Sobre alguns supostos privilégios de políticos, Raul Seixas e a proteção do voto popular, por Julia Demuth


Se você acredita que democracia é importante, deve continuar lendo. Caso não, nem precisa se dar ao trabalho de ler até o final.

Existe um princípio na democracia que é a proteção do mandato popular, eleito democraticamente. Buscas-se protegê-lo de várias formas, como garantia para a democracia. Entretanto, há muita gente que é contra a democracia, mas sabe que é feio dizer isso, então deturpa o sentido dos mecanismos de proteção ao mandato democrático, como se tais mecanismos instrumentais fossem coisas independentes e ruins, comparando-os a privilégios. Um exemplo é a chamada imunidade parlamentar.

Os parlamentares eleitos não representam TODA a população. Eles e elas representam partes da população, pois a população não é uma massa homogênea, são diversos grupos, de diversos tipos, compreendendo diversos interesses, muitas vezes interesses contrapostos entre si. Por isso, institui-se a chamada eleição proporcional, possibilitando que mesmo grupos minoritários consigam colocar representações de suas ideias no parlamento. O espaço parlamentar é mais do que um espaço de maioria, é um espaço de negociação das divergências. Mesmo nos ambientes autoritários há negociações de divergências e convívio de pluralidades. A diferença entre a democracia e o autoritarismo está na interdição de algumas opiniões e supressão de parte das divergências. A imunidade parlamentar só tem sentido de existir enquanto garantia de que aquele grupo social que conseguiu uma relevância suficiente para estar representado no parlamento possa livremente expressar suas opiniões através do mandato parlamentar. A imunidade parlamentar serve para impedir que um grupo social tenha cassada sua representação porque suas opiniões são consideradas inconvenientes. Não é uma proteção para a pessoa do parlamentar. É uma proteção ao voto popular, uma garantia para que aquela parcela da população continue a ver exṕressada no parlamento as suas ideias.

Outro exemplo de mecanismo de proteção é o foro por prerrogativa de função, muitas vezes chamado pejorativamente de foro privilegiado. Se cada pessoa que se sentisse ofendida pelo Bolsonaro pudesse ajuizar uma ação contra ele na sua própria cidade e o Bolsonaro tivesse que comparecer a todas elas para as audiências, isso seria uma forma de impedir o exercício do mandato do parlamentar. Por isso algumas propostas consequentes tentam não restringir o mecanismo de proteção ao voto popular, ao mandato eleito democraticamente, mas sim ampliar. Uma boa proposta é a que cria uma vara especializada na primeira instância da justiça federal em Brasília para que os membros do Congresso Nacional respondam perante juízo de primeiro grau, mas sem a necessidade de passar a semana inteira viajando o Brasil, tendo que responder a uma ação toda vez que um juiz de qualquer lugar resolver aceitar um pedido de intervenção judicial contra um parlamentar. Essa proposta abre a possibilidade do duplo grau de jurisdição para parlamentares e Ministros da República, direito hoje inexistente, porque são julgados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, desafoga este órgão de justiça e permite que as ações contra os representantes do povo sejam efetivamente apreciadas.

Outro mecanismo importante, muito comum para chefes de executivo estadual e federal, é a proteção de segurança para sua família. Não se trata de uma segurança para a pessoa. É uma preocupação de que impere o faroeste para as situações políticas. É uma preocupação de que as divergências na sociedade não sejam resolvidas pela melhor pontaria do revólver. Um chefe de executivo eleito ser assassinado é um problema para a democracia, independente se o político tem família ou não, pois é um impedimento de que a vontade popular, que deve ser soberana, se expresse. Mas isso não deve ser uma prerrogativa somente de chefes de executivo. Eventualmente, parlamentares, eleitos pelo voto popular em eleições democráticas, podem estar sob ameaça em virtude do exercício do seu papel político, como representante significativo de uma parcela da população que, embora não seja maioria, teve relevância suficiente para eleger um parlamentar. Também neste caso, é razoável que, em defesa da democracia, tal como a imunidade parlamentar, tal como foro por prerrogativa de função, o parlamentar esteja sob proteção policial o suficiente para garantir a continuidade do exercício de seu mandato. Mas tem gente que tem saudade do Cowboy de Raul Seixas, que não era besta pra tirar onda de herói, e ficava calado diante do absurdo.

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