Polêmica com um ambientalismo ingênuo, por John Bellamy Foster

Publicado originalmente sob o título Marx, Value and Nature na Monthly Review.


O filme de Raoul Peck O Jovem Karl Marx, de 2017, abre com uma silenciosa cena de pobres “camponeses proletários”, homens, mulheres e crianças sujos e maltrapilhos, catando madeira morta numa floresta. De repente são atacados por uma tropa de polícia montada armada com porretes e espadas. Alguns dos catadores são mortos; o resto é capturado. A cena corta para Karl Marx com 24 anos, na redação do Rheinische Zeitung [Gazeta Renana] de Colônia, onde era editor, escrevendo o artigo “Os Debates sobre a Lei do Roubo de Madeira”. Entre outubro e novembro de 1842, Marx escreveu uma série de cinco artigos com esse título – e foi isso, mais que qualquer outra coisa, que levou os censores prussianos para cima do jornal, de seu talentoso jovem editor e outros escritores. No filme, vemos o jovem Marx e seus comparnheiros debatendo o caminho que os levara a desafiar tanto o Estado prussiano quanto seus próprios patrocinadores industriais liberais. Marx era intransigente; não havia outro caminho possível. Como explicou mais tarde em seu famoso Contribuição para a Crítica da Economia Politica, de 1859, foi sua tentativa de refletir sobre a expropriação dos direitos de costume dos pobres sobre a floresta que primeiro o levou ao estudo sistemático da economia política.

A criminalização do usufruto da floresta era uma grande questão na Alemanha daquele tempo. Em 1836, ao menos 150 mil das 207.478 ações judiciais existentes na Prússia eram por “furto de madeira” e delitos relacionados. Na Renânia, a proporção era ainda maior. Esses processos resultaram em multas pesadas e prisões. Em Baden, em 1842, um em cada quatro habitantes foi condenado por roubo de madeira. Central para o argumento de Marx era o uso da “categoria de roubo onde ela não deveria ser aplicada”: não apenas recolher madeira morta, mas também catar folhas mortas e colher morangos silvestres (um direito de costume concedido às crianças) eram ações declaradas como sendo roubo, muito embora essas fossem formas há muito estabelecidas de apropriação tradicional pelos pobres. O “direito de costume” dos pobres à apropriação livre de madeira morta, insistia Marx, não se aplicava à árvore viva, “orgânica”, ou à “madeira cortada” – que podiam ser vistas como propriedade dos donos privados – mas apenas a aquilo que já estava morto. O usufruto da floresta pelos pobres estava sendo transformado “num monopólio dos ricos”, através de um processo de expropriação por “pequenos mercadores atrás de dinheiro… e juros sobre terras teutônicas”. Em resposta, Marx referia-se à “natureza elementar” do sistema florestal e, como indica o historiador Peter Linebaugh, fundamentava seu argumento num apelo à “bioecologia da floresta” e à “complexa sociedade” que ela mantinha, incluindo o modo como o direito dos pobres à madeira morta espelhava sua posição empobrecida mais geral e sua relação com a natureza.

Questões relativas à expropriação da terra/natureza e dos seres humanos nunca deixaram de ocupar Marx em seus trabalhos subsequentes, aparecendo em seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos e em suas duas grandes discussões da “chamada acumulação primitiva” no Grundrisse e no Capital. No filme de Peck, o assalto da polícia florestal aos pobres é um pesadelo recorrente, no qual Marx vê a si mesmo correndo ao lado dos trabalhadores rurais sem-terra que estão sendo caçados pelas autoridades.

A apropriação e expropriação da natureza

A distinção crucial de Marx entre apropriação e expropriação, em torno da qual orbita sua crítica ecológica, bem como econômica do capitalismo, fica evidente em sua resposta a Pierre-Joseph Proudhon, como foi dramaticamente retratado em O jovem Karl Marx. Proudhon é retratado dando uma palestra na qual faz sua famosa declaração de que “propriedade é roubo”. Da plateia, Marx pergunta, “que tipo de propriedade, propriedade burguesa?” Proudhon responde, “propriedade em geral”. Marx observa que isso é “uma abstração”.

Para Marx, como ele indica num encontro posterior com Proudhon, no filme, a declaração deste último é logicamente insustentável, pois se a propriedade em geral é definida como roubo, e todos os títulos de propriedade são, portanto, inválidos, levanta-se então a questão: o que é roubo? Era necessário, na visão de Marx, distinguir apropriação, ou propriedade em suas muitas e diversas formas históricas, de expropriação, isto é, apropriação sem um equivalente (nos termos de Marx, também sem troca e sem reciprocidade). A teoria política clássica, de John Locke a Hegel e Marx, localiza a base da sociedade civil e do Estado na apropriação – o termo ativo para propriedade ou direito à posse através do trabalho.

Como Marx explicou em A Miséria da Filosofia e nos Grundrisse, todas as sociedades humanas repousam sobre a livre apropriação da natureza, que é a base material do trabalho e da produção. Esse é outro modo de dizer que todas as sociedades dependem da propriedade. Não pode haver existência humana sem a apropriação da natureza, sem produção, e sem propriedade de algum tipo. “Toda produção é apropriação da natureza por parte de um indivíduo dentro e através de uma forma específica de sociedade. Nesse sentido, é uma tautologia dizer que a propriedade (apropriação) é uma pré-condição da produção.” Para Marx, declarar que “propriedade é roubo”, como fez Proudhon, era portanto contornar a questão fundamental – o desenvolvimento de várias formas de apropriação na história humana, das comunais a formas mais extremas de mercantilização privada. Essa abordagem possibilitou a Marx desenvolver uma poderosa crítica da sociedade capitalista, tanto econômica quanto ecológica. A concepção de Proudhon não deixava saída para a humanidade; já que alguma forma de apropriação era a base universal da sociedade e da própria vida, declarar que a propriedade em geral era roubo, independentemente de formas particulares de propriedade, era um beco sem saída para movimentos revolucionários.

Aqui pode ser traçado um paralelo com a noção de alienação como objetificação, de Hegel, em cuja filosofia poderia ser transcendida pela unificação de sujeito e objeto, mas apenas em pensamento — isto é, no conhecimento absoluto da filosofia hegeliana. Para Marx, que rejeitava a solução idealista, a objetificação era inerente à existência humana, uma vez que os seres humanos eram seres materiais, sensuais e objetivos, que retiram seu sustento de fora de si mesmos. Daí que, na visão de Marx, não era a objetificação, mas antes a “mediação alienada” intrínseca à produção da mercadoria capitalista que estava sujeita à transcendência, e isso tinha de acontecer na realidade material, não simplesmente em pensamento. De modo semelhante, os seres humanos, como seres materiais objetivos, não podiam ser libertados da apropriação da natureza, isto é, da propriedade em todas as suas variadas formas, que era uma condição objetiva de sua existência. O que era possível, contudo, era a libertação revolucionária da humanidade das formas mais alienadas, expropriativas do metabolismo social humano com a natureza.

Essas mesmas questões reemergem hoje em debates sobre o significado e método do que é amplamente denominado ecossocialismo. Para Raj Patel e Jason W. Moore, em seu livro  A History of the World in Seven Cheap Things [Uma História do Mundo em Sete Coisas Baratas], “apropriação” em geral, como em Proudhon, é definida como “um tipo contínuo de roubo”. Tanto aqui quanto no livro anterior de Moore, Capitalism in the Web of Life [Capitalismo na Rede da Vida], o foco é na “apropriação do trabalho” em todas as suas formas – sendo que ele se referia a “trabalho” no sentido físico (isto é, a medida de energia transferida quando uma força externa é aplicada a um objeto e o move). Nesse sentido naturalista, podemos falar do “trabalho” de um rio ou de um poço de petróleo, nos mesmos termos que os de um ser humano.

A apropriação, ou propriedade, concebidas por Patel e Moore como roubo de “trabalho”, são pois universais e inescapáveis, associadas ao próprio movimento físico. Tal apropriação da natureza externa, nos diz Moore, suplanta a exploração do trabalho na produção.

Ninguém, é claro, iria duvidar que a apropriação da natureza está na base de toda a produção humana. Seres humanos são objetivos, seres materiais; como qualquer criança sabe, nós, como todos os outros seres vivos, não podemos existir sem a apropriação livre da natureza. De fato, toda a produção material humana, como Marx enfatiza, nada é além da mudança na forma daquilo que a própria natureza cria. Mas argumentar, como fazem Patel e Moore, que a apropriação humana da natureza em geral (isto é, do seu “trabalho” ou energia) é “uma espécie de roubo contínuo”, e que esse é o centro da crise ecológica, é atribuir implicitamente todo o problema à própria existência dos seres humanos – uma posição misantrópica.

Tal perspectiva, comum à maioria do pensamento ambiental mainstream, afasta-se necessariamente da crítica à mediação alienada da relação humana-social metabólica com a natureza, e das formas específicas de expropriação capitalista da natureza e seus efeitos sobre os ecossistemas. Na perspectiva marxista clássica, é precisamente porque a história humana criou um modo de produção (capitalismo) que aliena as relações metabólicas entre seres humanos e natureza, criando assim uma fissura metabólica e a ruptura das condições de reprodução ecológica, que podemos ter a esperança de restaurar o metabolismo essencial – através de uma reversão revolucionária do capitalismo e da criação de uma nova realidade material, coevolutiva. Esta é a principal mensagem ecológica de Marx.

Na visão do materialismo histórico clássico, a livre apropriação da natureza (o uso dos dons gratuitos da natureza) não deve ser condenada como roubo. De fato, “trabalho real efetivo”, para Marx, “é a apropriação da natureza para satisfação das necessidades humanas, atividade pela qual o metabolismo entre a humanidade e a natureza é mediado”. A preocupação também não deveria ser primordialmente, como na sociedade burguesa, o simples fato da natureza ser “barata”. Antes, é a expropriação da natureza no sentido da apropriação da terra ou recursos sem reciprocidade (manutenção das “condições de reprodução”) pelo capital que constitui roubo nessa esfera. Na visão de Marx, isso reflete a “lei de ‘expropriação’, não de ‘apropriação’” que sustenta o capitalismo. É associada, nesses aspectos ambientais, com a violação capitalista sistemática daquilo que um químico alemão do século 19, Justus Von Liebig, chamou de “lei de reposição” natural-material (ou “lei de compensação”), necessária para a reprodução ecológica. A relação destrutiva do capitalismo com o reino ecológicio depende desse roubo a que Marx se refere como “os poderes integrantes da natureza” – roubo não no sentido de que esses elementos não são “pagos”, como diz Moore, mas antes na violação da lei de reposição.

Como Erysichthon na mitologia grega, o capital requer cada vez mais rodadas de expropriação somente para avançar, até o ponto de devorar tudo que existe – incluindo, em última análise, a si mesmo. A dialética da expropriação e exploração, levando por fim ao exterminismo, encontra-se assim no centro da crítica do capital do materialismo histórico clássico. Para Marx, não era a apropriação da madeira morta da floresta por camponeses-proletários, mas antes a expropriação alienada do capital de toda a madeira (e toda a terra) para alimentar sua ânsia insaciável de acumulação, que constituía a realidade essencial da espoliação do mundo material: uma “tragédia da mercadoria”, não uma tragédia dos comuns.

Se a exploração do trabalho é a força por trás da valorização e da acumulação capitalista, segue-se que ele não pode continuar esse processo contraditório, numa escala sempre crescente, sem novas rodadas de destruição criativa nas fronteiras do sistema – a expropriação do ambiente natural, junto com a expropriação do trabalho social reprodutivo, da comunicação humana, do conhecimento, e mais. No Capital e em seus últimos escritos, Marx apontou tentativas, sob o capitalismo, de acelerar o tempo de rotatividade na produção de madeira com árvores de crescimento mais rápido, e na produção de carne pela reprodução do gado, argumentando que isso necessariamente pressionava as leis naturais (e no caso do gado, promovia crueldade com os animais).

Para Marx, a fissura metabólica – a mediação alienada entre a humanidade e a natureza – era produto do “roubo” ou expropriação do solo, e por conseguinte da natureza, dificultando assim “o funcionamento da eterna condição natural para a fertilidade duradoura do solo”. Isso por sua vez demandava a “restauração sistemática” desse metabolismo, numa sociedade futura de produtores associados capazes de governar “o metabolismo humano com a natureza de maneira racional… concretizando isso com o mínimo dispêndio de energia”, e desenvolvendo mais integralmente seus poderes humanos individuais e coletivos.

Valor e Natureza

Com a ascensão do ecossocialismo, suscitado pela fissura planetária, aprofundaram-se e multiplicaram-se as críticas ecológicas ao sistema capitalista. Mas, como em qualquer período de avanço teórico desenfreado, isso produziu perspectivas e posições completamente diferentes, resultando em novos debates sobre a concepção, o escopo e o propósito da crítica do valor de Marx. Ambientalistas de esquerda e políticos ecologistas, tais como Stephen Bunker, Alf Hornborg, Zehra Tasdemir Yasin and Giorgos Kallis, procuraram descartar ou desconstruir a teoria do valor inteira, argumentando que a natureza em geral, a energia e espécies individuais criam valor no sentido abstrato, que não é restrito ao trabalho humano – ou que, no caso de Hornborg, o valor econômico é simplesmente normativo. Essa análise vem frequentemente de teóricos que trabalham fora do campo da economia política crítica, os quais tendem a confundir conceitos de uso de energia, de valor de uso, de valor intrínseco e de valor normativo com o sistema econômico de valor da mercadoria baseado no trabalho abstrato sob o capitalismo.

Na crítica de Marx ao processo de valorização capitalista específico, historicamente, valor é a cristalização do trabalho abstrato socialmente necessário – “trabalho como gasto da força de trabalho”. Essencial para essa crítica é o reconhecimento de que valores de uso natural-material, enquanto componentes de cada e toda mercadoria e base de toda a riqueza real, são excluídos do cálculo de geração de valor do capitalismo, na medida em que nenhum trabalho é incorporado em sua produção. Como o próprio Marx colocou nos Grundisse, “o puramente material natural, uma vez que nenhum trabalho humano está objetificado nele… não tem valor [econômico] sob o capitalismo”. Esse caráter contraditório da produção de mercadoria capitalista, manifestado na oposição entre valor de uso e valor de troca, posiciona a estreita forma do cálculo capitalista de valor em oposição à real riqueza, que tem suas fontes em ambos, o valor de uso material-natural e trabalho humano concreto.

Dado que o valor de uso não desempenha papel direto na lógica interna de valorização sob o capitalismo, isso dá origem, tanto na economia clássica como na neoclássica, à noção de “doação gratuita da Natureza ao capital”. A exploração e acumulação capitalista, como explica Marx, depende em última análise da usurpação, pelo capital, dos dons na natureza por si mesmos, assim monopolizando os meios de produção e riqueza em sua totalidade. Essa alienação da natureza tem sua contrapartida na alienação do trabalho – ou seja, na emergência de uma classe sem base de existência, exceto a venda de sua própria força de trabalho.

Compreendida deste modo, a forma do valor de mercadoria construída historicamente sob o capitalismo não é aquela em que participam diretamente a energia ou as abelhas, mas, ao contrário, um produto das relações de classes sociais humanas. Ver natureza ou energia, não apenas o trabalho socialmente necessário abstrato, como geradores do valor de mercadoria, serviria apenas para naturalizar e universalizar o processo de valor capitalista, omitindo seu caráter específico social e histórico e sua relação com a alienação e exploração do trabalho. Mesmo a economia neoclássica – junto com a economia ecológica de Nicholas Georgescu-Roegen – atribui todo valor agregado, na economia, ao trabalho ou serviços humanos, e nada à natureza ou energia. O capitalismo, assim, exclui a natureza (incluindo a natureza corpórea dos seres humanos) de sua forma de valor – uma contradição fundamental e de muitos modos fatal do sistema.

Em contraste com os ataques frontais à teoria de valor de Marx descritos acima, a abordagem mais sutil de Moore parece primeiro conforme à teoria de valor marxista, atribuindo valor ao trabalho. Mas, num exame mais detalhado, sua análise de fato rouba de todo significado a própria abordagem de Marx, e enfraquece qualquer crítica ecológica (ou econômica) coerente do capitalismo. Como Moore coloca, seu “argumento vem de uma certa desestabilização de valor como ‘categoria econômica’”. Diferentemente da critica da valorização capitalista de Marx, que reconhecer que sob o capitalismo todo valor é a cristalização do trabalho socialmente necessário, e que faz uma dura e rápida distinção entre valor e riqueza, Patel e Moore, em A History of the World in Seven Cheap Things, procuram apagar completamente essas distinções.

Eles declaram, portanto, que “valor é uma cristalização específica das ‘fontes originais de riqueza’: trabalho humano e extra-humano”. Aqui Marx é citado contra si mesmo, apresentando sua famosa definição de riqueza como base de uma definição de valor, apagando dessa forma uma distinção absolutamente crucial que separa Marx da economia burguesa. De fato, o centro da crítica marxista repousa sobre a distinção entre valor de uso e valor de troca e entre riqueza e valor.

Da mesma forma, em Capitalism in the Web of Life Moore procura transformar a noção de Marx de “lei de valor”, que foca em quid pro quo como base da troca de mercadorias capitalista, em seu oposto, em relação à “ecologia mundial” como um todo. Para Moore, a “lei de valor” está centrada na ausência de um quid pro quo (em termos de troca) entre capital e Natureza Barata – uma ausência que se torna então a base fundamental, em sua análise do “valor expansivo”, da valorização capitalista – em contradição total com a própria análise de Marx. Assim, ele afirma que o valor, em sua forma expansiva abrangente (incluindo o valor do não-trabalho), deriva primariamente da apropriação do trabalho/energia em geral, da qual a exploração do trabalho é simplesmente um epifenômeno.

Para Moore, portanto, o segredo da acumulação é “a lógica unificada do capitalismo de apropriação de ‘trabalho’ humano e extra-humano que é transformado em valor”. Nessa visão, a ecologia/economia e toda a interação humana com a natureza equivalem à apropriação dos “quatro baratos”: força de trabalho, comida, energia e matérias primas. A força de trabalho é assim apresentada como não mais significativa do que a comida, a energia e os recursos naturais, quanto à lei de valor. (Em seu último trabalho com Patel, Moore expandiu a moldura de quatro para sete baratos [cheaps], acrescentando natureza, trabalho, dinheiro, vidas e o trabalho de cuidar, e abandonando força de trabalho e matérias primas). Essa formulação complicada, contudo, inibe efetivamente qualquer crítica coerente da produção de valor capitalista, quanto mais qualquer entendimento significativo das crises ecológicas engendradas pelo sistema capitalista.

O argumento de Moore relativo aos quatro (ou sete) “baratos” tem base em sua concepção mais elástica daquilo que constitui valor sob o capitalismo e na civilização em geral, com o que ele visa apresentar nada menos que uma “nova lei de valor”, abrangendo a exploração do trabalho, bem como a apropriação da natureza/energia física. “Leis de valor”, escreve ele, são fenômenos “que formam e mantêm coesa uma civilização”. Elas são produto, em grande parte, da apropriação do “trabalho” físico, isto é, a energia do universo. Tais “relações de valor expansivas”, como ele chama, “levam uma vida dupla”, estendendo-se além do processo de trabalho e produção de valor apropriado, bem como além do fenômeno do trabalho humano não remunerado, para incluir todo o “trabalho extra-humano” envolvido na ecologia do mundo capitalista. Esses domínios mais amplos de “trabalho/energia não remunerados” associados à “zona de apropriação” superam de longe a exploração do trabalho na determinação das dimensões gerais e expansivas de valor de uma dada civilização.

“A lei do valor”, argumenta então Moore, “longe de ser redutível ao trabalho social abstrato, encontra suas condições necessárias de autoexpansão por meio da criação e subsequente apropriação da Natureza Barata”, isto é, apropriação da rede da vida em geral. De novo, somos deixados num nível de obscuridade equivalente ao do “propriedade é roubo” de Proudhon. É dito que a “lei de valor” está em última análise baseada na “apropriação do ‘trabalho não remunerado da natureza’” (juntamente com o trabalho doméstico não remunerado das mulheres e outras formas de trabalho humano não remunerado). “O trabalho/energia acumulado na formação dos combustíveis fósseis” e a exploração da força de trabalho numa fábrica são “momentos inscritos na lei de valor”. A atmosfera é “colocada para trabalhar” absorvendo gases de efeito estufa, pelo que também é “não remunerada”, assim contribuindo para a valorização capitalista.

Aqui a lei de valor expansivo de Moore, baseada num “mundo de trabalho não pago” no qual a “lei de valor no capitalismo é a lei da Natureza Barata”, esbarra com um problema não resolvido, uma vez que essa concepção é virtualmente sem fronteiras, abarcando não só o ambiente planetário mas todo o universo. Como lhe é forçoso admitir, nesse sentido um “mundo de trabalho não remunerado” simplesmente “não pode ser quantificado”. Embora ele declare que “valor não funciona a menos que a maioria do trabalho não seja valorizado”, isso fica sendo uma simples tautologia, já que o “trabalho” referido inclui todas as coisas sujeitas às leis do movimento da física, na medida em que, em última instância, relaciona-se à economia – da agricultura de subsistência a uma colmeia a uma cachoeira a um isótopo radioativo a uma reação nuclear. “Carvão e petróleo”, escreve ele, “são exemplos dramáticos desse processo de apropriação de trabalho não remunerado”.

É essa apropriação universal “não remunerada” do trabalho/energia da terra, como condição eterna da existência humana, que Patel e Moore descrevem como “roubo contínuo”, o qual leva a cada vez mais dispendiosos “baratos” no final. Contudo, embora o capital possa acabar possuindo poderes naturais pelos quais não paga, como não paga pela habilidade de pensar do trabalhador, só resta confusão da tentativa de tratar tal apropriação da capacidade de trabalho da natureza, no sentido da física, como quantificável e de alguma forma equivalente à produção de valor econômico nas relações sociais capitalistas. Nem ajuda muito caracterizar uma catarata, ainda que seja usada para gerar eletricidade, como “não remunerada”.

Na “nova lei de valor” de Moore, tudo na existência material, seja trabalho social remunerado, trabalho social não remunerado, ou o não remunerado trabalho/energia do universo, importa principalmente na medida em que é aproveitado no processo de valorização capitalista. O trabalho/energia operado pelo sol, e o do sistema terrestre que durante milhões de anos levou à formação de depósitos de carvão e petróeo – mais o trabalho físico que o carvão e o petróleo desempenham na produção atual, como fontes de energia de baixa entropia – tudo entra na determinação da lei de valor da mercadoria expandida, que ele afirma poder explicar a “transformação do trabalho da natureza no valor [econômico] da burguesia”. A física, a ecologia, a economia – são todas lançadas como uma coisa só, apagando distinções fundamentais, cruciais para a crítica ecológica (e econômica) de Marx. De fato, “a relação capital”, para Moore, “transforma o trabalho/energia da natureza em… valor”.

Os pontos de vista discutidos acima também negam completamente a teoria de valor do trabalho sob o capitalismo (como em Bunker, Hornborg, Yasin e Kallis) ou a estendem a ponto do absurdo, em busca de “uma única lógica de riqueza, poder e natureza” sob o capitalismo (como em Moore). Em contraste, argumenta-se aqui que a relação metabólica entre seres humanos e natureza é alienada e contraditória, colocando uma cunha entre as as leis antagônicas do movimento (e lei de valor) do capitalismo e o sistema terrestre. Crises ecológicas não surgem simplesmente, ou mesmo principalmente porque a economia mundial (ou a ecologia mundial) se apropria, sem pagamento, do trabalho externo da natureza, nem porque a Natureza Barata está se tornando Natureza Dispendiosa, minando a base do capitalismo. Entendida adequadamente, uma crise ecológica, ou crise de desenvolvimento humano sustentável, não pode ser quantificada em dólares e centavos, ou em termos de Natureza Barata, muito menos “natureza não remunerada”.

Ao contrário, no coração da fratura metabólica de hoje, como argumenta Marx, está a lógica do sistema alienado de acumulação capitalista, no qual todas as fronteiras naturais são tratadas como meras barreiras a ser superadas, abrindo fissuras antropogênicas nos ciclos biogeoquímicos fundamentais que constituem todo o sistema terrestre total. Crises ecológicas propriamente ditas não são, assim, crises de valor econômico, mas de ruptura e destruição das condições de reprodução ecológica e desenvolvimento humano às expensas das futuras gerações humanas e espécies vivas em geral. Percebida dessa maneira, a principal contradição ecológica reside na expropriação da natureza como oferta grátis ao capital, levando à “dilapidação dos poderes da terra”. Isso é o que Marx quis dizer quando falou que o solo era “roubado” de suas condições de reprodução, gerando em consequência uma fissura no metabolismo entre a humanidade e a Terra.

Não é tanto com a apropriação do trabalho/energia da natureza como condição inerente da produção e da sociedade humana, e por certo da própria vida, que deveríamos estar mais preocupados – embora o aumento da produtividade ambiental seja central – mas sim com as fissuras ecológicas, sempre em expansão, impostas ao sistema terrestre pela lógica antagônica do capital. Colocado de outra forma, não é o mero fato da apropriação gratuita do trabalho/energia física pelos seres humanos (uma condição objetiva de existência) que é a fonte maior de nossas contradições ecológicas, mas sim a gananciosa expropriação da natureza pelo capital e a própria fissura metabólica – isto é, a ruptura historicamente específica do sistema de mercadoria das condições elementares e ciclos biogeoquímicos de reprodução natural das quais dependem, em última instância, a existência humana e a de inúmeras outras espécies.

Contra a Expropriação da Terra

Um dos insights mais profundos de Marx foi de que as “forças produtivas” sob o capitalismo tornaram-se “forças destrutivas”. A própria “produtividade do trabalho”, sob o capitalismo, levou ao “progresso aqui, retrocesso ali”. Ele atribuiu esse retrocesso especificamente à degradação das “condições naturais” para “a exaustão das florestas, minas de carvão e ferro, e assim por diante” – estendendo-se aos efeitos negativos das mudanças climáticas regionais. A começar de  seus primeiros trabalhos, ele concebia a expropriação e alienação da terra/natureza como contrapartida necessária, uma condição até mesmo primordial, da expropriação e alienação do trabalhador. Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos observou que o capitalismo, ainda mais que o feudalismo, antes dele, enraizava-se na “dominação da terra como de um poder alienado sobre o homem”. A expropriação e a remoção dos seres humanos das condições naturais de produção, através do confisco capitalista da terra, criaram as condições alienadas para a exploração dos trabalhadores. Pelo mesmo gesto, riquezas privadas eram ampliadas em todo lugar pela destruição da riqueza pública (o Paradoxo de Lauderdale).

“A chamada acumulação primitiva”, Marx continuou a explicar no Capital, “significa a expropriação dos produtores imediatos”, envolvendo a dupla expropriação dos produtores diretos e da terra. A imposição dessas condições (marcada pelo cercamento histórico dos comuns), o crescimento do proletariado, e a alienação do trabalho e da terra produziram a destrutividade indispensável ao sistema capitalista. Como observou Max Weber durante sua viagem ao Território Indígena (hoje Oklahoma) em 1905, “quase com a velocidade da luz, tudo o que se encontra no caminho da cultura capitalista está sendo esmagado”. Como Liebig e Marx, antes dele, Weber apontou para a cultura capitalista, neste sentido, como um sistema de roubo, Raubbau (ou Raubsystem), que destruía a terra e os recursos naturais juntamente com quaisquer formações econômicas pré-capitalistas que aparecessem em seu caminho. Contudo, esse Raubsystem não era atribuído à noção de que a propriedade (apropriação) era roubo, mas às formas históricas especificas de expropriação capitalista da humanidade e da natureza.

A expropriação da terra tem sido invariavelmente acompanhada pela expropriação dos humanos como seres corpóreos, através de inumeráveis formas de trabalho escravo e servidão, sempre presentes nas fronteiras lógicas e históricas do sistema, ajudando a tornar o capitalismo possível. Tal expropriação é sempre uma parte essencial do sistema, determinando seus parâmetros. O sistema do capital, disse Marx numa frase famosa, “vem pingando da cabeça aos pés, por todos os poros, com sangue e sujeira”. O papel da escravidão, do genocídio e de todo tipo de servidão humana, incluindo o roubo vil da própria terra, foi crucial tanto para as origens do capitalismo como para sua contínua reprodução antagônica. Hoje, a exploração bruta (ou superexploração), através da arbitragem global do trabalho de massa dos trabalhadores no Sul global, está dando origem a um “planeta de favelas” e à guerra imperialista imposta à periferia, juntamente com a contínua expropriação do trabalho não remunerado das mulheres.

Durante o tempo que Eric Hobsbawm chamou “a Era do Capital” – período de maior vitalidade do sistema, proveniente da Revolução Industrial – era possível focar principalmente nas características progressistas do capitalismo, abstraindo-se, de alguma forma, da expropriação. A crítica de Marx, então, centrou não na expropriação como tal, mas na exploração do trabalho, e foi no trabalho proletarizado, nesse sentido, que ele colocou suas esperanças de uma transição revolucionária. Hoje, contudo, a despeito de alguns desenvolvimentos tecnológicos notáveis – apenas parcialmente atribuídos ao sistema – estamos vendo um colapso dos principais mecanismos de acumulação capitalista, com tudo o que é sólido mais uma vez se desmanchando no ar. As taxas de exploração são hoje tão intensas que apresentam problemas de absorção do excedente associados à “superprodução dos meios de produção”. Assim, na era neoliberal, o capitalismo, em sua tentativa de superar as condições materiais da própria existência, buscou colocar toda a realidade dentro da lógica da valorização, via financeirização – refletindo o que Karl Polanyi chamou de concepção “utópica” da sociedade de mercado.

Nesta nova era de pilhagem e despossessão, a luta tem cada vez mais se deslocado para o lucro sobre a expropriação, a captura de todos os fluxos monetários, bens e propriedades individuais, onde quer que elas existam. A apropriação de terras é um fator dominante na maior parte do Sul global. O mercado de carbono foi introduzido ostensivamente para lidar com as mudanças climáticas, criando, ao contrário, mercados para lucrar em cima delas. O próprio Sistema Terrestre está sendo destruído como um lugar habitável pela humanidade. O trabalho está sendo desconstruído, tornando-se cada vez mais precário e inseguro. Nessas circunsâncias, o ditado sardônico de Marx, “Acumulem, acumulem! Isso é Moisés e os Profetas!” é mais do que nunca a meta do sistema, mesmo que todas as formas de vida, como as conhecemos, estejam em perigo.

Reduzir o problema ecológico do capital a uma questão meramente de Natureza Barata, como se tudo fosse simplesmente uma questão de internalizar as contribuições da natureza ao mercado – uma visão ideologicamente justificada por várias teorias do capital natural e serviços ecológicos – seria um grave erro. Antes, na raiz da emergência ambiental contemporânea, está a absoluta incompatibilidade de um sistema de acumulação de capital com a existência humana e o sistema da Terra. Se o capital tem sido imensamente bem sucedido ao explorar o trabalho humano, suas crises resultantes da superacumulação e absorção do excedente têm agora como contrapartida a visível desconstrução do planeta como lugar para habitação humana, conforme os oceanos se enchem de plástico e a atmosfera, de carbono. O impulso renovado para a expropriação do planeta, nessas circunstâncias, não é um sinal da vitalidade do capitalismo, mas da ameaça de sua dissolução.

O movimento ecológico mundial surgiu num período da história geológica hoje comumente denominado Antropoceno, provocado pela Grande Aceleração – o período de uma fissura antropogênica que aumenta rapidamente, em ciclos biogeoquímicos, geralmente datado em 1945, com o advento da bomba atômica, ou no início dos anos 1950, com os testes nucleares da bomba de hidrogênio sobre o solo, e a consequente precipitação radiotiva nuclear. A resposta à crise do Antropoceno, contudo, precisa ser muito mais revolucionária do que a do movimento Verde surgido nos anos 1960 e que procurava simplesmente preservar o meio ambiente e combater a poluição, raramente questionando o sistema social. Hoje, não pode mais ser negado racionalmente que a valorização capitalista é um processo inerentemente destrutivo, inimigo não só do trabalho livre e criativo dos seres humanos, mas também da terra como local para habitação da humanidade e muitas outras espécies.

A famosa “destruição criativa” do capitalismo, a permitir-se que continue, ameaça de aniquilação “a cadeia de gerações humanas”. Neste século, a batalha contra a expropriação da terra deve unir-se à luta contra a expropriação de seres humanos, desafiando em última análise a dialética da expropriação e exploração, e todo o “coração bárbaro” do capital. O futuro está com o desenvolvimento do movimento socialista/ecossocialista do século 21, a ser enraizado numa classe trabalhadora ambientalista diversa e abrangente. Precisamos da reconstituição revolucionária do interdependente metabolismo social com a natureza, trazendo-o sob o controle racional dos seres humanos – voltado não apenas à sustentabilidade ecológica e conservação de energia, mas também ao desenvolvimento integral das necessidades e poderes humanos, na sociedade e através dela. Nada mais dará conta disso.
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John Bellamy Foster é Professor de sociologia da Universidade de Oregon e editor da Monthly Review.

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