Você sabe o que é ter um amor? Diferente das demais, nessa obra quem canta o enredo é quem vive a própria história, o povo de Mangueira, por Alipio Carmo


O jeito mangueirense de compor samba-enredo


A combinação de suas cores, a batida do surdo sem resposta e a força do canto e do samba no pé de sua comunidade são marcas que consagraram a Estação Primeira. Mas as tradições da verde e rosa são profundas e sutis. Uma delas, pouquíssimo falada, é o seu estilo de samba-enredo. Acredito que muitos leitores de imediato irão intuir: Samba de Mangueira é pra cima, valente e tem uma divisão rítmica para casar com o toque singular de sua bateria. Quero, no entanto, dizer que é um pouco mais complexo. Afinal, esse fundamento foi semeado por seus poetas. E quem me contou foram dois herdeiros da verve da escola, Hélio Turco e Tantinho.


No ano de 1998, trabalhava como estagiário do departamento cultural da UERJ na pesquisa “Todo mundo te conhece ao longe”, destinada ao registro da memória musical de importantes componentes da Estação Primeira. Tive na ocasião a oportunidade de entrevistar Carlos Cachaça, Dona Neuma, Dona Zica, o compositor José Ramos, entre outros. Mas foi o depoimento de Hélio Turco, hoje presidente de honra, que mais me chamou atenção. O autor na época já ostentava o título de ser o maior vencedor de sambas da agremiação, entre os quais, “Reminiscências do Rio Antigo”, “Cem Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?”, e “Yes, Nós Temos Braguinha”. A conversa de mais de 90 minutos rendeu duas fitas cassete e foi uma verdadeira aula sobre a arte de compor samba-enredo. Hélio iniciou sua entrevista com a seguinte declaração: 


“Existem duas formas de se fazer. Primeiro, a descritiva... O cara pega quem, quando e como aconteceu a história e faz os versos fato a fato. O segundo jeito é o interpretativo. A poesia conta o enredo. Esse é o que eu faço”.


Ao ouvir “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, composto em 67, comparei com os sambas da época e entendi o recado. Observem, por exemplo, “Machado de Assis”, 1959, Aprendizes da Boca do Mato, de Tolito e Martinho da Vila:


“Ele foi o literato-mor

Suas obras lhe deram

Reputação

Quincas Borba, Esaú e Jacó

A Mão e a Luva

A Ressurreição”

 

Agora, o samba de Hélio, Darci, Luiz e Batista:


“Relembro...

Aquele mundo encantado

Fantasiado de dourado

Oh! doce ilusão

Sublime relicário de criança

Que ainda guardo como herança

No meu coração”


A diferença é nítida. Nos versos temos a presença do chamado eu lírico, recurso literário no qual o narrador da canção ou poema não é necessariamente o autor do texto. Esse jeito de compor foi levado a avenida em muitos carnavais pela agremiação.


Quando participei da produção do CD “Memória em Verde e Rosa” de Tantinho, tive acesso aos sambas dos anos 50, anteriores a Turco. Tantinho, guardião do patrimônio musical da Estação Primeira, cantou dezenas de composições, vencedoras e derrotadas. Pude perceber que, nesse período, nomes como Alfredo Português, Nelson Sargento, Zagaia, Leléu, Cícero, Pelado, Padeirinho fugiam do chamado “lençol”, padrão consagrado por Silas de Oliveira na Império Serrano, que se constituiu como o formato convencional dos sambas-enredos até o fim da década de 60. Eram assim chamados, pois eram grandes, justamente, por optarem pela tentativa de “cobrirem” todos os fatos, anos, lugares e personagens. As letras mangueirenses, ao contrário, possuíam características mais livres e intimistas.


O pesquisador Luiz Antônio Simas e o escritor Alberto Mussa no livro “Samba de Enredo – História e Arte” defendem a ideia que esse gênero é épico genuinamente. Sem discordar dos dois importantes estudiosos, ouso dizer que a Estação Primeira criou uma forma particular, pioneira e moderna de fazer seus sambas-enredos com elementos líricos na sua poética tal como Hélio Turco afirmava na sua entrevista. Ouçam a “As Quatro Estações” de Nelson, Alfredo e Jamelão (1955). Ali fica muito claro que o modelo mangueirense era outro. Essa canção antecipa em 22 anos “O Domingo” da União da Ilha. Mas só a partir de 1967, com o sucesso nacional de “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, gravado por Eliana Pittman, as demais escolas aderiram à proposta mangueirense e começaram a compor por esse caminho.


O eu lírico das meninas e dos meninos da Mangueira


Com “Angenor, José e Laurindo”, a agremiação homenageará o compositor Cartola, o intérprete Jamelão e o mestre-sala Delegado. O carnavalesco Leandro Vieira, em entrevistas para a imprensa carioca, deixou claro que não propôs uma abordagem biográfica, mas um enredo sobre a presença dos mestres nos costumes, práticas e corpos dos moradores do morro e componentes da escola.


Acompanhei a disputa de perto, pois escrevi uma obra que teve vida curta, eliminada na primeira rodada. Com a queda, o papel de compositor foi ocupado pelo de torcedor mangueirense e pesquisador de música brasileira. Como tive de fazer uma leitura mais atenta da sinopse, hoje não resta dúvidas, posso afirmar qual a obra mais adequada e melhor para os foliões carnavalizarem suas dores e alegrias.


Prezo, desde que conversei com Hélio Turco e convivi com Tantinho, por observar aqueles entre os concorrentes que carregam a identidade musical e poética de Mangueira. No caso dessa final, os três finalistas possuem a divisão rítmica apropriada à batida tradicional da escola, bem como, trazem letras do tipo “interpretativa”. Mas é a parceria de Paulinho Bandolim, Renan Brandão e Guilherme Sá que ousa e vai além.


A construção do recurso do “eu lírico”, com sofisticação, reverbera as vozes das meninas e dos meninos do morro. Diferente das demais, nessa obra quem canta o enredo é quem vive a própria história, o povo de Mangueira. Vejam que há o tempo todo na letra um jogo. Nele, um único narrador (o “Eu lírico Mangueirense”), três sambistas (Cartola, Jamelão e Delegado), moradores e componentes se alternam, ou melhor, desfilam.


“Ouça minha voz

No sobe e desce das ladeiras

No cantar das lavadeiras

No timbre do bamba José”


Com um texto de fácil assimilação, o resultado não poderia ser outro, uma música para tocar a alma. Ao lado de Angenor, José e Laurindo, estarão também presentes na avenida Mestre Tinguinha, Tia Fé, Xangô, Valdomiro, Neuma, Zica, Neide, Mocinha, Padeirinho e todos aqueles que forem evocados.


O trio de compositores produziu uma obra atual que respeita o silêncio do luto e oferece as pessoas individualmente a lembrança dos mangueirenses que nos deixaram na pandemia. Tudo isso com o toque poético da escola, sem ser apelativo, como Alvinho, Hélio Turco e Jurandir ensinaram em 91: “que vem brilhar na sutileza dos meus versos”.


“Mangueira nos acordes da saudade vai buscar...” 


Em tempos de tanta dor e sofrimento, a escola celebrará a vida na presença dos antigos baluartes. Carregando um legado em seus pés, com a voz de trovão, meninos e meninas sonharão em ser Evelyn, Squel, Wesley, Matheus e muitos outros. A verde e rosa manterá viva sua chama, geração a geração. Sempre foi assim e sempre será.


“Inebriam meninos que sonham em ser Cartola” 


A proposta única da parceria consegue equilibrar a homenagem aos bambas de forma dinâmica entre o passado e o presente, ou seja, entre a deferência à memória e o próprio desfile.


“Ouça minha voz

na apoteose, um trovão

De Lupicínio às gafieiras

Ecoa o Rei Jamelão”


Não se trata, nesse caso, de uma composição que exalta os personagens com a narração de suas características e seus feitos. Pelo contrário, temos o compartilhamento de emoções, perfumes, cores, sabores, sons e sensações. A herança para Paulinho, Guilherme e Renan é algo que só pode ser expresso nos corpos dos mangueirenses e que para ser materializada precisa ser coroada na avenida. 


“Aprendi com Delegado a flutuar pra ganhar a nota dez”.


Os bambas são revelados como sendo a própria tradição. Eles são lanternas que iluminam o trajeto a ser seguido.   


“Eu sei que no céu eles brilham por nós”


 Agenor, José e Laurindo parecem estrelas bordadas na bandeira por “versos e mãos calejadas”. Talento e sacrifício expressam o sentimento que unifica todas essas gerações, o amor à Mangueira.


“Cantar e dançar por você a vida inteira”


Temos, enfim, um samba-enredo nas regras das artes em diálogo com a poética de Cartola, o canto de Jamelão e o bailado de Delegado.


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Alípio Carmo é jornalista, produtor e pesquisador de música brasileira.

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