Humanismo, igualitarismo e democracia, por Ion de Andrade

Publicado no Jornal GGN.


No Manifesto Comunista, Marx discorre sobre a dinâmica das relações entre a burguesia e o proletariado naquela primeira metade do século XIX. Trata-se, portanto, de um escrito político e não acadêmico e portanto sem preocupações maiores, por essa razão, com uma conceituação prévia e rigorosa de diversos conceitos e categorias utilizadas. Se fosse um quadro, seria impressionista. A vantagem do impressionismo é que fica melhor com a distância.

Embora o proletariado fabril tenha sido bem definido, pois o manifesto atribui a ele o papel central da condução do processo revolucionário e traça dele verdadeira etnografia, também atri­bui a condição de proletários aos intelectuais egressos das clas­ses dominantes, assim como atribui convergência para o proletariado a segmentos que passaram à condição de assala­riados sob o poder burguês, como o médico ou o jurista:

"A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados." 

e

"Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou-se para a burguesia, em nossos dias, uma parte da burguesia passa-se para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto."

No Manifesto o papel central atribuí­do por Marx ao operariado fabril no processo revolucionário se deve ao fato de que:

"A condição essencial da existência e da supremacia da clas­se burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos dos parti­culares, a formação e o crescimento do capital, a condição de existência do capital, é o trabalho assalariado. Este ba­seia-se exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e inconsciente, substitui o isolamento dos operários, resultante de sua competição, por sua união revolucionária mediante a associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros."

Os verdadeiros exércitos reunidos pela indústria aproxima­riam o proletariado de níveis mais avançados de consciência de classe viabilizando as lutas revolucionárias. Ainda na primeira metade do século XIX diz Marx sobre um fenômeno então auxi­liar das lutas do proletariado da grande indústria:

"O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito ime­diato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhado­res. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação (grifo meu) criados pela grande indústria e que per­mitem o contato entre operários de localidades diferen­tes. Ora, basta esse contato para concentrar as numerosas lutas locais, que têm o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, em uma luta de classes."

O cerne da questão é, portanto, a superação de uma situação fragmen­tada em que uns concorrem com os outros por outra na qual vai sendo forjada pelas lutas uma vontade coletiva, associativa e em seguida partidária, que suplanta aquela de natureza individual.

Embora 169 anos nos separem do Marx do Manifesto, todas as variáveis postas por ele à mesa ainda estão presentes hoje, embora devamos reconhecer que os seus pesos relativos mudaram assu­mindo cada componente citado maior ou menor caráter estratégico.

O conceito abrangente de proletariado como uma federação, por exemplo, parece continuar válido; a internet porém desempenha papel incomparavelmente mais relevante na formação da vontade coletiva, obviamente, do que o telégrafo do século XIX... O protagonismo político estratégico, aliás, já não se assenta mais preponderantemente sobre os ombros do proletariado fabril como no século XIX, parecendo assentar-se sobre os ombros do conjunto dessa federação proletária, cujos limites conceituais são, desde Marx, amplos.

A essa conceituação ampla e federada do proletariado, devemos, para compreender o fenômeno no seu conjunto, agregar a ideia da sua emancipação ou da sua conversão em “classe para si” quando incorpora uma identidade consciente e uma ação política. Diz Marx n'A Miséria da Filosofia de 1847:

"Assim, esta massa já é uma classe em relação ao capital, mas não ainda para si mesma. Na luta, de que assinalamos apenas algumas fases, esta massa se reúne e se constitui enquanto uma classe para si mes­ma. Os interesses que ela defende se tornam interesses de classe. Mas a luta classe contra classe é uma luta política."

Como vemos, em Marx os limites entre o proletariado “estrutural” (a classe em si) e o proletariado superestrutural (a classe para si) são perceptíveis na ideia de que o proletariado “já é uma classe” em relação ao capital e “se constitui como classe”, quando assume papel protagonista nas lutas políticas. A afirmação de Marx de que o proletariado deva constituir-se como classe nas lutas, pressupõe, portanto, um proletariado estrutural (em si), que já se constituiu como classe perante o capital, e um prole­tariado superestrutural (para si), que deve se erguer a uma con­dição politicamente protagonista.

Tal como está ex­presso, compõe, portanto, o proletariado o operário fabril e o burguês desgarrado, um pela sua condição estrutural e outro pela sua adesão superestrutural. Podemos perfeitamente compreender isso pelo fato de que não poderia haver um “proletariado superestrutural” se não existisse um proletariado estrutural que o pre­cedesse historicamente. Esse proletariado superestrutural é, pois, um brotamento do proletariado estrutural e faz com ele um todo único. As ideias que ele assume no campo da política não poderiam existir se esta classe social não tivesse surgido historicamente, por meio do modo de produção capitalista e ainda mais precisamente pela consciência de classe oportunizada pela grande indústria. Isso significa que uma vez consolidado o capitalismo em sua fase industrial (pois houve outras) e descortinada a missão histórica e as ideias do proletariado, poderão dele fazer parte segmentos so­ciais não proletários que foram assimilados ao proletariado pela adesão à sua ideologia e à sua missão histórica.

Estabelecida, portanto essa precedência histórica, poderão figurar no cenário da superestrutura, enquanto proletá­rios emancipados, cidadãos de origens sociais as mais diversas, dentre os quais também egressos da burguesia.

Outra coisa que é importante notar nessa transfiguração da “classe em si” em  “classe para si” é o fato de que ela é processual (uma autoconstrução) ocorrendo por uma tomada de consciência decorrente da superação de uma singularidade individual, que leva uns a concorrerem com os outros, por uma identidade universal e cooperativa no campo da política em defesa de seus interesses coletivos. Isso significa que a expressão política dessa emancipação refletirá os níveis variados que tiver alcançado, o que explica em parte o caleidoscópio de diversidade existente no campo da esquerda.

Aquilo a que denominamos de cidadania hoje, conceito que é lembrado no preâmbulo de inúmeras políticas públicas, que é a alma dos movimentos sociais e que amalgamou-se à Constituição de 88, é, pois, a expressão superestrutural de um prole­tariado estrutural que se emancipa e de segmentos de outras classes sociais que se rebelam incorporando uma militância política e uma elaboração intelectual convergentes com a transição ao socialismo que capilarmente estamos construindo através de uma série de conquistas desalinhadas com o Estado burguês. Se o conceituarmos politi­camente, em lugar de topograficamente, pela pertinência à estru­tura ou à superestrutura, podemos também afirmar que o prole­tariado superestrutural que disputa a hegemonia da Sociedade Civil com a burguesia é a esquerda política, seus diversos partidos e organizações, que tem uma ação igualitarista no cenário das lutas.

Lembremo-nos que os componentes formadores do proletariado citados por Marx no Manifesto alteraram os seus pesos relativos, lembremo-nos também que o Estado restrito foi ampliado, (pela ação do proletariado) produzindo um crescimento exponencial da Sociedade Civil e que os governos, apesar de estarmos vivendo um Estado de exceção,  passaram a assentar-se mais sobre o consenso do que sobre a força.

Diferentemente, portanto, do que constatou Marx no século XIX, em lugar do operariado fabril, é hoje essa cidadania igualitarista (para o bem ou para o mal o proletariado superestrutural) o núcleo estratégico do processo revolucionário contemporâ­neo que disputa o poder político assentado na Sociedade Ci­vil e nos Poderes constituídos. Essa esquerda é também o primeiro esboço de uma humanidade que superou os seus limites classistas.

Diferentemente também do que formularam Lênin e Grams­ci, a ideologia deste proletariado não é especificamente o marxis­mo, embora este possa fazer parte da sua constelação ideológica, provavelmente como a sua expressão mais completa.

Os três elementos fundadores do que poderíamos denomi­nar de ideologia do proletariado, sob esse prisma impressionista e amplo, e que farão emergir um socialismo demo­crático e pluralista, estão alinhados com os três grandes eixos da sua emancipação. São eles: a. No plano da subsistência e da vida ma­terial o Igualitarismo, que estabelece profunda diferença ética com a burguesia por não admitir legitimidade no acesso às oportunidades à renda; b. No plano da vida espiritual, o Humanismo cujos valores culturais são includentes, contrariando a sua mercantilização com base no mercado e nas relações de poder e; c. no plano da política, a Democracia participativa e ampla em oposição à burgue­sia, que nos propõe sistema autoritário e plutocrático.

A cidadania pluralista, sustentada na tríade Igualitarismo, Humanismo e Democracia, que disputa a Sociedade Civil, é um desdobramento superestrutural de uma realidade estrutu­ral prévia: as relações capitalistas de produção e a presença de um proletariado a um só tempo dominado e revolucionário. Não existiria, portanto, a cidadania que conhecemos e que se expres­sa através dos movimentos sociais e da vida política, sem a precedência histórica de um proletariado dotado de interesses sociais próprios e de uma visão de mundo definidora de uma cosmologia que lhe é inteira­mente específica e revolucionária. A cidadania que atua nos movimentos sociais, a esquerda política e o proletariado estrutural são, pois, uns e outros o mesmo fenômeno, expresso em níveis e em momentos diferentes do bloco histórico.

Na continuação abordaremos 1. O socialismo pós capitalista, 2. A concorrência entre o Estado de direito e as Repúblicas populares, em detrimento dessas últimas e em que isso foi estratégico para o proletariado e 3. A via brasileira ao socialismo.


Ion de Andrade é Médico e professor universitário. É colaborador de uma instituição social ligada à igreja católica num bairro popular de Natal. Está concentrado no estudo dos avanços sociais e da emancipação das periferias como fatores da ampliação da democracia política. É autor do livro “A Hipótese da Revolução Progressiva” que propõe um novo modelo de transição ao socialismo.

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