Sobre os atos de rua em defesa da democracia, neste domingo, por Orlando Guilhon


Companheiros e companheiras:

Neste domingo, muitos de nós fomos surpreendidos/as (uns mais e outros menos), por alguns atos de rua de coletivos antifascistas que defendem a democracia, a maioria ligada a coletivos de torcidas progressistas de futebol, mas também um ato com foco na luta antirracista (Vidas Negras Importam, no caso do Rio). Imediatamente, instalou-se um intenso debate nas redes, sobre a correção ou não destes atos, sobre a oportunidade ou não destes atos, sobre a eficácia ou não destes atos. Compartilho aqui com vocês algumas reflexões sobe o tema, sem ter a pretensão de ditar regras pra ninguém, e muito menos de ser dono da verdade.

1. Ao contrário dos fascistas negacionistas, o conjunto das forças políticas do campo democrático, popular e progressista tem defendido uma narrativa de que a pandemia do Covid-19 é muito séria, mata indiscriminadamente cidadãos/ãs, e que portanto é fundamental obedecer as orientações da OMS, em particular o isolamento social rigoroso como método mais eficaz de se proteger do vírus. Os dados atuais são alarmantes: no mundo, a pandemia já ultrapassou os 6 milhões de pessoas, e quase 380 mil mortes. No Brasil, ultrapassamos os 529 mil infectados confirmados e já ultrapassamos a marca dos 30 mil óbitos. O Brasil já é considerado pela OMS como o novo epicentro da epidemia. Já somos o 4º país do mundo em mortes, e o 2º lugar em casos infectados confirmados. Isso sem falar na subnotificação, que no caso do Brasil é uma das mais altas do mundo. Alguns especialistas falam entre 13 a 20 vezes mais os números de infectados reais. Desde o dia 19/05 ultrapassamos a marca macabra de mais de 1.000 mortes por dia. Todos os analistas concordam com o diagnóstico de que a nossa curva está ainda longe do seu pico, infelizmente. Estes são os dados científicos. O resto é especulação.

2. Temos defendido, como centro da nossa ação política, nesta conjuntura, o mote ‘Em Defesa da Vida, da Saúde, da Renda e do Emprego’, com foco no isolamento social rigoroso e nas iniciativas de solidariedade, principalmente com os setores mais vulneráveis da sociedade. E toda vez que Bolsonaro e seus seguidores convocam ou incentivam atos de rua massivos, corremos para as redes pra criticar os fascistas, chamando-os de irresponsáveis, negacionistas, assassinos, e outros que tais. Crivella acaba de divulgar seu Plano de Retomada gradual das atividades no Rio de Janeiro, no auge da pandemia, e igualmente inundamos as redes com críticas. Estamos fazendo uma disputa muito dura e desigual com os fascistas negacionistas sobre a necessidade do isolamento social rigoroso. Se queremos disputar efetivamente nossa narrativa, precisamos ser coerentes com ela. É bastante incoerente, pra dizer o mínimo, orientar a todos e todas para que respeitem o isolamento social, e ao mesmo tempo convocar para atos de rua massivos. Não faz o menor sentido.

3. É óbvio que a luta Em Defesa da Democracia e Contra o Fascismo, que hoje está centralizada na campanha Fora Bolsonaro!, é parte do centro da nossa tática. É fácil perceber que boa parte dos ativistas, e mesmo dos cidadãos/ãs em geral, estão angustiados, estressados, e com uma forte sensação de impotência diante da escalada do fascismo no país, dentro e fora do Governo. Mas, infelizmente, essa é a conjuntura que estamos enfrentando. As lutas estão sendo travadas nas redes, nas mídias alternativas e mesmo nas mídias comerciais privadas, nas janelas, varandas, paredes e lajes, por dentro e por fora das instituições e dos movimentos. Campanhas, manifestos, abaixo-assinados, cards, áudios, vídeos, lives, textos, matérias, reuniões e plenárias virtuais, cursos, oficinas, grupos de estudo, panelaços, barulhaços, apitaços, projeções de imagens em paredões, pichações e colagens de lambes na calada da noite, e mesmo pequenos atos simbólicos com poucos ativistas, estas são as formas que estamos conseguindo organizar e desenvolver. Com maior ou menor eficácia. É o que temos para hoje. Estamos construindo frentes e ampliando alianças, aumentando nosso nível de organização popular, criando redes de comunicação alternativa, investindo em formação política de nossos quadros e ativistas, e acumulando forças para futuras mobilizações de rua, mais massivas e efetivas, quando o cenário da pandemia assim o permitir. E muitas ações institucionais, no Congresso (com várias vitórias surpreendentes, apesar de sermos minoria), junto ao STF, ao STJ e ao TSE, com desdobramentos que podem vir a permitir um desfecho para a crise política que interessa às forças progressistas.

4. Claro, nada disso substitui as ações massivas nas ruas e nas praças. E a impossibilidade de ir às ruas vai causando mais angústia e sensação de impotência em muitos de nós. Ao tomarem conhecimento dos atos deste domingo, com fotos, vídeos e matérias circulando amplamente nas redes virtuais, muitos/as companheiros/as ativistas e militantes, mesmo de partidos de esquerda ou de outros movimentos sociais, e até mesmo de outros coletivos de torcidas progressistas, mas principalmente cidadãos/ãs sem nenhuma vinculação com nenhum partido ou movimento, se sentiram identificados com esta iniciativa, e as redes se encheram de mensagens de apoio e de estímulo, do tipo ‘eles nos representam’, ou ‘deveríamos estar também nas ruas’. Ou pior, ‘eu não posso, porque sou de grupo de risco, mas os jovens podem, que bom que a juventude pode lutar por nós’ (sic). O sentimento de pertencimento, de identidade, de sensibilização pela aparente ousadia dos que saíram às ruas, parece embotar o raciocínio e a capacidade de reflexão de muitos. Tchau pandemia, tchau número crescente de infectados, tchau número de mortos crescendo a cada dia, tchau isolamento social, o importante é a luta contra o fascismo. Será?

5. O tom subiu em vários grupos de WhatsApp e em outras redes, com posicionamentos contra e a favor da ida às ruas mesmo na atual situação de pandemia. Em várias mensagens, pode-se observar o fetichismo em torno do aparente ‘espontaneismo’ destes atos. Outras enaltecem o aspecto pretensamente autonomista destas iniciativas, o caráter não partidário destes atos. Outras mensagens buscam enaltecer o papel das redes sociais neste tipo de mobilização, as famosas novas formas de mobilização mais horizontais, que teoricamente prescindem de outras formas de organização (em particular de partidos, mas também de frentes, fóruns, entidades, etc). Será?

6. O que muitos parecem desconhecer é que todos os movimentos sociais tem suas divisões e disputas de protagonismo. Por trás de cada ato destes sempre há algum tipo de coletivo ou de organização. Não há espontaneismo, no sentido real do termo. Tais atos aconteceram porque alguém os convocou, e esse alguém nunca é um/a cidadão/ã isolado, sempre é algum tipo de coletivo. Tanto no movimento de coletivos de torcedores de esquerda, como no de luta contra o racismo ou no movimento de favelas, não há unidade, infelizmente impera a divisão e a histórica disputa de protagonismo. E foi isso que deu suporte à organização dos atos deste domingo, tanto num caso como no outro. Todos os setores da esquerda e até mesmo do campo democrático e progressista mais amplo gostam de clamar a necessidade de unidade para combater o fascismo. Mas, entre proclamar a unidade e dar passos efetivos para construí-la, vai uma enorme distância. Enquanto alguns constroem frentes, fóruns e redes com o objetivo de costurar a mais ampla unidade possível, tecendo alianças, debatendo e implementando estratégias comuns de luta, construindo iniciativas e atos unitários, outros se pautam pelo vanguardismo, pelo voluntarismo e pelo sectarismo, tomam suas decisões à parte e tentam enfiar pela goela do resto do movimento as suas propostas e decisões. Acham que viram a luz, que são donos de uma verdade, são mais vanguarda do que outras vanguardas, são mais corajosos e combativos que outros coletivos, que terão um maior protagonismo se se anteciparem aos demais. Simples assim.

7. Muitos parecem que não aprenderam nada com as ‘jornadas de 2013’. As redes, milagrosamente, teriam colocado milhões nas ruas, naquela ocasião. A rejeição a partidos e centrais parecia ser unanimidade, vendido como uma ‘qualidade’ das mobilizações. O pretenso espontaneismo e autonomismo das manifestações era outro aspecto exaltado por muitos. Deu no que deu. Ali estava o ovo da serpente das mobilizações fascistas de 2015/2016, que deram sustentação ao golpe. Ali estavam os grupos de WhatsApp da extrema direita se organizando para disputas futuras. Ali começaram a surgir grupos organizados de direita como o MBL ou o Vem pra Rua. Ali foi parido o sentimento de combate à corrupção como pauta da ‘Nação’, embalado posteriormente pelo lavajatismo. Redes virtuais são ferramentas, que podem servir para qualquer coisa, para o bem ou para o mal, para defender uma ideologia ou outra, pra esquerda ou pra direita. Redes virtuais tem por trás seres humanos (e robôs) definindo e implementando estratégias de mobilização e de comunicação. Que nós da esquerda precisamos urgentemente melhorar a nossa performance nas redes virtuais, não há a menor dúvida. Mas, precisamos parar de fetichizar o uso das redes virtuais, como se elas por si só fossem nos levar ao paraíso da mobilização social. Talvez mereça a pena estudar mais a fundo o episódio da chamada ‘Primavera Árabe’, para entendermos melhor o papel das redes virtuais. Igualmente, hoje sabemos que havia muito pouco de autonomismo e de espontaneismo nas jornadas de luta de 2013.

8. Outros/as companheiros/as tentam justificar os atos de domingo lembrando que outros atos já aconteceram neste período de quarentena, alguns na frente do Congresso Nacional, como o que foi organizado pelos profissionais da saúde, ou o que foi organizado pelo Coletivo Alvorada (MG), no dia da entrega do pedido de impeachment dos partidos de oposição. Parecem não saber a diferença entre atos simbólicos de vanguarda, com a presença de um grupo mínimo de ativistas, e um ato massivo de rua, convocado para mobilizar milhares de pessoas. E, por favor, não vamos ofender a inteligência de ninguém com a desculpa que os manifestantes dos atos de domingo eram jovens (como se jovens não se contaminassem e não morressem de covid-19), e estavam todos de máscara, portanto protegidos. O princípio básico do isolamento social é a não aglomeração, e não há como impedir numa manifestação massiva de rua que não haja aglomerações, contatos físicos, e portanto maior risco de contágio.

9. Mas, vamos ao que interessa. Qual seria realmente a eficácia deste tipo de ato? Alguém acredita mesmo que 30 ativistas em Copacabana, 300 ativistas na frente do Palácio Guanabara, ou mesmo 2 mil ativistas na Av. Paulista, ou outras dezenas/centenas em Porto Alegre, BH ou Brasília é que vão derrotar o fascismo? Sério? Então quer dizer que chegamos a colocar nas ruas centenas de milhares de pessoas nas manifestações contra o golpe, em 2015 e 2016, mas isso não foi suficiente pra impedir o golpe, depois repetimos a dose no período do governo golpista de Temer, chegamos a fazer uma greve geral com a adesão de 40 milhões de trabalhadores, e tampouco foi suficiente pra derrubar o Temer, mas agora será com esse tipo de ato vanguardista que vamos derrubar Bolsonaro e o fascismo? A quem estamos querendo enganar? O pedido de impeachment assinado por 7 partidos de oposição e mais de 400 entidades e movimentos sociais, os três manifestos amplos divulgados neste final de semana (concordemos ou não na íntegra com o seu conteúdo), a carta à Nação assinada por entidades de peso como OAB, CNBB, ABI, SBPC, ABC, entre outras, teve um efeito político muito maior sobre as instituições como o Congresso e o Judiciário (em particular STF e TSE), e deram passos muito mais sólidos e consequentes na luta conta o fascismo, contra Bolsonaro e sua turma. E, aguardem, vem mais por aí. Outros pedidos de impeachment apoiados por centenas de entidades e movimentos sociais serão entregues nas próximas semanas, assim como outros manifestos, mais ou menos amplos, surgirão aqui e ali, compondo uma teia sutil de forças políticas e sociais para pressionar o Congresso, o TSE e o STF.

10. Outros/as companheiros/as levantam o seguinte (falso) dilema diante dos atos de domingo passado, que parecem poder se replicar nos próximos finais de semana: tudo bem, somos contra romper o isolamento social, não devemos convocar grandes manifestações massivas de rua, mas se outros o fazem, não deveríamos também participar, ao menos para tentar disputar a direção destes atos, não perder a base social que apoia estas atividades, deixando que grupos mais aventureiros e autonomistas o façam? Triste ilusão. Novamente, não aprenderam nada com as jornadas de luta de 2013. Quando um ato começa mal organizado, sem unidade, sem coesão e sem direção, pautado pelo voluntarismo e pelo esquerdismo infantil, ele tende a terminar pior ainda. Os atos deste domingo em S.Paulo, P.Alegre e Rio (o Negras Vidas Importam, em frente ao Palácio Guanabara), assim como o ato desta segunda em Curitiba, acabaram todos com enfrentamento, tumulto, bombas e violência, quase sempre com a PM intervindo a favor dos grupos fascistas e contra os grupos antifascistas (que surpresa!). Querer disputar a direção deste tipo de ato, que é convocado por coletivos e ativistas que desprezam os partidos e movimentos sociais organizados mais tradicionais, que apostam numa mobilização mais horizontal, e que tem ojeriza a qualquer tipo de ‘direção’ que não seja a deles próprios, mostra uma tremenda ilusão. 

11. Mas, a questão mais grave não é essa. A pergunta que todos e todas precisam responder é a seguinte: estamos preparados para enfrentar a provável violência armada nas ruas, não apenas de agentes do Estado (como sabemos as forças policiais, civis e militares, estão cheias de simpatizantes de Bolsonaro, doidas pra reprimir os comunistas vermelhos), mas principalmente as milícias paramilitares que crescem assustadoramente em todo o país, e já dominam parte do nosso Estado e da nossa Capital? Vários desses coletivos que saíram às ruas no domingo passado já tem uma cultura de enfrentamento explícita em seu formato de mobilização. Tem uma cultura de violência contra outras torcidas. A forma de marchar, de gritar provocações contra os fascistas, o culto aos black blocks, falam por si só, estão bem longe do pacifismo. A própria maneira como alguns destes atos tem sido convocados nas redes, conclamando os ativistas a irem às ruas ‘dar porrada’ nos fascistas, explicitam o espírito belicoso de algumas dessas lideranças. Estes coletivos e suas pretensas lideranças estão mesmo a serviço da luta contra o fascismo? No ato de Curitiba, uma bandeira do Brasil foi queimada em praça pública, e tudo foi filmado e colocado nas redes. Qual o objetivo? Movimentos como o dos BlackBlock e Anonymus, que andavam desaparecidos, ressurgiram. E, do lado dos fascistas, periga ter milicianos armados, prontos pra atiram em manifestantes de esquerda. Estamos preparados para reagir? Temos táticas e cultura de auto-defesa armada? Por que, se não temos, então chamar o povo pras ruas, nessas condições, é o supra-sumo da irresponsabilidade, pra dizer o mínimo. Eu me perguntaria se já não há agentes provocadores infiltrados, e se esses companheiros não estariam fazendo o papel de quinta coluna, representando um papel que neste momento interessa a Bolsonaro e aos fascistas, para ter argumentos pra decretar o Estado de Sítio e conclamar a uma intervenção das FFAA.

12. Agora é hora de construir a unidade entre as forças progressistas e antifascistas no país, para derrubar Bolsonaro e sua turma, seja por impeachment, processo de crime comum, renúncia ou cassação da chapa. Os caminhos são variados, as táticas são diversas, os argumentos são inúmeros, mas não vamos chegar a lugar nenhum sem disciplina, método, organização, muito diálogo, respeito à diversidade de ideias e propostas, mas principalmente com muita unidade na ação. Vamos continuar travando nossas batalhas nas redes e mídias virtuais, nas janelas, varandas, lajes e paredes, nas campanhas de solidariedade ao nosso povo sofrido, nos pequenos e simbólicos atos de rua (sim, é possível), pressionando o Congresso e o Judiciário (STF, STJ, TSE) para que os processos contra Bolsonaro caminhem e esta crise tenha seu desfecho. É hora de apostar nos partidos de oposição, nos movimentos sociais, nas entidades e instituições da sociedade civil, nos coletivos, redes, fóruns e frentes. E acumular forças pra voltar às ruas, de forma massiva e organizada, com direção clara, em atos unitários e convocados por ampla frente de forças progressistas, assim que a pandemia o permitir.

Em defesa da vida, da saúde, da renda e do emprego! Fique em casa!
Em defesa da democracia! Fora Bolsonaro!
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Orlando Guilhon é ativista do PT RJ, da Frente Brasil Popular RJ, do Coletivo Fernando Santa Cruz, do movimento Torcedores e Torcedoras pela Democracia, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, e colaborador do Portal Favelas.

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