Flamengo, a Bíblia e o Mito, por Paulo Branco Filho


Depois de uma eleição movida a ódio e intolerância, o esgotamento tomou conta até mesmo do mais radical. Aquele que prometia fazer e acontecer pós-eleição, decidiu-se por uma trégua, um repouso.

Consolidada a ideia de evitar desgastes improdutivos, todo mundo passou a pisar em ovos, com um medo danado de entrar em novas discussões.

Foi nesse clima que começara a conversa entre o passageiro e o motorista de taxi. Ao fundo, no rádio do veículo, a narração de um jogo do Flamengo era a ponte para um ameno início de conversa, quase desinteressado. O rubro-negro afinaria os dois, contribuindo para uma viagem leve e afastando o risco de caírem nos sistemáticos arroubos de ódio movidos por supostas diferenças políticas.

Acontece que o passageiro era um flamenguista xoxo, que perdera o saudosismo pelo time há tempos. Nisso, havia um indisfarçável rancor, já que, para o sujeito, ir ao estádio era um hábito dominical religioso, que cultivara junto ao pai desde os tempos de criança.  Despretensiosamente ele inicia sua catarse, hábito comum em viagens de taxi:

- É meu amigo, foi-se o tempo do Flamengo popular e campeão... Esse time não vai ganhar nada, mais uma vez. Acabaram com a sinergia vitoriosa entre os jogadores e a torcida.

O motorista, mesmo sem querer perder a esperança na virada, foi conduzido a uma breve análise racional, convertido em um simples assentir de cabeça. Não se sabe se aquele era um sinal verde para que o cliente prosseguisse, ou se o sujeito estava economizando gestos para não ter sua atenção desviada do jogo.

Fato é que, todo passageiro, inconscientemente, exige do motorista um pouco de analista, terapeuta. Como se paga pela corrida, acredita-se que também se paga pelo ouvido do chofer: uma imposição indireta e desigual, já que quase ninguém aceita, ou faz sala com um motorista chato.

Percebendo a ausência de objeção, o passageiro entusiasmado, prossegue:

- O torcedor popular do Flamengo foi excluído das arquibancadas; não ganha um título de expressão faz anos e passou a comemorar vendas milionárias como se aquele dinheiro fosse para pagar suas próprias dívidas.

O piloto voltou a concordar, só que dessa vez foi muito mais enfático e presente: - “é isso mesmo, você está coberto de razão!”.

 A sintonia agradável, muito mais por não haver discordância do que por gestos alegres, trouxe a memória do piloto uma nostálgica lembrança dos tempos de glória que ele vivera com o Flamengo:

- Eu ia todo domingo ao estádio. Já vi o Flamengo com times capengas ser empurrado à vitória pela torcida. Era uma coisa de louco. Os jogadores corriam por nós!

O passageiro, sentindo-se cada vez mais à vontade, já tinha plena convicção de que dialogava com um aliado político, afinadíssimo em convicções:

- Pois é camarada, agora virou um programa para poucos e, inacreditavelmente, a maioria está achando ótimo. Vibram por uma venda milionária; não reagem a um ingresso caro. Nisso, quebrou-se a tradição rubro-negra, a cultura do futebol como lazer para todos. Como pode o Flamengo jogar sem ter nas arquibancadas o torcedor popular, sua maior referência e força para conquistar títulos? - Tomando fôlego, utiliza os instantes de uma longa respiração para avaliar se continuava ou não a crítica que, em breve, desaguaria numa analogia política. Como ambos caminhavam na mesma direção, ele decide, com pouca prudência, avançar:

- O flamenguista é como muitos brasileiros nas últimas eleições: ouviu do candidato falas excludentes; ouviu que o sujeito irá cortar direitos; que vai vender nossas riquezas para os estrangeiros e ainda o chamam de mito. É o neoliberalismo hipnotizante, capaz de idiotizar a própria vítima.

Subitamente, o motorista estremece na cadeira, empurra os óculos contra o rosto e acelera o carro. O clima da viagem muda abruptamente.

O passageiro, lamentando o início de constrangimento, silencia. Mas, era tarde demais. Apoiado com a mão direita numa Bíblia sob o porta-luvas, o taxista vociferou impropérios, amparados em novas e delirantes teses religiosas. Trazia, novamente, à tona, tudo que ninguém, com o mínimo de sensatez, gostaria de ouvir: insultos, notícias falsas e um moralismo tosco, doentio.

Numa fé distinta a do motorista, o passageiro medita até o destino final e pela superação de uma náusea insuportável.  

Simultâneo ao final da corrida, o adversário do rubro-negro faz mais um gol, decretando a derrota do Flamengo e o distanciamento de mais um sonhado título. Por maior que fosse a grandeza de ideias e ideais do passageiro, no seu íntimo ele, infantilmente, comemora.

O fim da corrida é marcado por uma confusão de gestos, que mistura ódio, fanatismo e irracionalidade: o taxista esquecendo-se do jogo vira-se para o passageiro, que já estava fora do carro, bate com a palma da mão três vezes contra a Bíblia e grita:

- Chora mais, isso aqui é Flamengo: mito, mito!
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Paulo Branco Filho é cronista e professor de artes marciais.

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