"Os monstros estão à solta", por Durval Ângelo

O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Augusto dos Anjos

O Aeroporto Internacional de Confins, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, foi palco, no último dia 19, de uma cena emblemática dos tempos sombrios que atravessamos no Brasil. Ao desembarcar em terras mineiras, com o pretexto de participar de uma formatura da Polícia Militar, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) foi recebido como um herói. Já seria inusitado ver um parlamentar carregado nos braços do povo em tempos de tamanha negação do político. Mas o episódio torna-se estarrecedor por se tratar do principal representante de um movimento conservador que se alastra pelo país, com um discurso retrógrado, de intolerância e preconceito contra pobres, mulheres, homossexuais, movimentos sociais e direitos humanos.

Ao que tudo indica, a manifestação não foi espontânea, mas cuidadosamente arquitetada para ser o pontapé inicial da candidatura de Bolsonaro à Presidência da República. Nem por isso, deixa de ser significativa, ao nos dar a real dimensão dos monstros que crescem a olhos vistos em nossa sociedade, como a validarem o alerta de Friedrich Nietzsche: "Aqueles que lutam com monstros devem acautelar-se para não se tornarem também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você." A citação é do livro "Além do Bem e do Mal", obra estruturante do pensamento de Nietzsche. Nela, o polêmico filósofo busca refundar a filosofia ocidental, com uma crítica severa aos valores vigentes e à moral cristã, os quais não mais atenderiam às necessidades dos tempos.

Nietzsche discute dois conceitos centrais que se adequam bem ao cenário atual. Um deles é a "vontade de poder", a qual permitiria ao indivíduo desenvolver seu potencial máximo, de modo a se tornar um super-homem, que estaria acima das massas. Retoma, assim, a milenar "lei do mais forte" (ou do mais inteligente, talentoso ou dedicado), com argumentos que, como é sabido, irrigaram o nazifascismo. O outro conceito é a "moral do senhor", que em contraposição à do escravo, seria a única capaz de apontar o bom, o verdadeiro e o belo, devendo ser imposta e seguida pelos inferiores. Caberia a cada um escolher sob a égide de qual das duas morais viver.

Ao apontar a precariedade cultural e espiritual de seu tempo, Nietzsche alerta para os abismos interiores dos indivíduos, que, em suas lutas contra monstros, se defrontariam com as próprias bestialidades. E a quantas monstruosidades não temos assistido no Brasil! A começar pela sangrenta crise no sistema carcerário que, com toda a certeza, é reflexo do retrocesso trazido pelo "desgoverno" de Michel Temer. Não há como negar a grande perda de valores éticos, ampliada pela crise econômica que se avolumou a partir do boicote irresponsável ao governo do PT e agora é agravada pela ineficiência da atual gestão.

Nossos piores monstros não estão nas cadeias. Estão na desigualdade social, fruto da concentração de renda. Levantamento recente da ONG britânica Oxfam mostrou que, no Brasil, seis privilegiados detêm riqueza maior que 104 milhões de pessoas, cerca de 50% da população. Outro dado relevante é o de que no biênio 2017/2018, de cada três desempregados em todo o mundo, um será brasileiro. São fatores que desaguam na superlotação dos presídios e no avanço contínuo da criminalidade, em um círculo vicioso completado por um Poder Judiciário que vê no encarceramento a única solução. Como resultado, os chamados pequenos delitos representam, hoje, 80% da população carcerária do Brasil, em uma flagrante situação de criminalização da pobreza.

Não. Os piores monstros não estão nas cadeias. Estão à solta, na mentalidade tacanha e vingativa de parcela de nosso povo que, incentivada por "Bolsonaros", comemora as chacinas nos presídios, sedenta de sangue. Ou ainda naqueles que, nas redes sociais, fazem chacota ou desejam a morte da ex-primeira dama, Dona Marisa Letícia, vítima de um AVC. Eis o abismo interior de que nos fala Nietzshe, o qual em tempos de crise política, econômica e ética, encontra campo fértil para se revelar. Mais do que nunca, precisamos nos acautelar e defender uma sociedade mais humanizante. Do contrário, viveremos em um mundo de cegos (cegos pelo ódio), como afirmou Martin Luther King.

Há que se recuperar a visão, resgatar valores e buscar caminhos. Retomar o desenvolvimento é primordial, como constatado inclusive em Davos, templo maior do neoliberalismo. Na contramão, o Brasil promove o desmonte de políticas públicas e congela os investimentos por 20 anos. A crise, seja ela prisional, econômica ou social, é fundamentalmente política, e a saída também. Para não nos tornarmos monstros, precisamos retomar as lutas por "nenhum direito a menos", pelo resgate da dignidade das pessoas, pelas causas dos pobres, índios, negros, imigrantes, mulheres e LGBTs. Devemos ter a coragem de nadar contra a maré, por uma assembleia constituinte popular e democrática, capaz de construir um novo modelo político. Acautelar, nesse caso, é sinônimo de participação social.

Teremos que, talvez, vencer a nós mesmos, como conclui Nietzsche no provocativo epílogo-poema "Do alto dos montes":

(...) Tornei-me, talvez, outro?
Estranho a mim mesmo? De mim mesmo, fugido?
Lutador que muitas vezes venceu a si mesmo?
Que muitas vezes lutou contra a própria força,
ferido, paralisado pelas vitórias contra si mesmo?
(....)
Durval Ângelo é deputado estadual pelo PT de Minas Gerais e líder do governo na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

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