Por que o “mercado” flerta com Bolsonaro, por Gustavo Barbosa

Publicado no Outras Palavras.


“Minha preferência se inclina na direção de uma ditadura liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o liberalismo”. A famosa afirmação de Friedrich Hayek, considerado o pai do neoliberalismo, é a chave para que ninguém minimamente informado seja pego de surpresa com a recente e declarada preferência do mercado pelo pré-candidato Jair Bolsonaro.

Já há algum tempo vem ficando cada vez mais evidente a incompatibilidade entre mercado e democracia — mesmo aquela democracia liberal junto com suas infantilidades republicanas. Embora a retórica de seus apologistas seja repleta de frases de bolso em torno da pretensa defesa das liberdades democráticas, os deslizes sincericidas é que são o verdadeiro parâmetro para que possamos avaliar a verdadeira face encoberta por mantras que, de tão ginasiais, chega a assustar que tanta gente ainda caia em seus sofismas.

“Eu vou dizer uma coisa que é maluca, mas menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa”, afirmou Jerome Valcke, secretário-geral da FIFA em 2014. Enfezado com as noções – noções liberais, por favor – de Estado-nação e de soberania nacional, expressas tanto em leis como nas instâncias e mecanismos democráticos de controle e fiscalização – conselhos de direito, parlamentos, etc., Valcke deu a real: esse negócio de democracia não se alinha com os verdadeiros propósitos do mundial, quais sejam, os de encher as burras das corporações que financiam o evento.

Intermediadas pela FIFA, tais corporações não sentiram um fiapo de constrangimento ao solicitar que, durante a realização da copa no Brasil, fossem suspensos o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso e o Estatuto do Torcedor – sem falar nas desapropriações arbitrárias e no completo desrespeito à política urbana estabelecida pelo Estatuto das Cidades, conforme demonstrado no excelente documentário Areia Movediça: a Copa sob as dunas, da ESPN Brasil. Depois do evento, tais leis poderiam voltar normalmente a surtir efeitos, como se nada houvesse acontecido. Onde estavam os liberais para sair em defesa das ditas liberdades democráticas, da soberania e da autodeterminação do País contra o rolo compressor do mercado?

“Plutonomia” foi o termo utilizado em três memorandos enviados pela Citigroup, maior empresa do ramo de serviços financeiros do mundo, de acordo com a revista Forbes, para definir a – falta de – democracia nos Estados Unidos. Na ocasião, a agência informou aos seus mais ricos investidores que os EUA há tempos deixaram de ser uma democracia, tornando-se uma sociedade controlada exclusivamente em prol do benefício do 1% da população que concentra a maior parte da riqueza coletivamente produzida – os plutocratas aos quais faz referência em suas missivas. Em uma cena de Watchmen, após reprimir violentamente uma manifestação pública, o Coruja pergunta ao Comediante o que aconteceu com o sonho americano. “Virou realidade”, responde. “Você está olhando para ele”.

Voltando a Hayek, foi com inspiração em suas ideias e, mais especificamente, nas de seu colega Milton Friedman que os chamados Chicago Boys tiraram do papel sua doutrina de choque e aproveitaram o golpe que findou com o governo de Salvador Allende, eleito presidente do Chile em 1970, para implementar o projeto ultraliberal que anos antes fora derrotado nas urnas.

Como uma das maiores senilidades liberais é a de que economia e política não se misturam, as crianças de Friedman não viam nenhuma incoerência em levantar a bandeira da liberdade ao mesmo tempo em que eram o cérebro por trás das medidas liberalizantes aplicadas graças a uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina. Este constrangedor e esfarrapado duplipensar foi expresso por seu próprio guru, cujos delírios autoritários devem certamente servir de inspiração aos cães da guardas do mercado financeiro aqui no Brasil, para quem as eleições são declaradamente uma ameaça aos propósitos do 1% de que trataram os referidos memorandos da Citigroup.

Nesse ponto já é possível concluir que o reino da liberdade do mercado está longe de torcer o nariz para o fascismo – e não apenas em seu sentido metafórico. No documentário Fascism Inc, Aris Chatzistefanou demonstra  como a ascensão do nazi-fascismo jamais seria possível sem o suporte das grandes corporações, já denunciadas em sua natureza destrutiva e antidemocrática em The Corporation, outro documentário clássico e fundamental.

As experiências golpistas envolvendo a multinacional United Fruit na América Central apontam para um grau permanente de insolubilidade entre capitalismo e democracia, com algumas intermitências e recuos históricos em seu centro no século XX — uma realidade, contudo, diferente da dos países os quais se convencionou chamar de periféricos. “Somoza pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho puta”, teria afirmado Franklin Delano Roosevelt sobre o ditador nicaraguense Anastasio Somoza, em perfeita síntese da dinâmica das relações imperialistas dos EUA com a América Latina.

“Nada mais parecido com um fascista que um burguês assustado”, disse Brecht. Não precisa de susto para que o mercado passe a adotar práticas fascistas e a apoiar ditaduras que o tornem livre de qualquer concorrência e, sobretudo, de qualquer controle popular e democrático. O fato do mercado flertar com Bolsonaro não é novidade, portanto. É apenas a história se repetindo como farsa.
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Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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