Mulheres, negros, ambientalistas, povos originários, LGBTs & cia: um novo sujeito histórico? Por Marcelo Barbosa

A eleição de Donald Trump, entre outros significados, expõe a derrota de uma esquerda (no caso, a do Partido Democrata) mais empenhada na mobilização de temas da cultura e comportamento do que em lançar mão da luta de classes. Um revés que serve de alerta. Isso não apenas em relação aos partidos e movimentos progressistas dos Estados Unidos, mas de todo mundo. Com o trauma, surgem pontos de interrogação: qual o futuro da coalizão formada por jovens, mulheres e “minorias” étnicas – entre outros nexos – empenhadas em promover a crítica dos instrumentos e práticas tradicionais de ação da classe trabalhadora? Qual o saldo de reflexão acerca da prática dos sujeitos históricos surgidos no pós-1968? Por ora, trata-se de perguntas sem respostas. Pelo menos não definitivas. O que se pode fazer, ao calor da hora, consiste na tentativa de reconstituir – em síntese breve – o trajeto dessas propostas em cotejo com as matrizes da teoria onde se reconheceram. Para tanto, há necessidade de voltar no tempo, mais precisamente às origens do protesto anticapitalista.

No projeto crítico dos fundadores do materialismo histórico – Marx e Engels –  o sujeito histórico da transformação da realidade pode ser identificado numa classe: a dos trabalhadores assalariados (urbanos e rurais) e seu aliado de todas as horas, o campesinato. Trata-se de um ator político radicalmente comprometido, por força da exploração de sua força de trabalho, com a socialização dos meios de produzir bens e serviços, aparato em mãos de uma minoria de burgueses possuidores da renda e riqueza em qualquer sociedade capitalista. Desde 1848, quando se tornou visível a olho nu, nas páginas do Manifesto do Partido Comunista, até o presente, esse agente da rebelião contra o poder do capital assumiu várias identidades: operário fabril no Outubro Russo (1917); camponês na China e Vietnam (1949/1975); e até mesmo pequena-burguesia anti-imperialista em Cuba (1959). Modalidade de luta de classes – só que em escala mundial – o antagonismo entre países centrais e periféricos também favoreceu a gênese de uma consciência nacional responsável pelo surgimento de ideologias de conteúdo anti-hegemônico, por todo o terceiro mundo, a exemplo do sandinismo, na Nicarágua ou o nasserismo, no Oriente Médio.

Com poucas variações, a iniciativa desse sujeito irradiado a partir da liderança dos trabalhadores assalariados monopolizou as ações visando construir sociedades socialistas ao redor do globo. Seu mandato, digamos assim, jamais recebeu contestação. Muitas vezes, os trabalhadores obtiveram o auxílio de outros segmentos, como as mulheres e seu memorável movimento sufragista. Porém, essa colaboração sempre ocorria em chave subordinada e nunca em igualdade de condições. Muito possivelmente, por obra de processos de urbanização e expansão das camadas médias, nos últimos cinquenta anos (mudanças verificáveis, inclusive, nos países mais pobres), a luta de classes – em sentido clássico – passou a sofrer a concorrência de outras formas de “assujeitamentos” para usar um jargão da moda. Em suma, a representação política da esquerda de inspiração marxista se viu às voltas com a concorrência de outros segmentos empenhados em expandir os limites da democracia e da igualdade mundo afora. Como lidar com isso?

Preliminarmente, é preciso reconhecer a legitimidade de mecanismos de formação de identidades – adquiridos em experiências que não se opõe, mas também não se esgotam na luta de classe – e que explicitam a presença de um sem-número de contradições insuscetíveis de recorte apenas no âmbito do poder político stricto sensu, entre os quais: o protesto das mulheres contra a opressão machista, dos grupos LGBTs em face da discriminação, dos povos originários pelo reconhecimento de sua herança cultural, ou ainda, das populações afrodescendentes no enfrentamento do racismo. Enfim, de uma infinidade de contornos cada vez mais presentes na teoria e prática dos coletivos da cultura e movimentos sociais. (Reconhecer a legitimidade das lutas desses setores, incorretamente tratados por “minorias”, não significa endossar a atitude de todas as suas frações, algumas delas comprometidas com a defesa de ideologias, no mínimo, discutíveis, a exemplo do diferencialismo cultural).

Sem data de certidão de nascimento propriamente dita, essas políticas de identidade adquiriram maior visibilidade, porém, a partir das revoltas estudantis de 1968. Com a impulsividade típica da juventude, os participantes daqueles protestos “reinventaram a roda”. Ou pelo menos, assim o pretenderam. Com base numa constelação teórica capaz de reunir de Marcuse a Focault, fizeram largo uso da descoberta de Lacan referente à presença de um sujeito cindido, imerso num complexo relacional situado para além da materialidade das relações econômicas. Um “corpo” integrado por malhas de desejo, redes de afeto e, em muitos sentidos, por aspirações à identidade. Em resumo, os jovens do período converteram a revolução num objeto estético. Se debatendo entre a produção da subjetividade e a demanda por institucionalização, a crítica promovida pela esquerda pós-1968 influenciou profundamente os acontecimentos das últimas décadas, principalmente no que diz respeito às relações entre a espécie humana e a natureza. O que não é pouco, convenhamos. Por conta das interrogações dirigidas por umas de suas grifes – o movimento ambientalista – caiu inteiramente em descrédito a concepção de progresso material fundada na exaustão de recursos não renováveis, direta ameaça ao futuro da vida no planeta.

Em registro menos luminoso, porém, várias das ramificações da esquerda identitária abandonaram o compromisso com uma plataforma anticapitalista. Especialmente após a derrota simbolizada pelo fim do bloco socialista, ao final da década de 1980. Nesse momento, de evidente derrota ideológica, não foram poucos os segmentos da política da identidade que migraram da esquerda para o centro, prestando vassalagem à economia de mercado e impulsionando – mundo afora – a expansão de organizações não governamentais (ONGs), ostensivamente financiadas por grandes corporações. A essa altura, o maio de 1968, com seu lema, a “imaginação no poder”, equivalia apenas a uma lembrança de sua melhor performance: o momento em que, unindo-se ao movimento sindical, a coalizão libertária mandou, virtualmente, pelos ares a IV República Francesa. Episódio concluído em derrota, mas grávido de significação e consequência, pela atualidade do exemplo oferecido.

Passando em retrospecto todo esse passado de lutas – composto de um mosaico de tendências em conflito – uma simples evidência se impõe à análise: pelo visto, a utopia das chamadas “minorias” glutina mais força cultural do que política e que, para provocar impacto sobre a esfera pública, precisa se unir em aliança (tensa e atritada, por sinal) com a representação das forças do trabalho. Sem isso, está aberto o espaço para a fragmentação de sua influência e a cooptação de suas propostas pelos partidos da ordem, inclusive os de corte neoliberal.

Hoje, possivelmente sob impulso da crise mundial deflagrada a partir de 2008, a juventude – como sempre – empenha sua influência nos movimentos de massa para trazer a esquerda identitária para mais perto da classe trabalhadora. Uma espécie de volta às origens. Em termos de literatura, a inspiração para essa retomada pode ser buscada em autores tão distintos quanto Toni Negri ou ainda Zlavoj Zizek, em sentido eclético. Porém, o marxismo participa da renovação da cultura insurgente por meio de nomes como James Petras, Angela Davis e David Harvey – entre outros. Essa conjugação entre prática e teoria explica, pelo menos em parte – uma vez que há outras condicionantes – o surgimento de agrupamentos com as características do Podemos, na Espanha ou o Bloco da Esquerda, em Portugal. Em menor proporção, também descreve a dinâmica de organizações como A Esquerda, na Alemanha e o Syriza, na Grécia.

Também publicado no blog do jornal Algo a Dizer.


Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX.

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