Lucidez Escravizada, por Paulo Branco Filho


Até pouco tempo falava-se do desastre, da tirania imposta pelo golpe de Estado, com uma mísera esperança de que algo magistral pudesse acontecer, mudando os rumos do país. As escassas possibilidades foram esvaindo-se, esmagadas pelo rolo compressor imposto pelo Estado e seus asseclas. Estamos estagnados diante da barbárie.

Todas as cartas desse jogo político foram escorrendo de nossas mãos, deixando a certeza de que é impossível crer nas instituições e nos sujeitos que controlam o país. O cerco fechou-se diante de nós, espalhando uma sensação de impotência.

A mídia, como sempre, vai se apropriando de cada episódio, direcionando a mente do povo como a convém. Numa jogada ensaiada entre poder público e os meios comunicação, após cada ação antipopular e desastrosa do governo, jogadas encobertas de marketing político, seja da lava jato ou do próprio governo, ressurgem como uma anestesia, capaz de reanimar os ânimos moralistas e cínicos de parte da sociedade.

O assassinato bárbaro da vereadora Marielle vai sendo exposto de forma confusa, para enfim, de forma matreira, ser direcionado a uma simples falha de segurança pública, último tema lançado pelo governo, avalizado pela mídia e abraçado pela classe conservadora. Uma tentativa vil de maquiar o desastre que o comando golpista impõe a sociedade.

A intervenção e suas bravatas, diante da população mais carente, chegam ao seu ponto máximo: o terrorismo de Estado, que assassinou quem ousou denunciá-lo. Uma continuação do que se viveu na ditadura militar. Tudo isso é um tenebroso recado para os que buscam combater a perversão do sistema, principalmente aos que tem a origem de Marielle.

No meio de toda essa turbulência desastrosa, vale citar o livro A Elite do Atraso, de Jessé de Souza. Dentre muitos assuntos, a escravidão, mais uma vez, ganhou o protagonismo.

Falo disso, pois é impossível não associar tudo o que se vive a ela. Para classe escravizada, há poucas saídas. Uns aderem ao banditismo, outros abraçam o suposto caminho do “bem”: vestem suas fardas e vão para o campo de batalha defender os interesses de uma minoria, apoiados na necessidade de sobreviver. Outros sofrem, como pacatos cidadãos, massacrados por um mísero salário e condições de vida escorchantes.

Também existem aqueles que, semanalmente, são levados aos programas do Huck ou Faustão para contar suas histórias de vida, que tem como objetivo nos fazer crer na falaciosa tese de que a meritocracia salva uma nação desigual. Recheado de apelo emocional, aqueles 0,01% de pessoas que superam as mazelas sociais e conseguem alguma coisa além da miséria, tornam-se exemplos de um sistema fajuto, que insiste em nos fazer acreditar que, se o sujeito for honesto e lutar muito, ele chega lá. Os que superam as dificuldades e ousam criticar o sistema, quando não são boicotados ou marginalizados, tem o seu destino posto em cheque, com foi o caso de Marielle.

Tomando fôlego, temos que digerir que vivemos sobre um Estado de exceção e que a nossa sociedade, ainda escravocrata, sofre de uma esquizofrenia insuportável. É isso mesmo. A convivência e os diálogos têm sido cada vez mais difíceis: a ignorância e o cinismo dominam grande parte das interpretações sobre os fatos. A lucidez tornou-se uma raridade, diante de uma massa mentalmente escravizada, que se alimenta de clichês infantis e ódio.

Que todos os progressistas se unam, amparem-se uns aos outros e catalisem movimentos transformadores, antes que, mais uma vez, a mídia, os movimentos financiados pelos americanos e as grandes corporações, tomem a dianteira do processo, fazendo com que a grande massa continue a correr, sem sair do lugar.

Força, maturidade e criatividade para a nossa reinvenção. 


Paulo Branco Filho é professor de artes marciais e cronista.

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