O judiciário brasileiro: de poder contra-majoritário a poder atuante contra o Estado, por Maria Abreu

Publicado no Escuta.


A discussão sobre a legitimidade do recebimento de auxílio moradia por juízes detentores de imóveis próprios tomou as páginas dos jornais e revistas do país. Essa agitação acelerou que o Supremo Tribunal Federal a colocasse em pauta, para que julgue o processo em que já havia uma decisão liminar do Ministro do STF Luiz Fux, de 2014, estendendo o auxílio moradia a todos os juízes. Estes reagiram, ameaçando entrar em greve. A falta de legitimidade dos privilégios do Judiciário já foi devidamente apontada por Fernando Limongi, em recente artigo no jornal Valor Econômico [I].

A primeira pergunta que surge a partir dessa reação é: os juízes têm direito de greve? [II] Essa pergunta não é feita aqui apenas como exercício de preciosismo retórico, ou de busca dos fundamentos últimos da atividade judicial nas democracias contemporâneas, mas sim para sustentar o seguinte ponto: o fato de os juízes pretenderem entrar em greve diante da possibilidade de cassação de privilégios é um sintoma da posição em que o judiciário brasileiro vem se colocando em relação ao Estado como um todo. A concepção de Estado adotada, aqui, é a mais simples, considerando que ele é formado pelo seu aparelho burocrático, seus agentes políticos, mas também e principalmente por sua população. O Judiciário faria parte do aparato burocrático, mas não da mesma forma que os servidores dos três poderes. Nesta posição, vem assumindo uma postura que tem se mostrado cômoda, de assumir poder cada vez maior sobre os assuntos do país, sem qualquer responsabilidade perante a população, do ponto de vista eleitoral. Em relação a possíveis responsabilidades estritamente jurídicas, os juízes são julgados apenas pelos seus pares, que têm historicamente manifestado uma solidariedade que poderia ser facilmente chamada de corporativismo.

Mas não é adequado nem conveniente atacar o judiciário de forma abstrata, pois sua forma atual histórica e brasileira não é suficiente para afastar, de forma simplória, a sua necessidade. As noções mais elementares de democracia remetem a sistemas de deliberação em que prevalece a vontade manifesta pela maioria. À regra majoritária, na tradição constitucionalista liberal-democrática, foi acrescentado um controle contra-majoritário, para evitar que maiorias pudessem massacrar ou até mesmo excluir minorias de uma comunidade política. Neste âmbito é que são preservados os direitos humanos e todos os direitos de minorias populacionais deles derivados. Nessa mesma tradição, é pacífico o entendimento de que o Judiciário é o poder constitucional que exerce a função contra-majoritária. Uma de suas principais funções é justamente garantir que cada indivíduo será protegido pelo ordenamento jurídico ao qual está submetido, sem estar ameaçado pelo desejo, pelos instintos, ou mesmo pelos interesses de maiorias circunstanciais.

Essa proteção do indivíduo, levada à escala territorial de cada estado soberano, significa a proteção da própria ordem constitucional, necessária para o estabelecimento de uma rotina jurídica e política nesses Estados, rotina essa capaz de dar segurança às relações sociais principalmente de cunho econômico, que necessitam de previsibilidade, tanto para a geração de riqueza, quanto para a construção de uma estrutura institucional de garantias e incentivos mais justa.

Na defesa da ordem constitucional, o Judiciário se coloca não somente como protetor dos direitos individuais, mas também como freio de arbítrios majoritários vindos do Legislativo, ou de caprichos vindos do Executivo, ainda que este, no caso brasileiro, devesse ser o resultado da expressão majoritária da população de todo o Estado, o que nem sempre ocorreu em nossa história.

A partir da Constituição de 1988, apostou-se muito nas garantias do exercício da função judiciária. Saindo de um regime de exceção, em que a inamovibilidade dos juízes foi revogada, possibilitando inúmeros expurgos, garantias como vitaliciedade e inamovibilidade voltaram a ser garantidas. O poder Judiciário foi se fortalecendo com o tempo. Havia expectativas positivas de sua atuação [III]. A remuneração dos juízes foi valorizada e cada vez mais se consolidou a autonomia financeira e organizacional desse poder.

No entanto, ao longo de sua atuação, o Judiciário, em geral – não me refiro aqui ao Supremo Tribunal Federal, que referendou, durante muitos anos, de forma substantiva as emendas constitucionais mais relevantes propostas pelo Executivo -, se colocou em uma posição bastante peculiar em relação ao Estado.

Em relação à política de ordenamento do solo – de competência dos municípios -, nas desapropriações, fixou a cumulação de juros moratórios e compensatórios na indenização a ser paga pelos erários municipais [IV]. Esta medida poderia parecer justa, se considerássemos que a desapropriação de um imóvel estabelece a relação de um Estado todo-poderoso contra um pobre indivíduo, que se tornou proprietário com muita luta e suor do seu trabalho. No entanto, não é exatamente disso que se trata o volume de recursos que correspondem aos valores de indenização aos quais os municípios foram responsabilizados. Ter um imóvel desapropriado, em muitos casos, se tornou um bom negócio [V]. Por outro lado, o crescimento do passivo em precatórios foi um dos elementos a inibir os gestores municipais de realizar as desapropriações necessárias para fazer as devidas e justas reformas urbanas. Situação semelhante dificultou também os procedimentos necessários para que medidas em direção a uma maior justiça na distribuição fundiária agrária fossem tomadas.

No caso da saúde, muitas decisões foram tomadas de modo a proteger o indivíduo a qualquer custo. Em cada caso levado ao Judiciário, o Estado era condenado a pagar tratamentos caríssimos, mais uma vez entendendo que o indivíduo deveria ser protegido e esquecendo que os recursos estatais são escassos e os serviços prestados por ele devem ser, na medida do possível, universais [VI].

Nesses dois campos, o Judiciário veio atuando predominantemente – embora haja lúcidas exceções – de uma forma apartada dos interesses mais amplos do Estado. Em inúmeros casos, não foi a ordem constitucional preservada, por meio da garantia dos direitos individuais, mas sim, foram os interesses particulares protegidos em detrimento do interesse comum, fundamento último de nossa e de qualquer Constituição, e que deveria ser a principal preocupação de cada agente do poder Judiciário.

Nos últimos anos, com denúncias de corrupção vindo à tona – sempre de forma bastante seletiva -, poderia parecer que o Judiciário estaria vestindo a capa da proteção ao interesse comum. No entanto, ao voltar-se principalmente contra os agentes políticos estatais – sendo mais brando com os corruptores detentores do capital privado -, parece reforçar sua índole contrária ao Estado. É como se seu esforço para distinguir-se dos demais poderes – sobre os quais recai toda desconfiança – se traduzisse numa separação que o deixa numa posição muito confortável, que é a da não responsabilidade sobre as consequências de seus atos. Expressão notável disso é o questionamento do poder discricionário da Presidência da República de nomear seus ministros. O que se constituiu um descalabro ocasião da tentativa de nomeação de Lula por Dilma [VII] – e uma jogada importante na articulação do golpe de 2016 -, não ocorreu novamente no caso da nomeação de Moreira Franco, participante do núcleo de decisões do atual governo, mas se repetiu na recente tentativa de nomeação de Cristiane Brasil, para o Ministério do Trabalho.

A ameaça de entrar em greve em decorrência da possibilidade de terem seus privilégios julgados pela Corte competente como ilegítimos parece agora ser o ápice dessa posição apartada. São agentes que utilizam de toda a autoridade do Estado, mas não atuam em nome dele. Ocupam a posição privilegiada de mobilizarem o uso da violência estatal, mas podem abdicar da responsabilidade vinda dessa autoridade, que já foi tão debatida na teoria política e bem caracterizada por Weber ao palestrar sobre que tipo de vocação deveria ter o político [VIII].

Ao defender seus privilégios, os juízes atentam contra o que está expresso no artigo 37, inciso XI da Constituição [IX], em sua redação modificada justamente para que auxílios de qualquer tipo – sobre os quais não incidem Imposto de Renda – pudessem ser utilizados como subterfúgio para que o teto de remuneração em toda a estrutura estatal nacional fosse ultrapassado.

Sem essa responsabilidade, os atos judiciais podem se transformar em verdadeiros manifestos idiossincráticos. Juízes podem inclusive fazer greve sem que nunca tenham seus pontos cortados – afinal, será um de seus pares coorporativos que dará a decisão final, inclusive sobre a essencialidade circunstancial de suas funções. Por meio de tais atos, além dos próprios juízes, alguns indivíduos – geralmente os já privilegiados – podem sair ganhando. Mas perde o Estado, não necessariamente seu aparelho burocrático, mas a sua população. Essa, pelo que estamos vendo, ainda vai ficar esperando que nossas instituições funcionem regularmente por um período maior que o de 30 anos.


Maria Abreu é cientista política, professora do IPPUR/UFRJ.

Notas


[I] Texto disponível em: http://www.valor.com.br/politica/5345877/casta-de-toga. Este texto já estava sendo escrito quando o artigo de Fernando Limongi foi publicado. Por conta dele, meu trabalho foi facilitado e foram feitas várias alterações. Além de sua contundência e oportunidade, o artigo de Limongi tem o mérito de recuperar material documental referente ao processo, ocorrido em 2005 e capitaneado por Nelson Jobim, de transformação de todos os penduricalhos de remuneração então recebidos pelo Judiciário, em uma única remuneração, submetida ao teto do artigo 37, inciso XI da Constituição.  Passados os anos, os penduricalhos voltaram e foram legitimados em 2014 por decisão de Luiz Fux, em que estendeu o benefício do auxílio moradia a todos os juízes. Ver notícia com link para a decisão em: https://www.conjur.com.br/2014-set-26/fux-estende-pagamento-auxilio-moradia-toda-magistratura. Acesso em 28/02/2018.

[II] Este texto foi escrito antes de a OAB/DF ter questionado a constitucionalidade da greve.

[III] Essas expectativas positivas foram registradas, dentre outros, por dois influentes professores brasileiros, Dalmo Dallari, em seu O Poder dos Juízes, e Luís Werneck Vianna, em diversos artigos sobre a judicialização da política. Em relação a Dallari, é necessário ressalvar que seu livro apresenta uma preocupação com a responsabilidade dos juízes em relação à população, mas é inegável o seu entusiasmo com o promissor papel do Judiciário como promotor dos preceitos contidos na Constituição de 1988.

[IV] Não estou aqui me referindo à remoção, na maioria das vezes descuidada e injusta, de moradias populares, mas à desapropriação com indenização prévia, cuja fixação de parâmetros remonta à Súmula 12 do Superior Tribunal de Justiça –  “Em desapropriação, são cumuláveis juros compensatórios e moratórios” e, mais recentemente, à Súmula 618 do STF, que fixou os juros compensatórios em 12% ao ano. Legislação posterior foi aprovada para dar um enquadramento mais razoável à cobrança de tais juros, mas os aplicados pelo judiciário são frequentemente danosos ao erário público. Pouca produção acadêmica tem sido publicada sobre isso, a partir de uma perspectiva do Estado e não do “direito fundamental individual à indenização prévia”.

[V] No caso específico de São Paulo, ver: LABHAB/FAUUSP, Relatório Final da Pesquisa Preço de desapropriação de terras: limites às políticas públicas nas áreas de habitação, meio-ambiente e vias públicas em São Paulo. Os resultados dessa pesquisa foram utilizados em artigos e livros posteriores de Ermínia Maricato.

[VI] Para uma análise de casos judiciais na área da saúde, sob uma perspectiva do Poder Executivo, ver os artigos publicados no livro organizado por Maria Paula Dallari Bucci e Clarice Seixas Duarte, Judicialização da Saúde – a visão do Poder Executivo, de 2017.

[VII] Neste episódio, vale registrar que, em sessão pública, o ministro Gilmar Mendes, nos debates acerca da decisão a respeito da nomeação, chega a apontar como argumento que a então presidenta estava tentando nomeado um “tutor”. Nessa mesma sofisticação de argumentação e de nível de desrespeito, qual seria o adjetivo próprio para Moreira Franco, em relação a Temer? “Testa de ferro”?

[VIII] A caracterização de Max Weber da responsabilidade do político chega a ser sombria. E por isso ele se coloca a pergunta: por que, então, o político faz a política? Para colocar os dedos na roda da história. A Política como vocação. 1919.

[IX] Reproduzo aqui a redação do art. 37. XI, da Constituição brasileira, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 41/2003: “XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsidio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)”. Disponível em compilação oficial em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 28/02/2018.

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