De Lacerda a Temer, por Guilherme Boulos

Publicado na Carta Capital.


O anúncio de reajuste de salário mínimo, de 937 para 954 reais a partir de 1º de janeiro, mostra como o cinismo do governo Temer e de seus aliados na mídia não tem limites. Revela ainda como os números podem mentir.

O aumento nominal de 1,81% esconde uma queda real, já que a inflação do ano passado ficou em 2,95%, segundo estimativas do próprio Banco Central. Não é preciso ser economista para saber que, se os preços aumentam mais do que o salário, o efeito é uma queda salarial, uma redução no poder de compra dos trabalhadores.

Mesmo considerando o aumento nominal, foi o menor nos últimos 24 anos, desde o Plano Real. Em nenhum ano desse período o reajuste nominal havia ficado abaixo de 5%, sendo o mais próximo disso 1999, no governo FHC, com 5,79%.

Em termos reais, a corrosão é ainda mais grave ao considerarmos a previsão inflacionária para este ano, que varia de 4% a 4,3%, segundo estimativas do BC e de instituições financeiras, puxada por uma provável alta no preço dos alimentos, gênero de primeira necessidade.

Desde 2003, segundo o Dieese, não havia ocorrido queda no valor real do salário mínimo. Em 2017, o reajuste real já havia ficado em zero.

Isso ocorre em meio a uma das mais profundas crises econômicas da história nacional, o que é um contrassenso, ao contrário do que sugere o argumento fiscalista. O aumento salarial é uma importante ferramenta de distribuição de renda, mas não só.

É também um dinamizador da economia, ampliando a capacidade de consumo. Estima-se que 39 milhões de cidadãos tenham rendimento com referência no salário mínimo.

Contraditoriamente, o discurso de recuperação econômica do governo Temer está baseado no aumento do consumo das famílias. O tímido crescimento do PIB nos primeiros trimestres de 2017 (1%, 0,2% e 0,1%, respectivamente) foi atribuído precisamente a esse fator.

Segundo previsão do Credit Suisse para este ano, a única luz no fim do túnel que pode levar a uma recuperação econômica é precisamente o consumo das famílias, com expectativa de alta de 3,1%. Ainda mais quando o chamado consumo do governo (o investimento público) deverá permanecer estagnado pela política de austericídio, que tem sua síntese na Emenda Constitucional 95.

A expectativa é de que se cresça com o consumo das famílias e, para isso, se reduz o salário mínimo. A genialidade salta aos olhos. Mas não se pode estranhar.

A disputa pelo salário mínimo é uma marca da história política brasileira desde sua criação, em 1940, por Getúlio Vargas. O aumento salarial sempre foi a antessala de golpes e os governos golpistas sempre atuaram decididamente para achatá-lo.

Os três grandes movimentos golpistas do século XX foram precedidos por processos de valorização do salário, em maior ou menor grau. Em 1º de maio de 1954, Vargas anunciou aumento de 100% do salário mínimo, adotando a proposta de seu ex-ministro do Trabalho, João Goulart.

Foi o estopim do movimento civil-militar, capitaneado por Carlos Lacerda, para derrubá-lo. Seu suicídio, em agosto, com a consequente comoção popular, adiou a consumação do golpe por dez anos.

Em fevereiro de 1964, João Goulart, então como presidente, aumentou o salário mínimo novamente em 100%. No ano anterior, já havia concedido um reajuste de 56%. Veio então o golpe, que estabeleceu 21 anos de ditadura no País. Durante o regime militar, o salário mínimo perdeu mais de 50% do seu valor real.

E acrescente-se aqui um dado curioso: a inflação disparou, contrariando o argumento neoliberal que relaciona movimentos inflacionários aos aumentos salariais. Como já mostrou Bresser-Pereira, em seu estudo sobre o desenvolvimento econômico brasileiro, a inflação nacional é, sobretudo, uma inflação de custos, mais do que de demanda.

O fenômeno repetiu-se no mais recente golpe de nossa história, ainda que com menor intensidade. Durante os 13 anos dos governos petistas de Lula e Dilma, o salário mínimo acumulou uma valorização real de 77%, contribuindo para a recuperação do poder de compra dos trabalhadores e para uma redução do abismo social.

É verdade que esse avanço foi mais gradual no tempo e com menos conflitos do que nos casos de Getúlio e Jango. Mas é igualmente verdade que precedeu um novo golpe, consumado em 2016.

Por tudo isso, olhando a nossa história, não é nada surpreendente que o governo Temer tenha estagnado o salário mínimo no ano passado e o rebaixado agora em 2018. É para garantir medidas como essa que os golpes são feitos.

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