A armadilha da Cinelândia e os perigos da nova etapa do golpe, por Marcelo Burgos

Publicado originalmente na Carta Capital.

Foto de Ana Carolina Fernandes

Foi extremamente grave o que se passou na Cinelândia durante a manifestação do último dia 28. Uma verdadeira armadilha foi montada para surpreender as organizações e manifestantes que acorreram ao ato público. Grupamentos da PM se posicionaram nos arredores da praça, enquanto uma “milícia” – não mais do que 20 ou 30 homens –, com inacreditável liberdade destruía o que encontrava pela frente.

Armados com varas de cerca de 3 metros e equipamentos para produzir fumaça, destruíram vidraças de pontos de ônibus, VLT, e de alguns bancos, arrancaram postes de sinalização de rua, e incendiaram ônibus – não sem antes roubar o dinheiro das passagens.

Enquanto isso, lideranças políticas e sindicais se revezavam no palanque tentando conduzir a manifestação, sustentando seu caráter pacífico, e a luta por direitos. Pois bem, sob o pretexto de reagir aos "baderneiros" – termo adotado pelo comando da PM em nota oficial – que poderiam ter sido facilmente detidos, a polícia se volta contra a multidão que participava da manifestação e, em seguida, contra o próprio palanque, atirando de modo irresponsável bombas de gás lacrimogêneo.

O resultado não podia ser outro: acuada, a multidão corre desesperada para todos os lados, fazendo com que as pessoas tropecem e caiam umas sobre as outras. De helicóptero, a grande imprensa registra a cena ao vivo, emprestando conteúdo à afirmação feita de manhã pelo ministro da Justiça, de que não seria uma “greve geral” mas sim uma “baderna geral”.  

Para quem estava na Cinelândia o sentimento era o de que a ação tinha sido orquestrada, com o claro objetivo de desmoralizar a rua. No dia seguinte, as manchetes dos principais veículos de comunicação e a abordagem feita pela grande imprensa – salvo honrosas exceções – confirmariam o pior pressentimento.

As fotos dos ônibus ardendo em chamas ganharam o destaque, enquanto a ação inconsequente da polícia ficava em segundo plano. Pior, praticamente não se falou dos capangas da “milícia” que vandalizou as ruas do centro. Quem são eles e com que objetivos fizeram isso? Nenhuma palavra, em evidente contraste com o escândalo feito em relação à participação dos black blocs nas jornadas de 2013. O silêncio em relação a esses "capangas" é ensurdecedor, tudo se passando como se fossem “baderneiros” anônimos infiltrados na multidão.

Após a quase completa desmoralização do sistema político e de suas instituições, resultante da aliança entre a grande mídia e o ativismo judicial animado pelo uso indiscriminado e irresponsável da delação premiada, o fato é que a intimidação da população pela polícia e a transformação midiática das manifestações em baderna nos precipita em um novo momento na sucessão de golpes à democracia que se seguiram à deposição de Dilma Rousseff.

Sem as instituições políticas e sem a rua a democracia duramente conquistada e consagrada na Carta de 1988 agoniza. Restaria recorrer ao Ministério Público, guardião último da ordem jurídica e do regime democrático. Mas, como diversas pesquisas indicam, em questões dessa natureza o MP somente tem algum êxito se contar com o apoio da sociedade civil. De certo modo, um não existe sem o outro. De fato, sem a praça, este MP consagrado pela Carta de 88 deverá desaparecer.

A prevalecer essa tendência o futuro será muito sombrio. Em nome de reformas feitas contra o interesse da esmagadora maioria da população e ao arrepio de sua opinião, não apenas o governo, mas boa parte da grande imprensa, e a maior parte das representações empresariais parecem dispostas a sacrificar a democracia. Mas nunca é demais lembrar: este poderá ser o caminho mais curto para a barbárie.

A monumental mobilização do dia 28 em todo o País, com uma das maiores greves nacionais de sua história, mostrou a vitalidade cívica da população brasileira e sua vontade e capacidade de reagir de modo organizado na luta por direitos. Mas a armadilha montada na Cinelândia evidenciou que a partir de agora ingressamos em uma nova etapa, e mais do que nunca a memória dos tempos da ditadura torna-se inevitável. “Por isso, cuidado meu bem, há perigo na esquina. Eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens”, dizia Belchior em sua bela canção de 1976.

Em política não há espaço vazio e com o recuo das instituições políticas e a perda das praças, ele certamente será ocupado por uma crescente vertente autoritária que, como bem sabemos, uma vez instalada não conhece limites; hoje são os partidos e os sindicatos que estão sob ameaça, amanhã será a vez da imprensa e do próprio judiciário serem silenciados ou subjugados.

Perseverar nas ruas é, portanto, fundamental, mas a armadilha da Cinelândia revela que agora a rua, sozinha, se torna perigosa. Urge invocar a memória da ditadura para lembrar que diante das forças autoritárias o melhor caminho de resistência é o do alinhamento dos atores realmente comprometidos com a defesa do Estado Democrático de Direito.

E, para isso, o primeiro passo é reconhecer que a ameaça à democracia exige um profundo reposicionamento, não apenas dos partidos e de suas lideranças, mas também da sociedade civil em geral, no sentido de se deixar para trás as clivagens da eleição de 2014, e de se isolar aqueles que, voluntária ou involuntariamente, atuam para transformar o golpe parlamentar midiático em um golpe militar.


Marcelo Burgos é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.

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