Marx, Globalização e a Miséria da Filosofia

Artigo publicado no Crítica da Economia.


Em antiga entrevista publicada no Caderno “Mais!” (Folha de São Paulo, 30/4/1995), o filósofo alemão Jurgen Habermas (“Escola de Frankfurt”) faz uma corajosa e inteligente confissão: “Devo confessar que, desde 1989, lamentei sinceramente, pela primeira vez, não ser economista. Estudei economia durante três semestres e, depois, esqueci tudo. Foi então que estudei Marx”.

E conclui: “Lamento extraordinariamente que minha educação tenha seguido rumos diferentes. Eu deveria ter sido economista. Agora é tarde! Não quero me esquivar, mas agora é a vez dos especialistas. Talvez eu ainda possa inspirar algumas pessoas a se especializarem nessa área”.

O aprofundamento da globalização do capital nos anos 1980 e seguintes serviu para revelar essa impotência teórica da maltrapilha ideologia alemã atual. É por isso que nos textos a partir da década de 1990, a preocupação com os resultados mais ameaçadores dessa globalização econômica está no centro nos trabalhos políticos de Habermas e consortes.

O que eles consideram como ameaça? Primeiro, a desestruturação do Estado de bem-estar social no interior das economias imperialistas (EUA, Europa ocidental e Japão). A globalização do exército industrial de reserva desestrutura internamente a velha governabilidade e os velhos Estados políticos nacionais.

Segundo, a consolidação de novas formas políticas de poder econômico e de enfermidades sociais agudas em termos mundiais. Aumentam na existência pequeno-burguesa do pós-guerra as pressões de uma ordem econômica mundial determinada pelas próprias regras internas de acumulação do capital, avessa ao controle do seu esgotado Estado político.

A angústia de dirigir no escuro das incertezas. Em lugar do Estado político, a realização desestabilizadora do Estado capital, esvaziado de regras políticas equânimes que somente poderiam ser dadas pela governança global dessa nova ordem econômica mundial. Sem chance. Adeus às ilusões do ultra-imperialismo de cem anos atrás (Kautsky, Bernstein) do desenvolvimento internacional organizado e do fim das crises catastróficas do capital.

É a ignorância teórica para acompanhar essas transformações e essas ameaças que atormenta a sagrada família dos Habermas. Entretanto, o desconhecimento dos fundamentos materiais (econômicos) desta era capitalista plenamente realizada se aplica não só aos seus filósofos órfãos do Estado Social, pequeno-burguesia social democrata europeia, como Habermas, mas, principalmente, à grossa maioria dos marxistas do século 21, partidários do burocratismo social de Estados populares ou de excrescências horrorosas como “socialismo real”, “socialismo de mercado”, e outras coisas impublicáveis.

Conta-se que Lenin costumava abrir as reuniões dos revolucionários bolcheviques russos com uma frase altamente programática: “não estamos aqui para falar de filosofia, mas da filosofia”.

Embora tivesse estudado a disciplina Filosofia em sua formação acadêmica, Lenin era essencialmente um economista. Ao contrário de Habermas, que mesmo depois de ter estudado Economia continua sendo filósofo.

Ninguém é economista por prazer. Lenin era por pura necessidade, pois o único objetivo de sua práxis política era a revolução social. Sem teoria revolucionária não tem revolução. Tal como intitulado no primeiro capítulo de seu conhecido “O que fazer?”, Lenin seguiu fielmente as linhas programáticas traçadas por Marx e Engels. Com pleno sucesso, como todos sabem.

Lenin soube observar como a Comuna de Paris havia sido a comprovação prática da crítica da economia política exposta por Marx e Engels. A revolução russa, da qual ele foi destacado participante, foi sua segunda e importante comprovação.

O atual burocratismo marxista caminha na exata contramão de Lenin e dos grandes revolucionários marxistas de cem anos atrás.  O mimetismo puro e simples da economia vulgar dos capitalistas (liberal de mercado ou keynesiana de Estado, tanto faz) foi necessariamente o único caminho que lhe restou.

Na observação das coisas reais do atual estágio da globalização do capital, por exemplo, o burocratismo marxista caminha de braços dados com essa inútil economia política neoclássica dos capitalistas. Ficam tão perdidos quanto Habermas e outros órfãos do Estado Social frente a ação altamente dissolvente deste estágio da globalização que, como observado em boletim recente, já apresenta suas primeiras rachaduras estruturais.

Com a castração da lei do valor trabalho herdada da economia política clássica (Smith, Ricardo, etc.), só restou aos capitalistas e seus administradores da luta de classes (burocratismo marxista incluso neste time) um lamentável cortejo de idiotices sobre a dinâmica material do regime capitalista, quer dizer, sobre o desenvolvimento econômico tal qual se desenvolve mundanamente no dia a dia, sob nossos olhos.

Como bom e disciplinado partidário da práxis revolucionária e para evitar essa miserável parceria da verborragia religiosa da filosofia com as mistificações da economia vulgar, Lenin sabia de uma coisa importante: desde os “Manuscritos Econômicos e Filosóficos” de 1844, pelo menos, Marx e Engels haviam rompido em definitivo com as contorções místicas da filosofia alemã e descoberto, ao mesmo tempo, a Economia Política inglesa como o campo de conhecimento necessário para a realização criteriosa da práxis revolucionária.

Entretanto, do começo ao fim, a produção teórica de Marx e Engels não sofre nenhuma descontinuidade. Nada, portanto, com qualquer suposição positivista de uma pretensa “coupure épistémologique” [ruptura epistemológica] do Marx hegeliano e do Marx materialista. Do Marx anterior ao Manifesto e do Marx de O Capital em diante. Do jovem Marx e do Marx barbudo!

Bobagens de filósofos franceses como Bachelard, Althusser e outros menos prestigiados pelo bureau central do Partidão.

Na verdade, a descoberta da economia política pelos dois parceiros teóricos inseparáveis da economia política dos trabalhadores (Marx e Engels) só comprovou a importância do, como Marx denominava, “lado racional” de Hegel. O “lado místico” foi jogado para o ávido consumo da pastoral revisionista.

Afinal, o que seria da economia política dos trabalhadores se não levasse em conta a negação da negação como resultado e limite histórico da reprodução ampliada do capital, da globalização do capital e seu desmantelamento que se presencia neste momento?

Todos os raríssimos desenvolvimentos teóricos ou conceitos propriamente originais de Marx e encontrados em O Capital, como “o duplo caráter do trabalho contido na mercadoria”, a “lei geral da acumulação”, a “lei da queda tendencial da taxa de lucro”, etc., são embebidos do sistema das contradições de Hegel.

Ao tratar do duplo caráter do trabalho contido na mercadoria, Marx ele mesmo vai explicar que todas as dificuldade teóricas de Ricardo derivam do fato de que o grande economista considera o regime capitalista como um modo de produção natural, não histórico. Existe explicação mais hegeliana do que esta?

Faltava Hegel em Ricardo para ele resolver seus impasses teóricos, os quais foram posteriormente solucionados por Marx e Engels, providencialmente amparados pela lógica hegeliana.

Por falar em lógica e razão, existe um terreno mais preciso de desenvolvimento real das contradições meramente cogitadas espiritualmente pelos filósofos do que o duro e imperfeito mercado mundial? Neste terreno histórico da “grande roda” de Smith, no qual o valor se origina historicamente e se realiza plenamente em sucessivas formas de autonomização: mercadoria, moeda universal e capital.

É por isso que a expansão e os limites do capital – da sua reprodução ampliada (acumulação globalizada) até, finalmente, ao seu corolário, as modernas crises periódicas de superprodução – são o objeto final de aplicação da verdadeira teoria ou ciência econômica, também conhecida nas ilustres universidades inglesas, desde o século 16, pelo menos, como Economia Política.

Mas antes de concluir, nunca é demais repetir: não se pode separar globalização e crise catastrófica do capital. Tanto uma coisa como a outra só podem ser entendidas como uma sólida unidade dialética.

Nos movimentos da globalização já se encontram os prolegômenos da crise catastrófica. A teoria revolucionária de que falava Lenin não pode sofrer uma fragmentação aleatória de globalização, crise e revolução como coisas separadas, autonomizadas e alienadas cada uma para seu lado.

No mundo real da ação material existe, comprovadamente, a unidade orgânica dos três movimentos dialéticos que no sistema hegeliano assumem a explosiva forma de negação da negação.

Vejamos alguns didáticos parágrafos do Manifesto do Partido Comunista (1848), de Marx e Engels, um incrível ensaio de vulgarização científica sobre essa organicidade orgânica da dinâmica capitalista e a sua negação, a revolução proletária.

Pode-se verificar aqui como, exatamente cento e setenta anos atrás, os dois parceiros teóricos inseparáveis da 1ª Internacional descrevem o mais didaticamente possível aquelas necessárias relações entre globalização e crises periódicas de superprodução. Ou melhor, como a anatomia do capital, objeto da economia política, antecipa sua própria necrologia, objeto da crítica da economia política.

“Impelida pela necessidade de mercados cada vez mais amplos para seus produtos, a burguesia invade toda a superfície do globo. Ela deve incrustar-se em toda parte, estabelecer-se em toda parte, criar relações em toda parte.

Explorando o mercado mundial a burguesia imprimiu uma forma cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas ou serão brevemente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se toma um problema vital para todas as nações civilizadas, indústrias que empregam matérias-primas vindas não mais do interior, mas das regiões mais distantes. Os produtos industriais se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As obras intelectuais das diversas nações tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e os particularismos nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis e das inúmeras literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.

Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante aperfeiçoamento dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais resistentemente hostis aos estrangeiros. Sob pena de fazer desaparecer, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, obriga-as a importar a civilização, isto é, a se tomarem de fato nações burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem.

A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que submeteu o campo à cidade, ela submeteu os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, submeteu os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência fatal dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.

A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. A dominação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafo elétrico, exploração de continentes inteiros, canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto. Qual século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?

Como vimos, os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Em um certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Entravavam a produção em lugar de impulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas correntes que era preciso despedaçar. E foram despedaçadas.

Em seu lugar, estabeleceu-se a livre concorrência, com uma organização social e política correspondente, com a supremacia econômica e política da classe burguesa.

Assistimos hoje a um processo semelhante. As relações burguesas de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que criou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se agora ao mágico que já não pode controlar as potências infernais que pôs em movimento. Há dezenas de anos que a história da indústria e do comércio não passa da história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção e de propriedade que são a base de existência da burguesia e seu regime de dominação.

Basta mencionar as crises econômicas que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos já fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já desenvolvidas. Explode uma epidemia social que, em qualquer outra época teria parecido um absurdo: a epidemia da superprodução. Subitamente, a sociedade vê-se reconduzida a um estado de barbárie momentânea; dir-se-ia que uma fome ou uma guerra de extermínio universal cortaram-lhe todos os meios de sobrevivência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de sobrevivência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações de propriedade burguesa; pelo contrário, tomaram-se por demais poderosas para as instituições burguesas, que passam a entravá-las; e todas as vezes que as forças produtivas sociais se libertam desses entraves, precipitam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. As instituições burguesas tornaram-se demasiadamente estreitas para conter as riquezas por elas criadas.

De que maneira consegue a burguesia superar essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. O que quer dizer isso? Que ela prepara crises mais gerais, mais profundas, e a diminuição dos meios de evitá-las.

As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra ela própria. E ela não forjou somente as armas que lhe darão morte; produziu também os homens que manejarão essas armas – os trabalhadores modernos, os proletários”. 
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[Traduzido de Karl Marx, Oeuvres, Economie I,– tradução e notas de Maximilien Rubel – Bibliotheque de La Pleiade, Ed. Gallimard, Paris, 1965]

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