“Malvados mortos” circulam nas imediações do Planalto, por José Carlos de Assis

Artigo originalmente publicado no Jornal GGN.


Eu era um jovem repórter do “O Jornal”, do finado Diários Associados, quando fui mandado a Brasília para uma reportagem sobre a situação nacional vista pela ótica dos principais líderes políticos, notadamente Ulysses Guimarães, do MDB, e Filinto Muller, da Arena. Por pura curiosidade passei pela Tribuna da Imprensa da Câmara, onde discursava com impressionante veemência um deputado do antigo MDB. Lembro-me bem de suas palavras. “Será necessário, senhor presidente, que eu traga e atire neste plenário alguns cadáveres para provar que existe tortura no Brasil?”

Sequer passou pela minha cabeça fazer uma reportagem sobre aquele pronunciamento, livre exclusivamente dentro do espaço do Congresso. Isso era 1973, e ainda estávamos sob severa censura, externa e interna. Mas a imagem do deputado ameaçando jogar cadáveres no plenário nunca saiu de minha imaginação. E volta agora, de forma mais impressionante, quando penso em mais de cem cadáveres de presidiários que deveriam ser jogados nas mesas de alguém a fim de despertar um sentido de responsabilidade por uma situação selvagem como essa, digna dos piores filmes de horror e de tortura.

Em quais mesas deveríamos lançar os cadáveres? Nas mesas dos secretários de Segurança? Certamente que não. O que poderiam ter feito eles para evitar os massacres, já que lhes foram sonegados sempre, insistentemente, recursos financeiros para adequar o sistema carcerário a uma população dramaticamente crescente? Eu tenho o endereço das mesas. Neste momento, são as mesas de Henrique Meirelles e Michel Temer, os dois articuladores atuais do Estado mínimo no Brasil, cujo primeiro objetivo é privatizar todos os serviços públicos essenciais a fim de abrir espaço para a exploração lucrativa privada.

Os mortos nada podem fazer. São os “malvados mortos” do livro do jurista João Luiz Duboc Pinaud, cuja mulher, Kátia, tentou bravamente introduzir no Rio um sistema penitenciário humano, no qual também trabalhou com extrema generosidade minha mulher Iara, com aulas de arte de papel machê para jovens infratores. “Malvados mortos” foi a forma como se referiram os promotores da época a escravos rebelados que haviam sido assassinados numa caçada no Rio de Janeiro no século XIX. “Malvados mortos” são esses presos que denunciam, de seu destino desgraçado, o que significa o regime neoliberal de Temer e de Meirelles.

Durante dias resisti à ideia de escrever sobre as matanças de presidiários do Norte e do Nordeste para não parecer oportunismo político em cima de uma tragédia humana. Entretanto, em face do que está acontecendo – o verbo correto é está acontecendo, e não que aconteceu -, pior do que tudo seria a indiferença. A televisão já cuida de minimizar a situação. Os jornalões passaram a ser discretos. O foco são as supostas providências do Governo, sabidamente inúteis no curto prazo, em lugar da descrição fria dos fatos, capazes de gerar revoltas emocionais. Mais uma vez, estamos sob a manipulação midiática de sempre.

Numa situação normal, este Governo seria derrubado logo pelos “malvados mortos”. Mas não estamos numa situação normal. A essência desse Governo é a corrupção. Corruptos são todos os principais auxiliares de Temer. Ele próprio parece estar numa armadilha:  se perder seus “corruptos” de gabinete, como o Angorá, o Caju, o Primo e tantos outros, não terá quem colocar no lugar. Isso significa que, em seu círculo de influência, já não há mais alternativas. Por isso a solução é tocar o barco como pode. Até que um “malvado morto” seja jogado na porta do Planalto e o presidente, tocado, recorra à  dignidade da renúncia.

É verdade que no sistema caótico em que nos encontramos não é possível prever exatamente os próximos acontecimentos A Física nos diz que numa situação de caos, onde prevalece a segunda lei da termodinâmica, a lei da entropia, a ordem só ressurgirá, num nível superior, a partir da ação de um chamado Atrator Estranho - uma figura um tanto metafísica não explicada nem pelo determinismo nem pela probabilidade quântica. Em nosso sistema caótico um leninista diria que a corrente arrebenta pelo elo mais fraco. Nessa situação, Temer provavelmente não será derrubado nem pelos vivos nem pelos mais inteligentes. Será derrubado pelos malvados mortos das penitenciárias que lhe cercarão como fantasmas.

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