A polícia contra o Estado de Direito, por Sérgio Batalha

 

A polícia do Rio de Janeiro faz operações como a de ontem, com vários mortos, há mais de quarenta anos. Ontem, no entanto, houve uma diferença. 

Quando confrontado com o número recorde de mortos (25), o delegado responsável pela operação declarou que o “ativismo judicial” estaria prejudicando o trabalho da polícia e que "o sangue desse policial que faleceu em prol da sociedade de alguma forma está nas mãos dessas pessoas e entidades".

Em resumo, a polícia desafiou o Supremo Tribunal Federal, que limitou as operações em comunidades no início da pandemia, autorizando-as apenas em circunstâncias excepcionais. 

Em qualquer país civilizado (não digo nem desenvolvido) o delegado seria demitido, ou no mínimo punido, em função desta declaração. Um policial é um instrumento da lei, subordinado às determinações do Poder Judiciário. A declaração do delegado lembra a de um miliciano, um justiceiro que faz suas próprias leis.

Mas, antes que comece o interminável debate sobre a necessidade de se observar o Estado de Direito no combate ao crime, devemos refletir sobre a eficiência de tais operações.

A Polícia Civil afirmou que a operação foi “cuidadosamente planejada”. Concluo que a morte de um policial é um evento normal nestas operações, previsto no “planejamento” da polícia, assim como a morte de outras 24 pessoas. 

É um retrato do despreparo e do completo equívoco da estratégia de atuação da polícia no Rio de Janeiro. A polícia atua como uma força militar, que invade um território e mata os soldados do inimigo. Apenas na guerra as baixas de ambos os lados são normais e fazem parte de uma estratégia. 

A polícia na Europa e nos EUA atua de forma totalmente diferente. Polícia não é exército. Sua função primordial é proteger a vida dos cidadãos e não matar bandidos. Uma operação policial em que morrem 25 pessoas é um retumbante fracasso em qualquer lugar do mundo. 

Mas, mesmo que você ache que “bandido bom é bandido morto”, é importante entender que a estratégia da polícia é um fracasso sob qualquer aspecto. 

As restrições do STF às operações policiais prejudicaram o combate à criminalidade? Não, ironicamente, todos os índices de criminalidade no Rio de Janeiro caíram depois da decisão do Ministro Fachin. Ou seja, a polícia não é a solução, mas sim grande parte do problema.

A verdade que qualquer um enxerga é que, após a morte de um policial no início da operação, seus colegas partiram para uma retaliação e executaram os suspeitos, rendidos ou não. Não houve planejamento algum, foi simplesmente uma vingança de quem sabe que terá o respaldo de um governador e um presidente ligados à milícia.

O verdadeiro combate ao crime se faz com investigações e prisões dos criminosos. A política de confrontos serve apenas para reafirmar a necessidade dos bandidos possuírem armas pesadas, fornecidas muitas vezes por milicianos e até por policiais. É um sistema que se auto-alimenta, mediante a venda de armas e subornos para a polícia.

O resultado para a população que mora em comunidades é uma vida dividida entre o terror do crime e o da polícia. Os dois matam inocentes e impedem que as pessoas tenham uma vida normal, com trabalho, estudo e lazer.

Já passou da hora de se fazer um debate não ideológico sobre a questão da segurança pública. A questão não é mais o que seria justo ou injusto. O STF tem de impor o cumprimento da lei e devemos discutir uma polícia que funcione, não para ela mesma, mas para garantir a vida e a segurança de todos os cidadãos.

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Sérgio Batalha é advogado, professor universitário, especialista em relações de trabalho, além de conselheiro e presidente da Comissão da Justiça do Trabalho da OAB-RJ.

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