Balanço das Eleições do Rio e a síndrome de Claudio Coutinho, por José Luis Fevereiro

Balanço impecável das eleições do Rio de Janeiro e uma bela avaliação acerca da esquerda carioca pelo camarada José Luis Fevereiro, militante e membro do Diretório Nacional do PSOL e da corrente interna US - Unidade Socialista.

Perdemos a eleição do Rio de Janeiro porque não tínhamos como vencer. Reza a lenda que o Rio é uma cidade progressista , com tendência á esquerda, mas pelo menos nas disputas municipais, essa lenda não encontra muito respaldo na realidade. Desde os anos 80 com Saturnino Braga em 1985 e Marcelo Alencar em 1988 que candidaturas socialmente vistas como de esquerda ( sim, era desse jeito que Marcelo Alencar era visto em 88) não vencem as eleições. Desde 1992, quando Benedita da Silva perdeu por 52 a 48% para Cesar Maia, que a esquerda sequer conseguia disputar o segundo turno. Em 1996, 2000 e 2008 o segundo turno foi disputado por duas alternativas á direita; em 2004 e 2012 a direita venceu no primeiro turno. 
Agora em 2016 Marcelo Freixo chega ao segundo turno com pouco mais de 18% dos votos , beneficiando-se da fragmentação da direita não religiosa em 4 candidaturas, uma delas, a de Bolsonaro Filho, de extrema direita, e da migração do voto útil de eleitores que tinham as outras duas candidaturas vistas como progressistas como primeira opção. Somando-se á votação de Freixo a votação de Molon e Jandira chegamos a cerca de 23% dos votos validos.77% dos eleitores votaram em candidaturas á direita do espectro politico. Essa conta evidentemente não é exata porque boa parte do eleitorado não usa esses critérios de direita e esquerda na definição do seu voto. Identificações culturais, estéticas, simbólicas e fundamentalmente a percepção do que sejam seus interesses imediatos e quem os pode melhor representar, são elementos essenciais na definição do voto. 
No segundo turno Freixo ampliou em cerca de 600 mil votos sua votação sendo que pouco menos de 150 mil vieram de eleitores de Jandira e Molon. Os restantes vieram de eleitores que fizeram sua escolha pela defesa dos valores do Iluminismo contra uma alternativa vista como teocrática. Provavelmente a nossa geração jamais voltará a ver um candidato socialista vencer as eleições no Leblon e perder de pouco em Ipanema. 
A derrota da esquerda está exatamente nas áreas da periferia onde se concentra o eleitorado que é em tese o maior beneficiário do programa “redentor “ que defendemos. Esse é o centro do balanço a ser feito. Há uma crise de credibilidade da esquerda provocada pela falência do projeto do PT, que alguns setores do próprio PSOL sonharam que não nos atingiriam. Discursos de que o PT não é esquerda e logo nada temos que ver com isso, entendem a politica a partir de proclamações programáticas e não da percepção social do que os vários atores representam. Fizemos oposição aos governos de Lula e Dilma, mas os valores pelos quais esses governos são avaliados pelo povo são os mesmos que defendemos; a solidariedade, a igualdade , a liberdade, o papel do estado como agente redistributivo de renda, e tudo isso entrou em crise junto com a crise do PT. Em politica o que parece, é. 
Essa no entanto não é a razão da nossa derrota porque essa crise não explica a prolongada ausência da esquerda da disputa real desde 1992.A razão da nossa derrota são as nossas insuficiências e a dificuldade de entender, ouvir e reconhecer legitimidade no outro. Tenho visto por aí avaliações reducionistas que no fundamental apontam a ignorância do povo pela nossa derrota. Afinal se temos um programa redentor, que por obvio é o que melhor atende os interesses da maioria , só dois tipos de pessoas podem se opor a nós. Os mal intencionados e aqueles que os primeiros manipulam. Desse raciocino deriva outro que se tivéssemos vencido nos causaria enormes problemas, o de que governaríamos sem alianças. 
Neste caso não ajudou o discurso de Freixo de que nosso secretariado seria técnico. Optando por não enfrentar a onda da anti politica ,Freixo reforçou a confusão entre a daninha logica do presidencialismo de coalizão que vigora também em Estados e Municípios baseado na formação de bases parlamentares assentes no loteamento do aparelho de estado com a decorrente praga associada da corrupção estrutural, e a necessária conformação de alianças programáticas ainda que com concessões, essenciais numa democracia onde invariavelmente o vencedor não representa a maioria absoluta. 
Vigora no PSOL de uma forma geral e no Rio em particular a ideia do não reconhecimento da legitimidade das outras representações politicas e que portanto, qualquer negociação seria imoral.  
As experiências em Porto Alegre com Olívio Dutra, de Erundina em S.Paulo e de Edmilson em Belem nos anos 80 e 90, onde a esquerda governou em minoria nas câmaras, não nos autoriza a essa interpretação. Pressão e negociação ocorreram o tempo todo e só assim se conseguiu governar. 
A derrota nas áreas populares e em particular no segmento evangélico que decidiu a eleição contra nós, merece uma reflexão detalhada. Segundo o Data folha 91 a 92% dos eleitores evangélicos pentecostais votaram em Crivela e de 8 a 9% em Freixo. Entre os evangélicos tradicionais foi algo entre 85 a 86% a 14 a 15%.Como os evangélicos são cerca de 28% do eleitorado e tiveram um índice de comparecimento maior e de voto branco e nulo bem menor podemos inferir que foram responsáveis por um terço dos votos validos .Perdendo a grosso modo de 30 a 3 em um terço do eleitorado valido ,não é possível vencer a eleição. A classe media e a esquerda no geral carregam um enorme preconceito contra os evangélicos reduzidos á condição infantil de pessoas facilmente manipuladas por pastores inescrupulosos. Contribuem para a formação desse esteriótipo as cenas deploráveis de mercadores da fé que com frequência aparecem em programas comprados de TV, os pastores Valdomiros, RR Soares , Bispa Ingrid Dutra e seu amado esposo, dois picaretas escrachados; mas o mundo evangélico é muito maior que isso e felizmente bem mais plural, ainda que majoritariamente muito conservador. E os 8 a 9% de evangélicos pentecostais que declaravam voto em Freixo mostram que tem como disputar. Mas é preciso trabalho de base de médio para longo prazo. 
O PSOL em geral ,mas particularmente no Rio se consolidou como expressão politica de bandeiras identitárias; luta feminista, LGBT, anti racista, causas absolutamente imprescindíveis porque lidam com opressões concretas, mas até por não terem corte de classe, são insuficientes para construir hegemonia na sociedade. Em pouco mais de 10 anos de construção, e mesmo sem se omitir em nenhum momento nesses enfrentamentos, o PSOL não conseguiu se tornar referencia de representação politica nas lutas por direitos sociais; habitação, transporte, saúde, educação, trabalho e segurança. Em algumas destas lutas somos referencia para parte das vanguardas ,mas sem maior expressão de massa. Sem conseguir ter maior protagonismo e reconhecimento social nestas causas e sem disputar o segmento evangélico ,não teremos como vencer eleições no Rio de Janeiro, nem na capital e muito menos no estado. 
Nenhuma destas insuficiências, razão maior da nossa derrota, é de fácil superação. Mas como sempre diz o nosso deputado Glauber Braga, nós estamos entre aqueles que não escolheram o caminho fácil da vida. Tenho nos últimos dois anos em particular, debatido e feito formação politica para publico evangélico. Entender a razão do crescimento acelerado do protestantismo pentecostal nas periferias é o primeiro passo para conseguir disputar politicamente esse segmento .É difícil fazer reuniões politicas na baixada fluminense aos domingos, dia dedicado á Igreja; não apenas ao culto, mas à Igreja, como espaço de sociabilidade, como sentido de pertencimento, como espaço onde as pessoas se sentem acolhidas e valorizadas. A base evangélica não é composta por pessoas infantilizadas, manipuladas por seus pastores. É constituída por trabalhadores que ralam no transporte precário, nas filas do SUS, na precariedade do ensino publico, no domínio das milícias ou do trafico, e que encontram na Igreja muito mais que a religião redentora, mas o apoio psicológico e muitas vezes material, para enfrentarem as dificuldades da vida. 
A nossa agenda identitária , usada contra nós por Crivella com recurso á manipulação e distorção pode e deve ser debatida com evangélicos. Temos feito isso com sucesso embora de forma muito limitada por não ser uma preocupação assumida pela maioria do partido no Rio. Casamento civil igualitário , como garantidor de direitos como pensão, herança, compartilhamento de planos de saúde; educação sexual nas escolas, como prevenção a uma das pragas das periferias que é a gravides na adolescência e as doenças sexualmente transmissíveis, tolerância á diferença de orientação sexual que começa a se manifestar na adolescência , afinal ninguém deve ser vitima de bulling e isso é um principio cristão. Devidamente debatida a nossa agenda pode dialogar com a classe trabalhadora evangélica. Assumir mais protagonismo na agenda de direitos sociais também ajudaria. Enquanto tivermos no PSOL dirigentes que comparam a Marcha para Jesus que reúne mais de 500 mil pessoas , com passeatas da Ku Klux Klan, vai ser difícil superar esse desafio. 
A grosso modo estas são as nossas insuficiências, impossíveis de serem superadas numa campanha, mas possíveis de o serem com trabalho de médio prazo. Compreender e aceitar a legitimidade de outras representações , abandonarmos uma certa arrogância característica dos que se acham condutores da historia, aceitar a legitimidade da nossa derrota e buscar aprender com ela, superar a síndrome de Claudio Coutinho que após a derrota na Copa de 78 na Argentina se proclamou campeão moral, é fundamental. 
Já avançamos muito até aqui, mas é maior o caminho pela frente que aquele já trilhado.

Um comentário:

  1. Como não PSOLista que sou mas como eleitora do Freixo no segundo turno de 2016, me sinto aliviada de ler argumentos corajosos de um membro deste partido!
    Particularmente, me senti contemplada pelo autor lembrar o óbvio que é o fato de fieis das Igrejas Pentecostais ou mesmo Católicas que não votaram no Freixo serem, além de fieis, trabalhadores! Tudo o que não vimos na campanha do PSOL este ano foi compreender que a maior parte do eleitorado é formada de trabalhadores! O conceito de cidadão não deu conta de atender esta realidade.
    Que esta óbvia conclusão sirva também para o movimento sindical e para os políticos do plano estadual e federal, para que não se assustem nas próximas eleições e nem coloquem a culpa em quem recusamos que sentem ao nosso lado! Jô Portilho

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