A repressão penal do funk, por Reinaldo Santos de Almeida

Publicado originalmente no site da OAB/RJ.

Segundo o verso de Nelson Sargento em Agoniza, mas não morre, o “samba, negro forte destemido, foi duramente perseguido, nas esquinas, nos  botequins, nos terreiros...” como forma de controle das classes sociais subalternas e marginalizadas pelo Estado brasileiro no início do Século 20.

O critério determinante do processo de criminalização resultava da posição de classe do “autor” e de sua cor de pele: um homem, negro, que possuísse calos nas pontas dos dedos, portasse instrumentos musicais ou não tivesse um emprego fixo era imediatamente detido por vadiagem. Segundo Donga, neste caso “era pior do que ser comunista.”

Dos batuques de candomblé e pernadas de capoeira da Pequena África, da zona do Cais do Porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze, verificou-se a repressão penal do samba e, de um modo geral, das festas populares como o Carnaval, que passou a ser cada vez mais controlado e disciplinado pelo Estado, das ruas para o desfile em cortejo na Avenida.

O fenômeno da censura e da perseguição não se esgota na história entre rupturas e permanências. Até os dias atuais, veem-se casos de censura de sambas de bloco de rua pela prefeitura na gestão Eduardo Paes (PDMB), como no episódio do Bloco Carmelitas em 2014, em que o samba foi alterado de “Black bloc, vem samba” para “Black bloc, alto lá”; bem como a dificuldade de obtenção de alvará para a realização de rodas de samba, como nos veículos legislativos inconstitucionais exarados pela prefeitura na gestão Marcelo Crivella (PRP) em 2017.

O Decreto 43.219/2017, em seu art. 8º, institui que “o gabinete do prefeito poderá impor, a qualquer tempo, restrições aos eventos ou produções de conteúdo audiovisual autorizados, inclusive durante a sua realização, sempre que o exigir a proteção de interesse público”, e no art. 2º, I, “considera-se evento todo exercício temporário de atividade econômica, cultural, esportiva, recreativa, musical, artística, expositiva, cívica, comemorativa, social, religiosa ou política, com fins lucrativos ou não, que gere:

I - concentração de público, em áreas abertas ou fechadas, particulares ou não”, em flagrante afronta aos direitos fundamentais tais como a liberdade, a livre manifestação do pensamento, a liberdade de crença, a expressão da atividade artística independentemente de censura ou licença, e a liberdade de reunião pacífica, previstos no art. 5º, caput, IV, VI, IX, XVI, da CRFB/1988, respectivamente.

Em seguida, após duras críticas à legislação autoritária, poucos dias depois a prefeitura expediu a Resolução CVL N38, na qual regulamentava alguns pontos inconstitucionais do decreto supracitado. A emenda saiu pior do que o soneto. A prefeitura dispensou o pagamento de taxas e a autorização do Rio Ainda Mais Fácil Eventos (Riamfe) somente [grifo do autor] das rodas de samba que estejam vinculadas ao Programa de Desenvolvimento Cultural Rede Carioca de Rodas de Samba, isto é, que tenham sido mapeadas e cadastradas em seu calendário (que sequer é público!), em violação ao princípio da isonomia (art. 5º, caput e I, da CRFB/1988).

Doutra banda, à medida que a indústria cultural transformou o samba em mercadoria a ser consumida pelas classes médias – num conflito entre conformismo e resistência por parte dos sambistas –, o funk surge como manifestação popular marginal no Rio de Janeiro, ao lado do rap, de maior expressão em São Paulo. 
Segundo Vera Malaguti Batista, o funk é uma espécie de crônica do dia a dia dos moradores dos morros e favelas cariocas, com especial destaque para o “proibidão”. 

Recentemente, intentou-se uma cruzada para a criminalização do funk por intermédio do tipo penal de apologia de crime ou criminoso (art. 287, CP).

Por volta de 2004, vários MC’s foram procurados pela polícia para prestar declarações sobre o conteúdo das letras tidas como apologéticas de crimes e criminosos, num episódio relatado pelo advogado criminalista Carlos Bruce Batista como “O feirão do funk”, que contou com a participação de alguns dos principais escritórios de advocacia do Rio de Janeiro na defesa da liberdade de expressão contra o poder punitivo do Estado.

Vale citar dois episódios:

Primeiro, em outubro de 2005 foi impetrado um remédio heróico pelo escritório Fernando Fernandes Advogados, distribuído na 38ª Vara Criminal, sob o número 2005.001.125371-0, em favor do MC Frank, requerendo a concessão de liminar com o fim de determinar a suspensão do inquérito policial instaurado na Delegacia de Repressão a Crimes de Internet. 

Segundo, em julho de 2006 foi impetrado um mandado de segurança pelo escritório Nilo Batista e Advogados Associados, distribuído na 30ª Vara Criminal, sob o número 2005.001.125372-0, requerendo a cópia integral da Verificação de Procedência de Informações (VPI) nº. 352/2006.

De acordo com Heleno Cláudio Fragoso, “a apologia de crime consiste em elogio ao criminoso porque praticou ação delituosa, excluindo-se, assim, a apreciação favorável de outros aspectos positivos (reais ou supostos) de sua personalidade.”

No mesmo sentido, Magalhães Noronha ensina que “não é apologista quem se limita a justificar ou explicar a conduta delituosa, bem como apontar qualidades ou atributos do delinquente, em contrapeso ao fato criminoso.”

Não se pode, por exemplo, criminalizar o compositor ou cantor de uma canção que descreva a forma objetiva como se pratica um fato punível como o roubo ou o tráfico de entorpecentes, pois nada mais se trata do que o relato em forma de crônica musical da realidade vivenciada por aquela classe social subalterna.

Nos idos de 2013, o governo estadual na gestão Sérgio Cabral (PMDB) editou a Resolução 13, que impedia a realização de bailes funks nas comunicadas pacificadas com derramamento de sangue – segundo a consagrada expressão do professor Nilo Batista –, pois dava a última palavra sobre o evento para o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Em seguida, a resolução foi revogada e devolveu-se aos órgãos competentes a aferição do cumprimento das normas gerais para a realização de eventos, como por exemplo, o Corpo de Bombeiros.

No presente ano, apresentou-se um projeto de lei, de relatoria do senador Romário (Podemos/RJ), que pretende criminalizar o funk como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”.

Diante do exposto, conclui-se na esteira da lição de resistência de Nilo Batista que “o Judiciário brasileiro está devendo um posicionamento firme em defesa da liberdade de expressão artística e a criminalização do funk lhe oferece essa oportunidade. Quando este dia chegar, acabou-se o ‘proibidão’, não pela falta dos poetas populares, mas pelo término da inconstitucional perseguição policial.”


Reinaldo Santos de Almeida é Professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ, doutor em Direito Penal pela UERJ.

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