A energia e sua dupla face: de bem comum a mercadoria, por William Nozaki

Publicado no Jornal GGN.


Economia e escassez:


A ciência econômica de tintura tradicional, ortodoxa, costuma estabelecer como seu objeto de estudo a escassez, ou para ser mais preciso: a distância entre a escassez de recursos e a abundância de desejos. O que se omite e se distorce nessa interpretação é o fato de que as próprias noções de escassez e abundância são construções históricas e sociais que sofrem profundas transformações com a emergência da economia de mercado.

Em outras palavras: a economia ortodoxa toma como premissa da sua análise aquilo que deveria ser o objeto da sua investigação: a escassez. Ao contrário do que imagina o senso comum, como nos lembra o historiador Fernand Braudel, não é a escassez que cria o mercado, o mercado é que cria a escassez na medida em que converte bens comuns em patrimônios privados. Vejamos como isso se deu no caso da terra e do trabalho, como nos ensina Karl Polanyi.

A construção da escassez de terra e trabalho nos séculos XVIII e XIX:


No que se refere à terra, o território conformava o elemento crucial da ordem pré-capitalista servindo como base para o sistema militar, político, jurídico o e administrativo, exatamente por isso suas natureza e função eram determinadas por leis e costumes, questões como: a transferência da posse, o direito de propriedade e as formas de utilização das terras  ficavam fora das negociações de compra e venda, sujeitas a um conjunto diferente de regulamentações institucionais regidas pelo direito divino e pelo direito régio. Na França e na Inglaterra, por exemplo, a terra permaneceu como bem extra commercium até as grandes revoluções liberais do século XVIII. O objetivo da mercantilização da terra é torna-la um bem escasso exatamente para que seu preço torne impeditivo o acesso a esse que até então era um bem coletivo.

No que se refere ao trabalho, por seu turno, em medida análoga, nos sistemas que antecedem o capitalismo, as relações entre mestres, artesãos e aprendizes, bem como as formas de organização das oficinas, as condições de trabalho nas corporações e as remunerações de trabalhadores eram questões regulamentadas pelos costumes das cidades e pelos hábitos das próprias guildas. Na Inglaterra, os primeiros sinais de proteção trabalhista, o Statute of Artificers de 1563 e as Poor Laws de 1601, só foram revogados, respectivamente, em 1813 e 1834. Uma vez mais, o objetivo da mercantilização do trabalho é torna-lo um bem escasso justamente para que sua precificação permita a expropriação do corpo e dos saberes dos trabalhadores, um ativo que até então era um bem personalíssimo.

A terra no século XVIII e o trabalho no século XIX deixaram de ser organizados pelas leis feudais e pelos costumes mercantilistas e passaram a se converter em mercadorias no mesmo instante em que o mercado se apresentou como instituição capaz de se auto-regular e o Estado emergiu como entidade que atua em aliança como fiadora dessa ordem econômica que ao tornar comercializável a subsistência vinda da terra e o trabalho vindo do corpo transformou em mercadoria a própria noção de boa vida, que agora passa a ser também um bem escasso. 

A construção da escassez de energia e petróleo nos séculos XX e XXI:


Mas a conversão de terra e trabalho em meras matérias-primas e mão-de-obra na escala exigida pelo capitalismo só poderia acontecer acompanhada das diversas etapas da revolução industrial e das mudanças de paradigma promovidas no âmbito do setor de energia. Nesse sentido, talvez possamos considerar a energia como o grande recurso estratégico que foi convertido em bem escasso ao longo do século XX.

A história da conversão da energia de bem comum à commodity, ao contrário do que se pensa, é um capítulo menos econômico do que político e o avanço da hegemonia do petróleo, ao que tudo indica, é uma questão não apenas tecnológica, mas, sobretudo, social. Na virada do século XIX ao XX as exigências trazidas pelo capitalismo industrial e urbano fizeram com que o carvão como fonte de energia manufatureira e o óleo de baleia como fonte de iluminação pública fossem substituídos por energias derivadas do petróleo.

No início do século XX a lamparina a óleo estava sendo substituída por gás e eletricidade, nesse mesmo período a indústria automobilística estudava a construção de motores movidos a eletricidade e gasolina. Vale destacar: Henry Ford dispunha das opções de investir em motores a gasolina ou a eletricidade, a vitória do primeiro sobre o segundo tem pouca relação com problemas de desenvolvimento tecnológico e mais relação com questões geopolíticas: a descoberta de novas jazidas nos EUA e no Oriente Médio, bem como a utilização de derivados do petróleo para a marinha e para a aeronáutica, principalmente nas duas grandes guerras, levou a indústria automobilística a optar também pelos derivados de petróleo.

Desde então a história da energia tem se confundido com a história da escassez (ou abundância) de petróleo, entendido agora como recurso natural estratégico. Desde então, em certa medida, inovações tecnológicas que poderiam transformar o acesso a energia em um bem comum universal, barato e limpo tem sido obstruídas em nome da manutenção dessa que é a grande escassez produzida no século XX que é a escassez de petróleo, e, consequentemente, de energia, pois, apesar da existência de fontes alternativas o óleo e o gás seguem sendo ainda hoje as principais fontes energéticas do capitalismo desse início de século XXI. Mas observamos mais alguns passos dessa trajetória histórica.

No início do século XX, o inventor francês Rudolf Diesel dedicou boa parte de suas pesquisas para a criação de biocombustíveis e energias limpas, em 1897 registrou a patente do primeiro motor movido a óleo vegetal, suas pesquisas foram desencorajadas e em 1913 seu corpo e seus pertences foram misteriosamente encontrados boiando no Canal da Mancha.

Na primeira metade do século XX, Nicola Tesla, engenheiro e inventor austríaco, em parceria com o empresário George Westinghouse, realizou inúmeros experimentos com eletromagnetismo e transmissão de eletricidade sem fio, apesar do comprovado sucesso de suas pesquisas foi vencido pelo oligopólio formado por Thomas Edison e J.P. Morgan que já detinham boa parte das concessões para a geração e transmissão de energia elétrica com fio por meio da General Eletrics. Em 1953 Tesla faleceu pobre e esquecido em um manicômio.

O inventor norte-americano Stanley Meyer criou e patenteou nos anos 1980 o primeiro processo capaz de fazer motores de combustão interna se moverem com água. Entretanto, a tecnologia de Meyer foi objeto de contestação judicial e o pesquisador morreu subitamente em 1998, em um restaurante em condições que não foram esclarecidas até hoje vítima, ao que tudo indica, de envenenamento. Nessa mesma década Paul Pantone, também norte-americano, desenvolveu um tipo de motor que pode ser abastecido com diversos líquidos e não emite poluição, mas suas invenções continuam carecendo de investimentos que permitam a aplicação em grande escala. Algo análogo ocorreu com Eugene Marlowe que buscou desenvolver motores movidos a fusão a frio e com fontes energéticas não escassas.

Energia e abundância:


Independente do sucesso ou fracasso de inventores como Diesel, Tesla, Meyer, Pantone e Marlowe, o que importa notar é que o desenvolvimento de uma matriz energética abundante, universalizável, barata ou gratuita e limpa ou menos poluente, povoou a imaginação e a utopia desses cientistas e engenheiros.  Certamente isso só foi possível porque não necessariamente a energia precisa ser tratada como um bem escasso, se assim se deu, vale reiterar, foi menos por dificuldades tecnológicas e técnicas e mais por decisões políticas e empresariais tomadas em determinados momentos de possíveis transformações na matriz energética.

Tal quadro explicita como qualquer transição energética do petróleo rumo a energias renováveis e limpas é eminentemente uma questão geopolítica e geoeconômica, justamente por isso o tema não pode ser resumido a platitudes ambientas e ecológicas de certo capitalismo verde marcado pelo simplismo e pelo voluntarismo.

No entanto, tal reconstrução histórica é importante também para evidenciar como a busca pela segurança e pela autossuficiência energética, entendendo tal gesto como promoção do bem estar, não deve ser esquecida. Os séculos XVIII e XIX transformaram terra e trabalho em mercadorias, o século XX converteu a energia e o petróleo em mercadorias. Um dos desafios do século XXI para a construção de uma sociedade mais igualitária e sustentável certamente passa por pensar a energia não como commodity, mas novamente como um bem comum, enfrentando todas as grandes questões estratégicas impostas por esse debate.


William Nozaki é Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

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