Estado em Exceção, com aspas ou sem? Por Vanessa Batista de Andrade

Estamos a cada dia vivendo uma surpresa.

Sábado dia 29 de Outubro de 2016, um dia de sol e de luta em Foz do Iguaçu, muitos professores na praça reunidos discutindo o que levariam para Assembleia na segunda-feira em Curitiba, do outro lado da rua, nossos queridos lutadores estudantes chegando em passeata pacífica e animada, com palavras de ordem, faixas e bandeiras contra a PEC 241, o PL 746 e contra o Golpe. Um cenário muito lindo de se ver, a população na rua reclamando seus direitos, se unindo contra as austeridades que querem nos forçar a engolir. Um momento raro.

De repente buzinas, algumas a favor e muitas outras contra, e por quê? Talvez, por que nossa mídia em grande medida nos faz termos consciência de forma enviesada sobre a realidade. Temos noção a partir dos meios de comunicação, que estão comprometidos com o capital, com o poder econômico, com a elite política e não com a população e com os problemas sociais. Assim, a ideologia que nós carregamos em nossa cabeça, geralmente é a ideologia daqueles que controlam nosso pensamento, como diria Marx, no Prefácio a Introdução da Critica da Economia Política [1]:“Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência.” (2008, p.47), ou seja, as relações cotidianas de nossa vida, do trabalho, das relações de convivência familiares, de nossas crenças, todas elas mediadas pela mídia e pelo pensamento único, que compramos sem perceber, vão desviando nosso olhar das grandes causas e dos grandes problemas sociais, para os “problemas” que são colocados para todos como mais importantes que os verdadeiros.

Assim, as buzinas, os xingamentos e as agressões físicas e verbais, podem ser explicadas por esse catecismo antipolítico, que estamos imersos. E em boa parte da população, tem grande eficácia, pois diariamente nos diz: como devemos nos posicionar contra os movimentos sociais, contra as ocupações das escolas, contra todos aqueles que estão contra o que está posto. Parte desta antipolítica, às vezes extrapola nosso cotidiano, como foi neste sábado, quando a manifestação de nossos estudantes, foi rompida por um carro, que levou um dos participantes do ato em seu capô, grudado em seu para-brisa, uma cena um tanto irreal, coisas que só vemos no cinema, mas em um filme tudo é fictício e com uma margem de segurança. Contudo, quando algo do tipo ocorre em nossa frente, quando a fragilidade de um pedestre é colocada à prova por uma posição política contrária as manifestações, o racho na história deve ser apontado, não pode ser naturalizado.

Neste exato momento estamos vivendo sob o manto da exceção, de um Estado que tenta nos outorgar leis anticonstitucionais e antissociais, e a população é educada via meios de comunicação para aceitá-las. Quando eu era pequena, haviam seitas que eram perseguidas por aplicarem métodos de doutrinação sobre seus seguidores, que eram considerados com lavagem cerebral, os cidadãos balzaquianos lembraram com certeza de um tal, de reverendo Moon, que fora acusado de praticar esta ação sobre seus seguidores. Muito bem, e o que temos hoje, senão tal prática enraizada em nossa sociedade por meio das corporações que propagandeiam o que devemos: comer, vestir, usar, sentir etc.

E o pior de tudo, é quando isso atinge o que devemos pensar, pensamos através dos cérebros de outros, nos mastigam o que devemos consumir intelectualmente. Mostram-nos quem são os inimigos, e sem questionar somos treinados diariamente, e os símbolos, as palavras serão amadas ou odiadas, se forem impostas aos nossos olhos paulatinamente. E assim, o poder da sugestão nos move para agirmos de algumas formas sem questionar, para aceitar medidas políticas, inclusive aquelas que nos farão mal. A psicologia e a neurociência explicam isso, somos sugestionados pelo bando, somos seres gregários, e aqueles que questionam, e não se comportam como a regra determinada, serão exilados ou punidos. E foi isso que ocorreu ao manifestante, como já foi colocado por Platão, ousou como muitos neste sábado, a questionar o real, foi às ruas com muitas dúvidas, ousou duvidar das sombras da caverna, e por isso quase pagou com a vida.

A violência de um corpo metálico contra o seu de carne e osso, a velocidade que marcava em metros a possibilidade da queda, e um vidro que separava a intolerância da incredulidade, e uma cena que modificará com certeza a lembrança de quem a presenciou.  

Precisamos falar sobre isso, sobre os comportamentos injustificados da população que veem nos alunos, nos grevistas, nos movimentos sociais, nos partidos políticos revolucionários, inimigos ou elementos devem ser combatidos, que devem ser perseguidos, como os inquisidores atrás de suas fantasiosas crenças, quando elegiam um bode expiatório, e sobre o qual recaiam todos os males.

Não que os males não existam, ou que não exista uma lógica que acaba determinando a miséria no mundo, mas é por existir tais males que estes que se opõem, são acossados. Porque em suas ações de contestação revelam que não há uma harmonia social, como gostariam de nos fazer acreditar e que existe algo muito errado na sociedade. Mas, tais posicionamentos políticos poderão contagiar mais pessoas, e estas poderão também se posicionar contra tomando partido na causa, e isso é abominado pelo conservadorismo de nossas elites. 

A participação política das classes menos abastadas, é muito temerária e repudiada pela elite “bem nascida” brasileira, e por isso deve ser combatida, e qualquer medida política que vá nessa direção, deve ser colocada no descrédito, os apelos vão de encontro à ideologia do dom e da meritocracia. E mesmo aqueles que não fazem parte dos “bem nascidos”, acabam por adotar tal ideia e como os cruzados desferem suas investidas contra todos os indivíduos ou instituições que questionam o real, e por isso não é de se estranhar que as agressões apareçam como uma luta campal na sociedade. É isso que de certa forma querem os que nos coordenam, pois assim se eximem de gastos públicos com a violência generalizada, e se concentram em aplicá-la em locais onde a resistência esteja mais em evidência nas mídias.

É, estamos sob a ditadura, com ações violentas legais e com o apelo dos meios de comunicação à ignorância da população, e esta ditadura cria monstros que devem ser combatidos, destruídos, e o medo se faz presente direcionando as ações dos cidadãos que coadunam com tais pensamentos. Estamos vivendo dentro de um quadro de Hieronimus Bosch, intitulado d'O Jardim das Delícias Terrenas, em específico a parte do Inferno, de 1504, olhamos de um lado e vemos criaturas disformes e não um outro parecido conosco, e assim ao nos assustarmos com o diferente o repudiamos e o agredimos, como foi o caso de nosso manifestante no ato dos estudantes, que além de ser levado sobre o capô do carro e velocidade alta, ao parar o carro bruscamente, o condutor desceu e agrediu o pobre e assustado individuo que já estava no chão, e ainda disse com gosto: “Como é bom bater em estudante.”

A história nos conta que quando havia deslocamentos populacionais, os encontros com culturas diferenciadas trazia toda espécie de aversão e conflito, pois diferentes: línguas, crenças, vestimentas traziam consigo o temor do desconhecido, pois havia o estranhamento. Todavia, como explicar este mesmo temor quando habitamos a mesma sociedade?  Se não levarmos em conta, que esse estranhamento em nossa sociedade está posto pelas relações sociais de exploração, determinadas pelo Capitalismo, advindas da relação capital e trabalho, da luta de classes determinada historicamente entre possuidores e despossuídos, que estabelece diferentes formas de participar e apreender o mundo e, que em grande medida, os meios de comunicação influenciam grandemente sobre aqueles que nada possuem a não ser sua força de trabalho, destes é sempre esperado uma homogeneização de comportamentos.

 E o desvelamento do real, dos mecanismos que organizam a sociedade geralmente fica restrito a um pequeno número de indivíduos que saíram da caverna e que lutam para que outros saiam e se libertem das “forças ocultas”.

Huxley escreveu em seu Retorno do Admirável Mundo Novo [2], que:

É pelo manuseio de “forças ocultas” que os versados em publicidade nos induzem a comprar-lhes os produtos – um dentifrício, uma marca de cigarros, um candidato político. E foi recorrendo para as mesmas forças ocultas – e para outras demasiado perigosas para que a Madison Avenue tornasse contato com elas – que Hitler levou as massas alemãs a comprarem elas próprias um Fuehrer, uma filosofia insana e a Segunda Guerra Mundial.  (1964, p.45)

Tais “forças ocultas” adicionam em nossa mente gostos, desejos e posicionamentos, que por vezes são contrários a nós mesmos. Tais forças são usadas muitas vezes para criminalização indivíduos e movimentos sociais, mas como são forças ocultas não nos percebemos disso, olhamos o outro como se fosse um bárbaro, que deve ser punido por “invadir” ou ocupar nosso território, que na maioria das vezes, tal território não nos pertence, mas tomamos a “dores” daqueles que nos coordenam como se fosse nossa, e nesse momento, aquilo que é privado inclusive de nós, passa a ser “nosso” para ousarmos fazer coro juntamente com a elite, contra todo tipo de ocupação. Isso é muito ridículo, não percebermos que somos massinha de modelar nas mãos de poderosos artífices do real. E não seria isso, exatamente o que estamos vivendo nesta última semana? Quando um carro rompe um cordão humano e arrasta sobre o capô um indivíduo por metros e depois o agride verbal e fisicamente? Quando invadem escolas e Núcleos Regionais de Educação para retirar estudantes que estão ocupando contra a MP 746 e a PEC do fim do mundo, como ficou conhecida a PEC 241 ou 55 para o Senado, que acabará com as possibilidades dos direitos sociais constitucionais cumprirem seu papel?

Ou quando a polícia prende apresentadores de uma peça de teatro em Santos, por estarem criticando o braço armado do Estado? E para finalizar a semana, invadem uma escola do Movimento dos Trabalhadores sem Terra, a Escola Florestan Fernandes, com arma em punho como se fosse um local de conflito, de guerra, e atiram a esmo para o chão para demonstrar a virilidade e o poder da legalidade, derrubando um senhor de 64 anos no chão e o imobilizando como se fosse um inimigo mortal? Estamos ou não dentro de uma guerra de todos contra todos, pois é isso que querem nos fazer acreditar, que não existe um inimigo que é mais forte e que determina nossa realidade, não é mesmo? O que é isso? Para que atos institucionais? Se neste momento as medidas adotadas na ditadura militar estão sendo aplicadas pelos civis, sejam eles da população ou da polícia.

Por isso, devemos colocar a boca no mundo, caso contrário, mais “cruzados” vestindo suas armaduras, sejam elas de metal ou institucional irão romper com violência qualquer ato público dos movimentos sociais ou de partidos políticos revolucionários, decretando o pensamento único e determinando o molde ao qual deveremos nos subsumir. Por isso e muito mais, que foge ao espaço dessas páginas, devemos nos unir em uma única luta por nossos direitos, ou simplesmente pelo direito de existir de uma forma verdadeiramente humana. Convido a todos a pensarmos sobre isso e agirmos organizadamente para o bem de todos nós.

Referências:


[1][1] MARX, Karl. Critica da Economia Política, 2ª edição, São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008.

[2] HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável mundo novo. São Paulo: Circulo do Livro, s.d.


Vanessa Batista de Andrade é Doutoranda em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP. Tem experiência na área da Sociologia, com ênfase em Sociologia Econômica, área da circulação da mercadoria/consumo, atuando principalmente nos seguintes temas: capitalismo, mercadoria, economia política, marxismo, consumo, crédito e neuroeconomia.  

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