A lição de Romeu Tuma, por Camilo Vannuchi

Publicado na CartaCapital.


Abril de 1980. A prisão de Lula e outros sindicalistas era favas contadas. Já no dia 14, enquanto o Tribunal Regional do Trabalho votava a ilegalidade da greve, uma dezena de diretores do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo foi intimada ao Dops para prestar depoimento.

O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, encarregado da defesa de todos eles, passou a tarde no prédio do Largo General Osório, no centro de São Paulo. Geraldo Siqueira, deputado estadual eleito pelo MDB e em processo de transferência para o PT, ainda não registrado no TSE, correu para lá para ajudar a garantir a integridade dos depoentes. Tanto um quanto outro ficaram no local até o último sindicalista depor. A certa altura, um jornalista veio falar com Geraldinho.

- "Acabaram de me ligar da redação para avisar que foi decretada a ilegalidade da greve. O que o nobre deputado tem a dizer sobre isso?"

Geraldinho deu entrevista e avisou Greenhalgh. A decisão do TRT mudava tudo. Era preciso avisar os sindicalistas. Junto com a ilegalidade da greve viriam a cassação dos mandatos e os pedidos de prisão preventiva. Quando todos foram embora, devidamente avisados, um investigador se aproximou do advogado e do deputado, que fumavam um cigarro na calçada.

- "Façam o favor de entrar novamente. O delegado quer falar com vocês."

O delegado era Romeu Tuma, chefe do Dops desde a morte de Sérgio Paranhos Fleury, em 1º de maio do ano anterior. O agente conduziu a dupla por um corredor lateral até o elevador. Subiram ao terceiro andar e foram levados até um quartinho minúsculo, embaixo da escada, onde havia pilhas de Diário Oficial. O agente pediu que aguardassem e trancou a porta. 

- "Será que deram outro golpe e estão prendendo em massa de novo?", Geraldinho comentou. "Estamos presos, é isso?"

Cada um sentou numa pilha de jornal. Minutos depois, Romeu Tuma entrou no cubículo, fechou a porta e acomodou-se também numa pilha.

- "Olha, vou direto ao assunto", disse. "A comunidade de segurança se reuniu e ficou decidido que Lula vai ser preso. Fui voto vencido. Argumentei que, se for preso, Lula vai acabar saindo da cadeia nos braços do povo, como um herói, e isso é contraproducente."

Os dois tentavam entender a razão daquela audiência.

- "Sei que vocês são amigos dele", Tuma continuou. "Estou avisando porque ele tem criança pequena e pode ser salutar evitar o trauma de uma prisão diante delas."

Geraldo Siqueira saiu intrigado. Greenhalgh também. Uma das hipóteses era a de que, em tempos de abertura lenta e gradual, Tuma reivindicasse para si o avatar da legalidade, numa tentativa de se mostrar democrático e expor a diferença de atitude em relação a Fleury.

Outra hipótese de que o futuro senador tivesse consciência da liderança exercida por Lula e do papel que ele desempenharia no período que se iniciava, preferindo lidar com aquela prisão com aparente republicanismo.

Uma terceira possibilidade, talvez a mais provável, era que Tuma estivesse torcendo para que Lula, avisado da ordem de prisão, desse um jeito de fugir. Uma fuga desmoralizaria o movimento sindical e o próprio Lula. Colocaria a pá de cal na greve e esvaziaria a possibilidade de novas paralisações no ano seguinte.

Geraldinho e Greenhalgh correram para a casa de Lula e Marisa. Era preciso contar o que tinha acontecido e decidir o que fazer. O líder metalúrgico não hesitou. Repetia que não havia cometido crime algum e que não iria fugir.

Nos quatro dias que se seguiram, os filhos mudaram-se para as casas das tias e dois amigos se instalaram em sua casa: Frei Betto, frade dominicano e assessor da Pastoral Operária do ABC, e Geraldinho.

Deputados federais do MDB iam até Lula para, aos sussurros, oferecer logística para que ele cruzasse a fronteira por terra e se abrigasse no Uruguai ou na Argentina. Lula preferiu esperar. Até que, na madrugada de 19 de abril, um sábado, duas veraneios do Dops, coloridas e sem identificação, estacionaram em frente ao portão com oito pessoas, duas delas armadas com metralhadoras.

Ainda não eram 6 horas da manhã quando os agentes bateram palmas: "Senhor Luiz Inácio da Silva, Lei de Segurança Nacional!"

Marisa chacoalhou o marido: "Lula, Lula, acorda, estão atrás de você." 

O marido resmungou qualquer coisa, virou para o outro lado e cobriu a cabeça com o lençol. Marisa alcançou algo que pudesse vestir e foi até a sala, onde o deputado estadual Geraldo Siqueira dormia no sofá.

- "Estão aí, chamaram o nome do Lula", ela disse.

Enquanto Geraldo pedia o mandado de prisão, Frei Betto foi ao quarto do casal. "Lula, levanta", ele disse. "Vieram te buscar. Você tem que ir."

Calmo, Lula se levantou e pediu para a mulher passar um café.

- "Lula está se vestindo e já vai sair", Geraldinho avisou os agentes.

- "Fala para ele vir rápido!"

Os policiais não paravam de olhar ao redor. Agiam com discrição para que os vizinhos não percebessem. Conheciam a popularidade de Lula e temiam que os trabalhadores ousassem enfrentá-los para defender seu líder.

Lula vestiu uma calça. Não gostou. Vestiu outra. "Você não vai?", Marisa o apressava. "Calma. Vou tomar um café", respondeu.

Após 31 dias detido, a popularidade de Lula havia disparado. Parte significativa do Brasil queria Lula livre. O apoio às greves superou pela primeira vez o repúdio a elas. Uma pesquisa de opinião aferiu que Lula era a única figura política com percepção positiva naquele episódio.

Os demais, do ministro do Trabalho, Murilo Macedo, ao governador de São Paulo, Paulo Maluf, saíram chamuscados.

Fundado naquele ano, o PT logo se transformaria no maior partido progressista da América Latina. Lula seria o deputado federal mais votado do país em 1986 e chegaria à presidência da República em 2002, reeleito em 2006 com o recorde histórico de 58 milhões de votos. Romeu Tuma estava certo.


Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Escreveu um dos capítulos do livro "A verdade vencerá", de Luiz Inácio Lula da Silva (Boitempo, 2018), e é co-autor de "Enciclopédia do Golpe vol. 2: O Papel da Mídia" (Canal 6, 2018). No momento, prepara uma biografia da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva.

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