação judicial, homenageando sua própria trajetória como Delegado de Delitos de Trânsito, quando se notabilizou como um rígido defensor de uma nova cultura de trânsito e de condução de veículos.

No mérito, tendo a concordar com Contarato sobre a necessidade de radares. Porém, meu interesse com esse exemplo é analisar quem é quem no atual tabuleiro do Estado brasileiro.

Contarato recorre ao Poder Judiciário para que este invada atribuições do Poder Executivo, imiscuindo-se em critérios de conveniência e oportunidade. Esse é o movimento mais perigoso que temos vivido na República brasileira.

Formar maioria democrática é, talvez, a única regra do jogo possível para que as classes subalternas disputem políticas públicas e tencionem o Estado a seu favor. Fora isso, seria a revolução. Nada contra. Mas me parece que no século XXI ainda não chegamos perto dessa capacidade revolucionária, nem no melhor momento da América Latina.

Tenho insistido que, por isso, é muito perigoso a fase de empoderamento do Judiciário e Ministério Público no Brasil, sobrepondo-se aos poderes políticos que recebem pressão e influência da participação democrática (executivo e legislativo), independente de constituir maioria. O Ministério Público e o Judiciário não são formados pela participação e organização popular, de forma que, quando extrapolam seus limites, subtraem a soberania do sufrágio e da participação popular na política. Não precisam representar ninguém. Basta passar no concurso e tomar posse. Uma Aristocracia Jurídica, assim, vai assumindo o poder de comando estratégico da República, e subjugando a política.

Quem dera pudéssemos falar, ainda que jocosamente, que nessa Aristocracia há homens e mulheres "iluminados". O marco iluminista não chegou para boa parte deles. A infestação de fascistas e medievais nesses órgãos é assustadora. Mas, apesar disso, há todas as cores político-ideologicas nestes cargos. Tem contra e a favor da legalização do aborto, contra e a favor da redução da idade penal, contra e a favor da criminalização da homofobia e da união civil entre pessoas do mesmo sexo, contra e a favor de cotas raciais. Tem os iluministas, como Barroso. Tem até comunistas.

Mas não nos iludamos, já que a burguesia não teve nenhuma dúvida: é nesses órgãos que se pode confiar para ser o grande bunker de defesa das velhas elites políticas e econômicas. Se o povo alcançar maioria política pela via democrática, como ocorreu na América Latina na passagem do século XX para o XXI, será o Judiciário quem garantirá a manutenção da ordem capitalista, da estrutura fundiária e de todos os interesses estratégicos da burguesia. O jurista canadense Ran Hirschl descreveu esse deslocamento do poder nos países de língua inglesa, e o chamou de "Juristocracia".

Todos os setores que tem procurado fortalecer esse caminho da Juristocracia, o empoderamento da Aristocracia Jurídica, utilizam-se da legitimação do punitivismo. Assim, iluministas, como Barroso e o Partido Rede, são iluministas até falar-se em sistema penal. Quando chega na questão criminal, deixam o iluminismo de lado, e tergiversam com as antigas práticas processuais penais do autoritário Antigo Regime.

Assim, há, na luta de classes, para aqueles que se colocam na mesma trincheira das classes subalternas, duas disputas distintas acontecendo no Estado brasileiro. A primeira, mais explícita, é relacionada aos valores políticos, sociais e culturais; é sobre as decisões econômicas e de infraestrutura. Neste caso, podemos identificar claramente esquerda e direita, progressistas e conservadores, autoritários e "democratas".

A segunda dimensão de luta é menos explícita, mas tem uma importância e um impacto diferente. Enquanto a primeira luta move peças no tabuleiro, esta segunda move o próprio tabuleiro. Trata-se da disputa sobre as regras do jogo na República; da extensão do poder dos órgãos não eleitos; da subjugação de setores eleitos, especialmente pelo mecanismo da lava jato, pelo recrudescimento punitivo. O punitivismo constitui uma forma de legitimação dessa expansão do poder, pois supostamente estaria "democratizando o sistema penal", "punindo os de cima". Mas, além disso, também faz dessa punição seletiva, sem provas e sem regras, o principal instrumento de subjugação da vontade popular. O executivo não governa, apenas administra. O legislativo não cria o direito, mas, apenas, as leis.

Neste segundo caso, não é tão simples enxergar esquerda e direita, democratas e autoritários, e devemos, sim, relativizar as posições de aliados e adversários para figuras como Contarato e Randolfe Rodrigues, de um lado, e figuras como Renan Calheiros e Rodrigo Maia, de outro. Compreender, posicionar-se, e atuar na luta política da atualidade é de doer e revirar o estômago.

Um comentário:

  1. As 'regras ' do jogo não funcionam como uma espécie de conjunto de procedimentos éticos -jurídicos que integrem uma instituição autônoma. Estão,antes, subjugadas por interesses classistas que lançam mão desses dispositivos aparentemente legais para que se perpetue uma hierarquia oligárquica supremacista sobre qualquer veleidade de justiça social. Dois pesos, duas medidas. O Judiciário como um todo só faz perpetuar a opressão do próprio Estado ( via impostos, ações policiais,normas) sobre os menos favorecidos. Tanto isso é incontesti que observamos que a sociedade civil necessita sempre e cada vez mais de organizações não governamentais e outra associações para servirem de observadores e contra peso além de cobrar uma posição da justiça contra violações de direitos das minorias . Ontem tivemos uma canetada do verme, que acintosamente ocupa o cargo máximo do executivo ,liquidando dezenas de Comissões em prol de indígenas, vítimas de organizações criminosas, pessoas em situações de riscos etc...Como o miliciano encontra-se blindado por esse mesmo judiciário mercenário, observamos que a Justiça estilhaça os princípios e ordenamentos sociais arduamente conquistados pelo povo brasileiro. Agora, como pode essa ' justiça' blindar um elemento que trabalha sistematicamente para o descrédito dessa mesma instituição ??

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