Há opinião pública nas redes sociais digitais? Por Ana Paula Gilsogamo

Publicado originalmente no Jornal GGN.


Resumo: Este artigo se propõe a apresentar considerações e debater acerca do espaço de discussão digital, que com o avanço das tecnologias digitais, se enraizou no dia a dia das pessoas ampliando não apenas o espaço, mas a visibilidade da opinião e produção de conteúdo dos indivíduos. Sem a pretensão de esgotar o tema, neste artigo são permeados grandes teóricos, análises de dados e publicações oriundas das redes sociais visando compreender melhor a dinâmica entre os emissores e receptores de informação nesse novo sistema de comunicação, bem como o peso ainda presente da concentração de mídia e da agenda pública guiada pelos conglomerados da mídia tradicional. Isso tudo de forma a questionar o imaginário da existência de um novo indivíduo capaz de avaliação e opinião formada sobre fatos e teorias e, também, a existência e sensação da existência de uma opinião pública pura nas redes sociais.

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O novo sistema de comunicação baseado na internet e suas redes sociais digitais foi, e ainda o é, enxergado e anunciado por teóricos como um novo formato de comunicação que possibilita uma maior pluralidade de informação e de contatos entre comunidades e indivíduos sem, necessariamente, o intermédio das grandes mídias clássicas. Seguindo essa lógica muitos afirmam que o novo sistema é o começo da democratização da comunicação permitindo, pela primeira vez de maneira ampla e global – ou seja, para uma grande audiência, uma resposta clara, e mais do que isso, um início de diálogo e produção de conteúdo por parte daquele que antes era visto principalmente como um receptor passivo da comunicação.

Se por um lado, esses novos canais de fala oferecidos aos antigos receptores são um fato, e realmente trazem aos indivíduos comuns o poder de impactar certa audiência. Por outro, a crença cega de uma possível equiparação do poder de fala, uma idealização de que o antigo receptor agora atua de igual para igual com o antigo emissor, é equivocada por que passa a sensação de que o receptor age e pensa apenas por conta própria, sem a influência ideológica das mídias que tradicionalmente ditam a agenda pública. E pior, da a sensação ao próprio indivíduo e a sua audiência pessoal de que aquelas conclusões, pensamentos e opiniões não sofrem mais influência dos meios de mídia.

“O que caracteriza o novo sistema de comunicação, baseado na integração em rede digitalizada de múltiplos modos de comunicação, é a sua capacidade de inclusão e de abrangência de todas as expressões culturais (...). É precisamente devido a sua diversificação, multimodalidade e versatilidade que o novo sistema de comunicação é capaz de abarcar e integrar todas as formas de expressão, bem como a diversidade de interesses, valores e imaginações, inclusive a expressão de conflitos sociais” (CASTELLS, 2002. p 460)

Não quero aqui dizer que o ambiente digital não criou novos espaços de discussão e a oportunidade de inserção de novos agentes de fala, mas quero ressaltar a importância da não generalização e idealização do sistema de comunicação digital, especialmente o das redes sociais, como um ambiente extremamente plural, em que todos têm voz e não é induzida a ponto de passar a sensação errada de que aquilo que é comentado, publicado e, especialmente compartilhado, nas redes digitais possui maior representatividade e é, por essência, uma opinião pública mais pura, no sentido de menos induzida, subjetiva e totalmente individual, do que aquela que se apresenta nos demais canais de informação.

Tecnologicamente, e em termos de serviços e custos prestados, o acesso a esse novo sistema de comunicação, apesar de crescente, ainda está restrito no Brasil a 57,7% da população, predominantemente nas regiões mais urbanizadas e em domicílios com maiores rendas, como mostram os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015, divulgado pelo IBGE. Esse, por si só, já é um dado que atenta para o fato de que tal “novo modelo”, no Brasil especialmente por limitações de infraestrutura e recursos financeiros, representa apenas uma parcela da população e, apesar de gerar grandes movimentações especialmente dentro do âmbito do net-ativismo, deve se ter cuidado com a frequente generalização de que os tópicos mais abordados nas redes digitais são uma opinião pública de interesse, relevância e participação do todo.  

Outro ponto muito mencionado é o da ampliação da pluralidade de fontes de informações, como o advento das redes digitais. Essa movimentação é observada, mas ainda em ritmo muito mais lento do que a corrida feita pelos meios de mídia tradicional em busca de levar para o ambiente digital suas pautas, programação, audiência e ideologia, estendendo aos canais digitais o que é chamado de propriedade cruzada, que se trata da propriedade, pelo mesmo grupo, de diferentes tipos de mídia do setor de comunicações. Por exemplo: TV aberta, TV por assinatura, rádio, revistas, jornais e, mais recentemente, telefonia, provedores de internet, transmissão de dados, etc., modelo já muito comum no Brasil e em outros países.  

Para Pierre Levy, o novo sistema de comunicação

“Por um lado, enfraquece de maneira considerável o poder simbólico dos emissores tradicionais fora do sistema, transmitindo por meio de hábitos sociais historicamente codificados: religião, moralidade, autoridade, valores tradicionais, ideologia política. Não que desapareçam, mas são enfraquecidos a menos que se recodifiquem no novo sistema, onde seu poder fica multiplicado pela materialização eletrônica dos hábitos transmitidos espiritualmente: as redes de pregadores eletrônicos e as redes fundamentalistas interativas representam uma forma mais eficiente e penetrante de doutrinação em nossas sociedades do que a transmissão pelo contato direto da distante autoridade carismática” (LEVY, 1999. p.127)

Um exemplo, já nem tão atual assim, que foge um pouco da esfera da opinião pública, mas que ilustra bem essa realidade foi o lançamento do filme Harry Potter, em 2001. No momento em questão, o segundo executivo do grupo AOL Time e Warner, Richard D. Parsons, afirmou: "Você não será capaz de ir a lugar algum sem ouvir falar de Harry Potter". E a realidade foi exatamente essa. Uma grande operação de marketing foi montada envolvendo as mídias que o grupo possuía desde a produção e distribuição do filme até sua divulgação em diversos canais de mídia on e off-line, a venda de produtos licenciados, etc.

“A Warner Bros, um dos sete maiores estúdios de Hollywood, realizou o filme e exibiu anúncios e trailers nas emissoras de TV a cabo do grupo, além de comercializar o vídeo e o DVD do filme. A Warner Music produziu e comercializou a trilha sonora do filme em CDs e fitas K-7. A provedora de internet AOL (31 milhões de assinantes só nos EUA) ofereceu links dos produtos licenciados e vendidos por empresas do grupo. A Moviefone também do grupo promoveu o filme e vendeu ingressos por telefone e pela internet. A Time Inc., com seus 160 títulos impressos, publicou anúncios, promoveu concursos e fez reportagem de capa sobre o filme. O resultado de toda essa operação foi o sucesso mundial dos produtos Harry Potter. No Brasil, 1,2 milhão de pessoas assistiram ao filme somente na primeira semana do lançamento” (LIMA, para observatório da imprensa. 2003)

Ou seja, as redes digitais possibilitam sim o desenvolvimento de novos canais, mas também permitem que os grandes grupos de mídia se façam ainda mais presentes e, talvez de maneira ainda menos reconhecível. Uma vez que esse novo modelo passa justamente a ideia de que determinado tema, agenda ou assunto surge de maneira natural, de forma que nem se quer saibamos sua fonte ou até a veracidade do conteúdo. Sendo assim, é motivo de atenção o fato de que os indivíduos podem se assumir como criadores e coparticipantes de determinado fato, assunto, ideologia e opinião exaustivamente repetida pelos novos canais de mídias antigas. Este fato, essa sensação, é abordada por Levy, em que cita o novo sistema de comunicação como envolvente, uma rede, em que não se tem dimensão de onde vem e para onde vai e sim que faz parte do dia a dia dos indivíduos em todos os momentos, o que reforça essa falta de consciência e definição do real emissor da mensagem.

“Junto ao crescimento das taxas de transmissão, a tendência à inter-conexão provoca uma mutação na física da comunicação: passamos das noções de canal e rede a uma sensação de espaço envolvente. Os veículos de informação não estariam mais no espaço, mas, por meio de uma espécie de reviravolta topológica, todo o espaço se tornaria um canal interativo. A cibercultura aponta para uma civilização da telepresença generalizada. Para além de uma física da comunicação, a interconexão constitui a uma humanidade em um contínuo sem-fronteiras (...) A interconexão tece um universal por contato.” (LÉVY,1999. p127)

Esse novo sistema em rede que circunda o viver das pessoas e que parece ser um pensamento de todos pode ser até mais eficiente, para os grandes conglomerados de mídia, no sentido de dominação da agenda pública do que os formatos anteriores, uma vez que realmente faz parecer ser uma publicação do indivíduo, que por ter proximidade pessoal com o seu circulo de audiência, é recebido de maneira mais positiva e mais real, menos fabricada.

Levy, ainda em seu livro Cibercultura, aborda a questão da opinião pública e da noção do público dentro desse novo contexto digital.  

“(...) as comunidades virtuais exploram novas formas de opinião pública. Sabemos que o destino da opinião pública encontra-se intimamente ligado ao da democracia moderna. A esfera do debate público emergiu na Europa durante o século XVIII, graças ao apoio técnico da imprensa e dos jornais. No século XX, o rádio (sobretudo nos anos 30 e 40) e a televisão (a partir dos anos 60) ao mesmo tempo deslocaram, amplificaram e confiscaram o exercício da opinião pública. Não seria permitido, então, entrever hoje uma nova metamorfose, uma nova complicação da própria noção de “público”, já que as comunidades virtuais do ciberespaço oferecem, para debate coletivo, um campo de prática mais aberto, mais participativo, mais distribuído que aquele da mídias clássicas?” (LÉVY,1999. p127)

Se por um lado, como sugere o autor, o novo sistema de comunicação aponta uma mudança da visão do “público” devido à ampliação dos espaços de discussão, por outro lado algumas teorias e práticas correntes afirmam justamente o contrário: uma busca por isolamento em grupos compatíveis e com as mesmas visão, vivência e opinião. Esse isolamento parte tanto dos indivíduos, que comumente param de seguir ou desfazem amizades em rede sociais com aqueles que pertencem a seus círculos, mas que possuem opiniões diferentes das suas, como também promovidos pelos próprios algoritmos das redes sociais digitais e de busca: a conhecida teoria do filtro bolha.

Segundo Eli Pariser, um dos primeiros a escrever sobre essa teoria, mostra como os algoritmos que buscam entender cada indivíduo e seus interesses acaba limitando o acesso dos mesmos a informações diversas e plurais, mantendo-os dentro de bolhas de preferências.  

“Durante algum tempo, parecia que a internet iria redemocratizar completamente a sociedade. Blogueiros e os chamados “jornalistas cidadãos” iriam reconstruir os meios de comunicação com as próprias mãos. (…) Contudo, esses tempos de conectividade cívica com que eu tanto sonhava ainda não chegaram. A democracia exige que os cidadãos enxerguem as coisas pelo ponto de vista dos outros: em vez disso, estamos cada vez mais fechados em nossas próprias bolhas” (PARISIER, 2012. p.10-11).

Sob essa visão corremos o risco de assumir o “público” como a bolha a que fazemos parte, fazendo uma amostragem simplificada e mental em que o “todo mundo na minha timeline pensa assim” assume o peso de “todo mundo pensa assim” chegando até o discurso de a “opinião pública” pensa assim.  

Se em algum momento pode-se pensar que nas redes digitais a opinião pública realmente existisse, uma vez que essa não é uma pesquisa “imposta” e sim menções espontâneas dos indivíduos, e que por tal motivo conseguiria fugir um pouco dos três postulados implícitos citados por Bourdieu:

“Qualquer pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou, colocando de outra maneira, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos. Mesmo sabendo que poderei me chocar com um sentimento ingenuamente democrático, contestarei este primeiro postulado. Segundo postulado: supõe-se que todas as opiniões têm valor. Acho que é possível demonstrar que não é nada disso e que o fato de se acumular opiniões que absolutamente não possuem a mesma força real, faz com que se produzam artefatos sem sentido. Terceiro postulado implícito: pelo simples fato de se colocar a mesma questão a todo mundo, está implícita, a hipótese de que há um consenso sobre os problemas, ou seja, que há um acordo sobre as questões que merecem ser colocadas” (BOURDIEU, 1973. p.1)

Ao longo desse artigo quis discutir justamente o contrário, mostrando o cuidado que é preciso ter em relação às afirmações e teorias que dão ares de glória e de grandes conquistas no campo da independência ideológica e pluralidade da comunicação no novo sistema digital. É inegável a existência de mudanças e da ampliação de espaços de fala, mas é muito cedo, e até mesmo muito ousado, assumir uma interpretação de que os indivíduos estão perto de ter poder e espaço de fala equiparado aos gigantes conglomerados da mídia tradicional e, também, capazes de ter grandes movimentos totalmente independentes da agenda da grande mídia.


Ana Paula Gilsogamo é Publicitária e Pesquisadora de Mercado, formada pela ECA-USP. Artigo para a disciplina: Opinião Pública e Pesquisa Eleitoral, Profª Jacqueline Quaresemin, pós OPIM /FESPSP.

Referências:


BOURDIEU, Pierre. A opinião pública não existe. França: Les Temps Modernes, 1973.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

PARISIER, Eli. O filtro invisível – o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.


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