Crime de pornografia de revanche : “caso Neymar” e a vida das mulheres, por Mariana dos Reis


“Mais uma  maria chuteira vagabunda querendo se dar bem”, “ Se viajou pra Paris as custas dele, já sabia de tudo que podia acontecer”, “Neymar tem a mulher que quiser a seus pés, essa é mais uma oportunista que quer lhe arrancar dinheiro!”, “Ele divulgou as conversas e fotos porque foi acusado de estupro e precisava se defender!”, “Que estranho ela só registrar a queixa no Brasil e não em Paris!”. O atual escândalo envolvendo o jogador Neymar e uma mulher com quem estava se relacionando recentemente polarizou e esquentou as discussões de muitos ambientes interpessoais neste final de semana no país. De um lado, pessoas que acreditam que o craque de futebol foi vítima de um golpe de extorsão. No lado oposto, pessoas identificando a tentativa desesperada de blindagem da mídia burguesa e empresários  à sua imagem, difamando socialmente a conduta da suposta vítima.

Segundo informações  dos principais veículos de televisão, a vítima registrou ocorrência nesta sexta feira passada (31 de julho) na 6ª Delegacia do distrito de Santo Amaro (SP). A mesma relata que teria conhecido Neymar pelo Instagram e combinado de se encontrar na capital francesa. O intermédio  desta conversa teria sido realizado por um assessor  conhecido como “Gallo”, efetuando a compra de passagens e a reserva no Sofitel Paris. Conforme relato da vítima, o crime teria ocorrido no dia 15 de maio. Seu relato aponta que Neymar chegou ao hotel por volta das 20h embriagado e após ter trocado carícias com a vítima, praticou atividade sexual dela que regressou ao Brasil dois dias depois. A mesma se disse muito abalada em Paris para procurar uma delegacia, preferindo realizar a denuncia ao regressar no Brasil.

Após a exposição do caso, inúmeras interpretações de ponto de vista começaram a borbulhar no imaginário social, englobando desde conversas de comentaristas esportivos e figuras públicas até os espaços de convívio familiar e cotidiano. A linha tênue entre o plano da intimidade de um casal  e o ato de consentir de uma mulher desvelou defesas que abarcavam diversos elementos de argumentação de teor patriarcal, naturalizando  a situação de acusação do jogador. A iniciativa de viajar até a capital francesa, se hospedar em um hotel  de luxo supostamente financiado e admitir o contato freqüente com o jogador sentenciaram a re(puta)ção da denunciante. Além disso, sua coragem em denunciar o principal ícone da seleção brasileira às vésperas da Copa América mobilizou um tribunal moral a queimá-la na fogueira da inquisição, levando-se em consideração todos os acordos contratuais milionários em jogo após a divulgação do caso. 

A grande problemática desta situação é que parte da sociedade busca compreender que o consentimento sexual feminino é um contrato frio com cláusulas acordadas e assinadas anteriormente em que se segue à risca regras no momento em que se inicia a constituição de uma relação. No entanto, o ato sexual é algo muito mais complexo no âmbito social, passível de mudanças, interrupções, alterações e negociações no desenrolar de cada encontro entre os casais. Há outros fatores que interferem neste processo de negociação como a  percepção da sexualidade da mulher ou se  o parceiro lhe atribui prazer ou confiança no seu momento de maior intimidade.Além disto, existe uma lógica violenta do machismo que associa sexualidade feminina a promiscuidade, como se esse assunto fosse somente destinado ao universo masculino e à figura feminina coubesse o papel de satisfação dos desejos do homem. Cria-se assim, uma cultura de silenciamento das mulheres no momento do ato sexual com relação a seu consentimento, mascarando altos índices de estupros ocorridos no ato sexual  entre pessoas íntimas que variam desde “ficantes” até relações matrimoniais de décadas.

O estupro a uma mulher também pode ocorrer caso a pessoa não esteja em condições físicas de estabelecer seu consentimentos, sob efeitos de álcool, drogas, desacordada ou dormindo profundamente. Segundo  levantamento anuário do Fórum de Segurança Pública, a cada 11 minutos mais ou menos, uma mulher é estuprada no Brasil, o que corresponde a 5 mulheres por hora e média de 45,4 mil casos por ano.A maioria dos estupros ocorrem no plano das relações de convivência e 70% dos casos envolvem vulneráveis (crianças e adolescentes).

Mas ainda com todas as contradições e debates que este caso impulsiona nas rodas de convívio, seria leviano neste momento acusar Neymar de ter de fato estuprado uma mulher. O crime que realmente ocorreu até então foi a divulgação de conversas de caráter íntimo e imagens de nudez da vítima em redes sociais de grande amplitude realizada pelo jogador. Lembrando que Neymar é a figura pública com maior número de seguidores no Instagram (cerca de 117 milhões) além de ser a maior referência infanto juvenil do país. Na tentativa atabalhoada e covarde de defender sua honra masculina, o mesmo expôs fotos íntimas de mulher em questão cometendo crime de “pornografia reversa” ou conhecido como “revenge porn” para milhões de brasileiros. A delegacia de crimes virtuais abriu inquérito contra Neymar após a situação, intimando o mesmo a depor e tendo o seu celular periciado.

Mas o que o crime da pornografia de revanche acarreta na vida de nós mulheres?

A expressão pornografia de revanche  está ligada a uma conduta penal praticada pelo ex parceiro/parceiras (geralmente homens) busca se vingar da vítima divulgando sem o consentimento dela/dele através da internet, imagens de conteúdo íntimo ou contendo cena de sexo explícito ou do corpo da vítima.

O Projeto de Lei (PL) 13.718 inicial foi de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM) passou a vigorar em 2018 e é descrito como ato de divulgação de foto ou vídeo de uma cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da pessoa retratada, prevendo de um a cinco anos de prisão. O projeto de lei foi incluído no artigo 218 do Código Penal.

Os desdobramentos deste ato podem gerar tanta exposição e humilhação à vítima que fica difícil reparar danos causados na vida  desta mulheres , muitas vezes sendo são demitidas em seus postos de trabalho ou tendo reputação julgada no convívio social pelo resto da sua vida. Isso sem contar as questões psíquicas que este tipo de violência pode acarretar.

Com as inúmeras atribuições no cotidiano das pessoas no mundo contemporâneo, as relações afetivas no plano real possuem cada vez menos tempo  para sua efetivação. Neste mesmo movimento, anos depois observamos que a criação de aplicativos de mensagens possibilitou às pessoas uma suposta aproximação afetiva cotidiana, potencializando nestes ambientes cibernéticos, conversas mais aprofundadas no plano da intimidade. Pouco depois, criam-se os aplicativos de relacionamento e redes sociais de interação que propiciaram a aproximação no plano afetivo entre as pessoas. A efemeridade das novas relações líquidas aproximou casais que se atraíram fisicamente pela rede social, desejando se encontrar. Mas há uma grande parcela de pessoas que defende os aplicativos de rede social como impulsionadores de relações sólidas e duradouras. Um exemplo de identificação positiva  dos brasileiros com este ambiente de relacionamento foi o estrondoso sucesso da música “Jenifer” que contava a história de um encontro de  um homem com uma mulher diferente que havia conhecido no aplicativo Tinder.

Juntamente com a constituição destas novas relações, começaram a surgir os crimes virtuais como ciberbullying, hackeamento e por fim, a pornografia de revanche. Geralmente quem a pratica vinga-se de um fim de relacionamento afetivo. Quando tomamos conhecimento de diferentes casos, observamos que geralmente o agressor chantageia a vítima para lhe propiciar sofrimento, causando lhe violência psicológica e a rejeição social nos seus grupos de convívio.

Neymar ao divulgar conversas  íntimas e imagens de nudez de uma mulher ao invés de ser repudiado, recebe completo aval da sociedade. Deste modo, o corpo da mulher é concebido no campo das relações privadas, sendo legislado por uma normatividade construída a partir de valores do Estado, a igreja e a família. Sendo assim, a conduta feminina esperada de uma mulher vem a ser de passividade com relação a sua sexualidade. A estrutura patriarcal idealiza um comportamento feminino intocável e dócil nas relações cis heteronormativas. Desta maneira, para a maioria da  população é inaceitável que uma mulher admita por meio de mensagens ter desejos sexuais compartilhando imagens de nudez. Por isso, a vítima em questão não é condenada moralmente por ter despesas pagas em Paris e sim por admitir ter prazer em atividades sexuais numa conversa de aplicativo, além do patriarcado disseminar a ideia da nudez feminina como desonra moral. Quando Neymar lança a guilhotina da exposição  sobre o pescoço vítima, a população comemora desfilando em praça pública a cabeça ensanguentada da mulher lasciva.

Em suma, o episódio em tela não é só sobre Neymar, não sobre a vítima em questão, é sobre a dominação do patriarcado aos nossos corpos, é sobre mulheres que suicidam após estas exposições, é sobre todas nós! No episódio dos 33 homens ocorrido em 2016 em que estupraram uma mulher de 16 anos exposta em aplicativos na internet, novamente o histórico da vítima foi posto à prova num tribunal moral e seus os estupradores esquecidos. Aos que lutam pelo fim da violência de gênero em tempos atuais, saliento ser necessária a defesa  do debate amplo sobre “Gênero e sexualidade” desde os primeiros anos da educação básica, formando meninos e adolescentes conscientes do ato de consentimento nas relações e  da liberdade sexual dos corpos femininos. A nós adultos, cabe o alerta nas nossas rodas de convívio à violação de direitos da mulher sobre a prática de pornografia de revanche como violência de gênero psicológica e o combate sistemático à práticas cotidianas de cunho machista.

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Mariana dos Reis é doutoranda em educação pela Uerj, professora do Instituto Benjamin Constant e militante anti racista e feminista interseccional.

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