Nosso Vargas: breve crítica do Brasil lulista, por Luís Felipe Machado de Genaro

Publicado no Pragmatismo Político.


As comparações na História são sempre muito dificultosas, senão perigosas. Quem diz isso não sou eu, mas o historiador marxista Eric Hobsbawm, preocupado com a história social e a comparação de momentos de sublevação e levantes populares.

Hobsbawm aponta o perigo deste tipo de método de pesquisa, residindo na “tentação de isolar fenômenos”. Ele continua: “esse perigo pode ser particularmente grande quando nos lançamos em estudos comparativos, especialmente quando motivados pelo desejo de resolver problemas”.

Cá entre nós, não vivemos hoje um problema, mas um problemão – ao menos para aqueles preocupados com os rumos das forças progressistas e à esquerda, além do horizonte de expectativas do povo e das classes trabalhadoras brasileiras.

A tentativa de comparar o ex-presidente Lula a Getúlio Vargas vem justamente a calhar em um momento intenso da vida nacional, que espera seu clímax desconhecido em um futuro não muito distante. Ambos personagens complexos, complexas foram também a sua passagem e ações na História.

Um já se foi nos idos de 54, auto alvejado com um disparo no coração no intuito de impedir que “forças ocultas” golpeassem a vida nacional – afastadas até o primeiro de abril de 1964, depondo violentamente Goulart, ex-ministro do Trabalho de Vargas e voz ativa das jamais concretizadas reformas de base.

O outro permanece força personalista imparável, em caravana pelo Nordeste brasileiro e outras regiões remotas do país. Lula arrebata multidões. É aliciado, beijado e abraçado por mulheres e homens da gente subalterna, que de uma forma ou de outra enxergam no ex-presidente operário esperança em dias frustrantes.

Lula renasce após ser alvejado de todos os lados – esquerda e, principalmente a direita. A mesma direita que Lula acocou, inflou e com a qual trocou figurinhas durante os anos áureos de seus dois governos. Bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia que Dilma Rousseff não foi hábil o suficiente para controlar, negociar, se enlamear.

Talvez a semelhança que se imponha como regra entre Getúlio e Lula seja o personalismo carismático. A grande figura do Pai. Não obstante, a construção de governo pactuados. Estados guarda-chuva que abarcam adversários, amigos, inimigos e aliados. A pacificação de um país sem paz. A conciliação entre as forças dominantes que, apesar dos pesares, permanecem intocadas e intocáveis.

A caravana de Lula ao Nordeste impressiona, sem dúvida. Sua comunicação simples, distante da arrogância ou ignorância da casta política enraizada nos trópicos, cativa a massa que chora de emoção e saudade de um país que nunca chegou a ser.

Transformações de superfície realizadas pela “espuma da História” – como Leonel Brizola se referiu a Lula numa entrevista ao Roda Viva – foram sem dúvida alguma, históricas. Negros, camponeses, sem-teto, pela primeira vez tiveram oportunidades, são hoje detentores de direitos. A questão é: até quando?

Mesmo assim, as contradições são inúmeras.

Vargas, na eleição dos anos 50, explorou ao máximo seu lado populista, dono de um poderoso discurso ufanista voltado para as classes trabalhadoras brasileiras. Também recheado de contradições, não permaneceu fiel ao lado que tanto insuflou.

Em uma obra clássica sobre a história política brasileira escrita pelo brasilianista Thomas Skidmore, De Getúlio a Castelo, lemos: “Na sua estratégia para a campanha de 1950, Vargas levou em conta os diversos Brasis produzidos pelo desenvolvimento econômico desigual dos últimos vinte anos. Vencera as eleições apelando para os interesses diversos e contraditórios de vários setores e classes”.

Sobre Luíz Inácio, seu partido e a conciliação de classes, Tales Ab’Sáber em Brasil, a ausência significante política, artigo áspero e cirúrgico, afirma: “o governo Lula, por fim e ao cabo da construção desse ‘mundo perfeito da ideologia brasileira’, selou a suspensão final das tensões e problematizações econômicas e políticas, como se de fato elas não existissem, dando a contribuição de estabilidade social à direita que as classes conservadoras brasileiras jamais conseguiram por si mesmas”.

O golpe parlamentar que derrubou Dilma mostra que a roda viva não parou, rompendo o pacto lulista e seu mundo perfeito, derrubando a primeira mulher presidenta os seus aliados de outrora.

Fossem concretizadas as reformas de base de Jango, Furtado, Darcy e outros grandes (mesmo reformuladas e repensadas pelo Partido dos Trabalhadores em 2002), talvez o Brasil tivesse tomado outros rumos, menos desiguais, injustos e cruentos. A negociação política jamais seria descartada. Uma coisa é negociar, outra é renegar e se abster.

Não há possibilidades na História. Há o que ocorreu.

Ambos, Vargas e Lula, foram atingidos também pelo discurso moralista da corrupção política, como se atos deploráveis e reprováveis fossem únicos de seus governos e aliados, e não uma cultura política enraizada nas estruturas, instituições e sociedade brasileiras desde as caravelas de Cabral.
Resumir tais personagens à pecha da “corrupção” não só é de um senso comum gritante, como estúpido e ineficaz.

Terá fim essa terra em transe quando nos afastarmos da conciliação classista tão presente nos setores mais tradicionais da esquerda nacional – como a extrema esquerda, fruto de um petismo que engatinhava e se descolou do partido, desconhece a reles negociação em todos os seus aspectos.

Lula, se não barrado em 2018 pelo processo guiado pelo nêmesis Moro (juiz não é inimigo, mas a imprensa tupiniquim o fez), terá grandes chances de se eleger presidente. Retornará triunfante, como Getúlio Vargas retornou em 1950-51.

No período, Vargas ainda contava com uma valiosa carta na manga. Dessa vez ganhara nas urnas, não mediante um movimento fora dos padrões “democráticos”. Para vencer, negociou com apaixonados e enraivecidos, sujeitos que ora queriam a sua cabeça numa bandeja de prata, ora viam no pai dos pobres, a mãe dos ricos.

Lula dará a mesma cartada. Frente a um governo ilegítimo fruto de conspirações do então vice-presidente e presidente da Câmara, trará consigo o poder das urnas. Só nos resta saber se ao lado das caravanas populares que tanto insufla, ou dos coronéis e oligarcas que tanto acoca…


Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestrando pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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