A exceção, por Guilherme Scalzilli

Publicado no Blog do autor.


Chega a ser hilariante a pantomima de suas excelências para evitar que Lula saia da prisão. As incursões pela comédia escatológica, pelo surrealismo de hospício tipo Ken Russell ou Luis Buñuel. O surto amoral que põe magistrados, militares, jornalistas e palpiteiros, nus, urrando no banquete, pintando-se de comida. Um mergulho no delírio da ausência de regras, cerimônias, prerrogativas, decoros.

Não restava uma vírgula jurídica nos ataques à decisão monocrática de Marco Aurélio Mello, provocada e obstruída por gestos igualmente monocráticos, num universo dominado pela monocracia. Não houve qualquer base legal para impedir Lula de comparecer ao velório do irmão, além de uma razoável suspeita de ilicitude na protelação da resposta.

Mas o texto absurdo faz parte da graça. Em vez de grunhir, os atores blasfemam contra o estado de Direito, aplaudem suas próprias irregularidades, chafurdam no ridículo. Estão seriamente engajados no desafio de interpretar crápulas orgulhosos, embora o ímpeto realista às vezes descambe para a caricatura. Eles se entendem, é o que importa.

E estão tranquilos, porque decerto o STJ confirmará a sentença, tirando Lula do alcance da decisão do STF sobre a segunda instância. Cuja sessão está marcada para dois meses depois, permitindo à corte posar de garantista sem favorecer o ex-presidente. Resumindo, seus recursos foram apressados para tirá-lo das eleições, arrastaram-se até que elas terminassem e de súbito passarão por uma coincidência de agendas que impedirá apenas a sua soltura.

Tudo no caso Lula é excepcional. Isso não “ocorre todo dia”, como afirma a esquerda que cai na arapuca punitivista e naturaliza a regra do fascismo cotidiano. Duvido que outro processo penal tenha suscitado tamanho espetáculo de tautologias. Quantas pessoas recebem habeas corpus do TRF e do STF que são ignorados por juízes de primeira instância? E quantas, ainda por cima, têm negado o direito ao velório de um familiar?

Nessas ocasiões tenebrosas os covardes lamentam que a “narrativa” lulista seja corroborada pelos fatos. Como se houvesse outra constatação possível, ou estivéssemos diante de uma polêmica doutrinária. O problema, para esses órfãos da racionalidade, não está nos arbítrios dos algozes, mas no embaraço de concordar com a vítima. Se continuarem tratando Lula como prisioneiro político, vai parecer que ele é de fato um prisioneiro político. Sério?

Mas engana-se quem vê no dilema um constrangimento para os cruzados. Eles querem mesmo deixar bem claro o viés ideológico de suas atitudes. Faz parte da punição. Como nos combates mais bárbaros, o sacrifício público do inimigo serve de exemplo para os derrotados e de ritual expiatório para os vencedores. E tanto melhor que a perplexidade tome escopo internacional, pois isso valoriza a mensagem e a firmeza santa dos cavaleiros.

Aí se revela a função performática da balbúrdia: o gesto de insubmissão à constitucionalidade é uma prova de poder. Nos vazamentos ilegais de Sérgio Moro, na afronta simbólica do TRF-4, na desobediência impune dos juízes de piso e no veto a uma prerrogativa humanitária de Lula sobressai a mesma verve ostentatória. A exceção confirma a força de quem a aplica.
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Guilherme Scalzilli é Historiador e escritor, mestre em Divulgação Científica e Cultural, doutorando em Meios e Processos Audiovisuais. Articulista da revista Caros Amigos por dez anos (2001-2011). Colabora regularmente com o Le Monde Diplomatique, o Observatório da Imprensa e outros veículos.

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