Possibilismo não é realismo, por Luis Felipe Miguel

Publicado originalmente no Jornal GGN.


Em um dos trechos mais eloquentes dos Cadernos do cárcere, Gramsci exalta o caráter criador do “político em ação”, que “é um criador, um suscitador; mas não cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos seus desejos e sonhos. Baseia-se na realidade fatual”. De maneira sintética, o revolucionário sardo está apontando a necessidade de ultrapassar tanto o possibilismo estreito, que vê os limites postos à ação política como imutáveis, quanto o voluntarismo, que julga que eles podem ser desprezados por mera decisão subjetiva. Ele adota um realismo dinâmico, que é herdeiro do realismo de Maquiavel e de Marx, incluindo em seu relato tanto as energias transformadoras latentes no mundo social quanto a vontade atuante de mobilizá-las.

Vejo que parte da esquerda brasileira permanece presa a este possibilismo, que leva a uma redução brutal do horizonte de expectativas, a partir do entendimento que há uma “correlação de forças” favorável aos grupos conservadores e, portanto, nossa opção é entre o pouco e o nada. Ou melhor, essa foi a opção do lulismo; com o golpe, a direita endureceu suas posições e o que nos resta é o pouquíssimo, como alternativa ao menos que nada.

Nessa linha de pensamento, a correlação de forças é percebida sobretudo como aquela presente nas instituições políticas formais. O argumento é: se Lula for eleito, vai ter que negociar com um Congresso muito conservador; logo, a margem para adotar políticas redistributivas e democratizantes será muito pequena. Corolário: é melhor esperar por muito pouco, porque mais do que isso não será possível alcançar.

Não estou entre os que negam liminarmente validade a um cálculo desse tipo. Na verdade, a diferença entre o muito pouco e o nada pode ser desprezada pelos privilegiados, mas muitas vezes é questão de vida e morte para os mais pobres. O problema – e aqui está minha divergência com a inspirada tréplica de Fernando Horta a meu texto de sábado passado – é que essa leitura deixa de lado dois elementos.

O primeiro é o próprio golpe. A derrubada da presidente Dilma Rousseff mostrou que as classes dominantes não se sentem dispostas a honrar o acordo pelo qual a melhoria das condições de vida dos mais pobres seria tolerada em troca da garantia de paz social. Como parte da barganha envolvia a desmobilização popular, para que as elites se sentissem seguras, ficamos em condição difícil para resistir ao retrocesso. Renovar esse acerto significa aceitar limites ainda mais rígidos à transformação social, em nome de vantagens ainda menos expressivas para a população pobre. E com o risco de que, mais adiante, um novo retrocesso seja imposto, com condições de resistência ainda mais frágeis. É uma armadilha. Qualquer governo progressista que volte ao poder no Brasil tem que inverter a opção do lulismo e apostar em ampliar a mobilizaçãon popular.

Porque este é o segundo limite desta leitura: uma redução do jogo político aos espaços institucionais. Há a presidência, há o Congresso conservador, há o Judiciário inconfiável. Se não é possível mudar a maioria do Congresso, o único caminho é, de novo, tentar comprá-lo, uma vez que ele é ainda mais fisiológico do que conservador.

Com incrível frequência, a discussão se limita a isto. Mesmo quem quer superar os limites do arranjo lulista inicial muitas vezes se perde em fantasias sobre a eleição de uma grande bancada de esquerda. Mas isto é muito improvável. De Lênin a Claus Offe ou a um liberal esclarecido como Albert Hirschman, há uma vasta literatura que aponta como o mecanismo eleitoral traduz mal as demandas dos dominados. Não se trata de ignorar as eleições, mas de ter clareza de que qualquer mudança passa pela pressão sobre os eleitos.

A questão não é ter ou não ter fé nas ruas. Há um rio de inconformidade a ser revelado por quem deseja a mudança do Brasil. E há um conjunto significativo de manifestações desse desejo, que ainda estão desarticuladas, talvez caóticas, mas que cabe fomentar, em vez de abafar. São milhares de coletivos de mulheres, da população negra, das periferias, de lésbicas, gays e travestis. São as impressionantes mobilizações da juventude. São as greves “selvagens”, que passam ao largo das burocracias sindicais e pipocam por todo o país. Mesmo a adesão regressista ao fundamentalismo religioso é indício de uma inadequação ao mundo tal como ele é, que permite disputa. Muito da esquerda partidária, preocupada somente com suas posições no Estado, voltou as costas para todos esses grupos.

As jornadas de junho de 2013 são um símbolo dessa energia. Não se tratar de “exaltar” as manifestações de rua então ocorridas, mas de entendê-las como um fenômeno complexo, cujo primeiro resultado foi revelar que os modelos com os quais os analistas políticos em geral trabalham, restritos às instituições, são insuficientes para apreender a dinâmica do conflito social. Permito-me uma digressão sobre aquele momento.

As manifestações contra o aumento nas passagens do transporte coletivo ganharam dimensão maior do que a esperada, num processo que é possível dividir em três etapas (ainda que a cronologia não seja rígida). Primeiro, a adesão superou, e muito, a capacidade de organização do Movimento Passe Livre (MPL). Depois, a pauta foi ampliada, demonstrando a insatisfação não só com o transporte, mas com os serviços públicos em geral. Por fim, os protestos foram parcialmente colonizados por uma pauta antipolítica e de combate à corrupção, própria do registro discursivo mais conservador, com a adesão de setores da classe média.

Do primeiro para o segundo momentos, ocorre a indicação de que a base social dos governos petistas queria mais do que estava sendo oferecido a elas. Embora haja um toque de exagero na imagem apresentada por Ruy Braga, de trabalhadores em condições cada vez mais precárias sendo tantalizados pela perspectiva de fazer um curso superior privado noturno com financiamento pelo FIES, o fato é que o arranjo lulista tanto privilegiou a oferta de empregos de baixa qualificação e baixo salário quanto tinha dificuldade de prover melhorias expressivas nos serviços socializados. A opção pela inclusão pelo acesso ao mercado satisfazia o compromisso de não interromper a privatização do fundo público, parte do acerto com as classes dominantes. Mas o morador da periferia que comprou uma geladeira nova com subsídio governamental continuava precisando de educação, saúde e transporte.

Do segundo para o terceiro momentos, o que intervém é a compreensão, por parte da oposição de direita, que há uma fissura a ser explorada. A mudança na cobertura jornalística é reveladora. O registro da “baderna” foi substituído pelo da “mobilização cívica”. Houve um grande esforço para separar a “minoria” de manifestantes violentos, que precisavam ser reprimidos, da maioria pacífica e respeitosa – desde então, a estigmatização dos adeptos das táticas de autodefesa black bloc serve para legitimar a repressão policial aos movimentos de rua. Os atos passaram a ser praticamente convocados por jornais e emissoras de televisão (prática que se repetiu durante o processo do impeachment de Dilma), que por vezes os transmitiam ao vivo e davam destaque desproporcional mesmo a pequenas passeatas com poucas dezenas de pessoas. Embora as redes sociais tenham sido ferramentas importantes na construção das mobilizações, o peso predominante da mídia tradicional na construção dos sentidos foi indiscutível.

Foi aberta uma disputa pelo sentido das manifestações, em que os organizadores iniciais, MPL à frente, tentavam reafirmar seu caráter progressista, ao passo que a mídia as enquadrava como uma demonstração de descrédito na política, com foco na corrupção dos funcionários do Estado. Elas teriam como pauta a derrubada da Proposta de Emenda Constitucional nº 37, que restringia o poder do Ministério Público na condução de investigações criminais – o que impediria abusos, na visão de seus defensores, e protegeria os malfeitores, segundo seus adversários. O foco na PEC 37, algo bizarro, uma vez que era um assunto de interesse corporativo e localizado, serviu de teste para o discurso do “combate à impunidade”, que desqualifica elementos do Estado de direito, como a presunção de inocência, o direito de defesa, o direito à privacidade e as regras para produção legal de provas, como sendo artifícios que servem apenas para impedir ou protelar a devida condenação dos corruptos.

Os grupos mais à esquerda viram nas jornadas de junho a possibilidade de construção de uma mobilização de massa com pauta radical, que desafiasse a moderação petista. A direita animou-se com o que indicava o declínio da “mágica” do lulismo. No meio do tiroteio, o PT ficou paralisado. Os movimentos populares sob influência petista se viram na obrigação de blindar o governo e, com isso, perderam a oportunidade de dialogar com os manifestantes. Ganhou corpo a tese de que eram mera massa de manobra da direita, deixando patente que, para muitos dos intelectuais do petismo, o caminho era não atrapalhar o trabalho do governo com reivindicações intempestivas. Junho de 2013 marca o aprofundamento da cesura entre o PT e os movimentos populares aos quais ele se propunha a dar voz quando nasceu.

De maneira similar, o governo Dilma Rousseff foi incapaz de encontrar sua posição nesse novo cenário. Sua resposta às manifestações foi sempre ziguezagueante; quando a presidente se manifestou em rede nacional de televisão, em 17 de junho de 2013, propôs “cinco pactos”, uma mixórdia que incluía uma reforma política potencialmente democratizante, mas também aderia ao receituário conservador da “responsabilidade fiscal”. Fora isso, promessas genéricas em favor da educação, saúde e mobilidade urbana. A preocupação da presidente e de seu círculo era reduzir os danos até as eleições presidenciais do ano seguinte – quando, se esperava, tudo voltaria à “normalidade”.

2013 marcou, portanto, o esgotamento da política do possibilismo estreitado. No mesmo movimento, mostrou que existe inconformidade no mundo social, que pode ser canalizada para estratégias transformadoras. Cabe às organizações da esquerda, entre elas o PT, estreitar o diálogo com essas vozes, aceitar sua diversidade, romper com suas percepções hegemonistas e tentar voltar ao governo não para domá-las ou para tentar vender às classes dominantes sua pacificação, mas para dar a elas melhores condições de expressão e de pressão. Esse é o único projeto realista no momento.


Luis Felipe Miguel é Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Pesquisador do CNPq.

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