Um clima de Inquisição


Por Luiz Carlos Bresser-Pereira*

Afinal, a quem interessa a delação premiada? Como ela está regulada em lei, o pressuposto é o de que essa instituição interessa à sociedade brasileira, porque é uma forma de desvendar os crimes e apontar os criminosos. De fato, a luta pela moralidade pública que se trava hoje no Brasil não teria ido tão longe se não fosse o incentivo legal à delação. Mas eu cada vez me convenço mais que essa luta está indo longe demais, ou, em outras palavras, que seu custo está se tornando bem maior do que seu benefício.

A operação Lava Jato surgiu para proteger a Petrobrás, seus acionistas, e os brasileiros em geral contra uma quadrilha de bandidos que lá se instalou. Maravilha, mas, considerando-se apenas o aspecto econômico, o prejuízo que ela já causou à própria Petrobrás e às grandes empresas fornecedoras envolvidas em propinas é muito maior do que o benefício. Estamos enfraquecendo nossa maior empresa e arriscando a sobrevivência de suas grandes empresas fornecedoras que representam um patrimônio econômico para o Brasil. Sem dúvida, é necessário punir seus dirigentes, mas os acordos de leniência com as empresas já deviam ter sido celebrados.

Mas o ataque às empresas proporcionado pela delação premiada e as diversas operações policial-judiciais que estão sendo conduzidas as tendo como base não se limitam às empresas empreiteiras. De repente, vemos outras grandes empresas onde ainda sobrevive o capital nacional – bancos e agora a Embraer – também vítimas das delações. Está na hora de dar um basta a isso.

Mas há os benefícios e custos morais. Sim, queremos ver os corruptos punidos; sim, queremos elevar o padrão moral da sociedade, do mundo dos negócios, e dos políticos brasileiros. Mas o mundo não se fez em um dia. A corrupção dos meios empresariais e políticos brasileiros é ampla e profunda, e só melhorará quando os brasileiros souberem defender melhor seus direitos e exercer melhor seus deveres republicanos. Além do custo econômico que envolve a campanha moralista em curso, há o custo moral – o custo em termos de direitos. 

Também de repente, com base nas mesmas delações premiadas, vemos todos os políticos brasileiros serem desmoralizados a partir da imediata transformação da delação em manchetes da mídia; vemos os políticos transformados em ladrões, ou então em autores de obstrução da justiça, sem outra prova senão a delação feita por um reconhecido e confesso bandido. Neste caso, o custo moral é imenso. 

O sistema judicial está ameaçando os direitos civis das pessoas – está ameaçando seu direito à liberdade e ao direito de só ser julgado de acordo com os devidos procedimentos legais, e só ser condenado desde que fique provado seu crime. São esses direitos fundamentais que estamos vendo ser violados todos os dias. 

A Câmara dos Deputados aprovou um impeachment sem que a presidente houvesse cometido crime de responsabilidade. A Justiça e a mídia estão julgando e condenando informalmente as pessoas com base em delações premiadas. A Justiça assim age, porque alguns juízes deixam de ser magistrados para se transformarem em Robespierres, porque esses juízes prendem pessoas para forçá-las a delatar, porque fazem vazar as delações, e porque a Justiça maior permanece paralisada diante dos abusos cometidos por seus membros menores: a mídia, porque disputa leitores ou audiência na base do escândalo originado das delações.

Os objetivos políticos maiores das sociedades modernas são a garantia dos direitos civis (liberdade individual), dos direitos políticos (democracia), dos direitos sociais (melhoria dos padrões de vida e diminuição das desigualdades), e dos direitos republicanos (direito a que o patrimônio público, inclusive o meio ambiente, seja usado para fins públicos). A moralidade é um direito republicano, mas não podemos, em nome dela, esquecer e desrespeitar os demais direitos. Não podemos, em nome da justiça, submeter muitos à injustiça. 

Hoje, depois do triste espetáculo a que estamos assistindo, depois de vermos a honra de empresários e homens públicos ser violentada por acusadores indignos de crédito, o estatuto da delação premiada só interessa aos delatores. Repito, está na hora de darmos um basta ao que está acontecendo, de pensarmos melhor e rejeitarmos o clima de Inquisição que foi montado no Brasil nestes dois últimos anos.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) onde pesquisa e ensina teoria econômica e teoria política desde 1959. Foi Ministro da Fazenda (1987) e Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-1998). É doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires. Em 1988 foi um dos fundadores do PSDB. Em 2011 declarou-se desligado do partido, que, segundo ele, caminhou de forma definitiva para a direita ideológica.

Nenhum comentário: