Lula, como eu o vejo, por Nilson Lage

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Acompanho a trajetória de Lula desde os últimos anos da década de 1970, quando se começou a comentar, em círculos do governo federal, a ascensão de um jovem nordestino na liderança do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema.

Ao contrário do que acontecia com os escorraçados líderes do trabalhismo antigo, os comentários ali foram ambíguos. Se bem que os militares no poder odiassem organizações de trabalhadores de qualquer tipo, a mobilização dos metalúrgicos era tolerada, tanto que teve boa imprensa: diziam que se tratava de “novo sindicalismo”, “fora do âmbito estatal” (os mais ativos sindicatos da era Vargas eram de ferroviários, portuários e marítimos do Loide Brasileiro), de “operários bem pagos” (“com automóvel na garagem”), empregados em “fábricas modernas”.

A repressão começaria depois, no ocaso do regime, quando já ruía a estrutura bipartidária artificialmente concebida – Arena e PMDB – e logo se fundaria o Partido dos Trabalhadores.

A lenda dos dois trabalhismos sustentou-se em São Paulo, onde começou a vida política de Lula, mas explodiu na campanha do primeiro turno das eleições presidenciais de 1989, em que ele confrontou Leonel Brizola. Roberto Marinho (Globo) o apoiava, embora discretamente, por temer a vitória do ex-governador gaúcho do Rio de Janeiro: comentou-se, na época, em meios jurídicos, que houve fraude na apuração (um “novo Proconsult”), com o desvio de centenas de milhares de votos de um para o outro.

Creio que o momento chave na construção da consciência política de Lula aconteceu logo em seguida, quando Brizola, que o chamava de “sapo barbudo”, aliou-se decisivamente a sua campanha no segundo turno. Não era questão de pessoas; algo menos óbvio estava em jogo.

Lula jamais afastou os grupos militantes de classe média, com suas bandeiras culturais (Marta Suplicy é um exemplo), mas começou a perceber que o que se passava era uma projeção da luta de classes expressa em discursos ideológicos de difícil compatibilização.

Compatibilizá-los foi sua tarefa, daí em diante. O diretor de pessoal da Vokswagen, que era meu aluno na Escola Superior de Propaganda e Marketing, disse-me, em sala de aula, na véspera da eleição de 1989, que votaria nele por ser “homem da produção” e “um negociador fantástico, que negociará, negociará, negociará sempre”.

Rapaz simplório que a vida ensinou a deixar de ser, Lula guardou na sua trajetória, traços de origem: o pragmatismo, a tolerância e, como seu principal ponto fraco, o respeito religioso a conceitos imprecisos e abstratos (como “republicanismo”) e à avaliação de pessoas por currículo: são defeitos que se evidenciam na espantosa ingenuidade de homem tão inteligente nas indicações para cargos chaves e na montagem da estrutura governamental contra a corrupção.

Suponho que Lula é pessoalmente honesto; não fosse, estaria riquíssimo e bem longe da perseguição jurídica que lhe movem. As pessoas não envolvidas pelas paixões do momento desconfiam logo que essa história de sítio, apartamento na praia e aluguéis forjados é patranha muito bem encenada.

Mas justamente isso torna Lula homem perigoso. O último aprendizado de um líder que se opõe a ordem vigente é a percepção do quanto ela é capaz de construir a realidade.


Nilson Lage é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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