O oportunismo do Congresso, por Delfim Netto

Publicado originalmente na Carta Capital.


O Brasil vive mais uma das situações interessantes em que um misterioso “espírito do tempo” (um ente abstrato cada vez mais empoderado pela instantaneidade das redes sociais) exige do Legislativo uma lógica consequencialista em lugar da sua lógica “natural”: a oportunista. Sua tendência é empurrar com a barriga falsas soluções sem custos no presente, mas que acumulam novos e mais graves problemas no futuro. Para o “oportunista”, isso não é relevante porque ele sabe que não estará aqui no “futuro”.

É o instinto de sobrevivência do Legislativo que alimenta o “oportunismo” e lhe dá tempo para acomodar-se. Quem o olha de fora, tem a impressão de que se trata de um corpo sem coordenação, sem hierarquia, procrastinador de soluções não consensuais. Nada mais falso.

Seus líderes têm consciência de que, mesmo no presidencialismo “imperial”, sem eles no Executivo não há governo que funcione; que no parlamentarismo de “ocasião” ele é o próprio Executivo; que o Judiciário – não eleito diretamente – tem de negociar com ele a sua aprovação. Seus líderes, que controlam com favores o “baixo clero”, sabem que são, efetivamente, o poder “supremo”. Só eles podem mudar a Constituição (com exceção das cláusulas “pétreas”). 

Ademais, eles têm consciência de que todo esse poder foi produzido a partir do grande estelionato eleitoral de 1986, fonte da Constituição de 1988. A direção dos partidos políticos transformou-se numa “elite” que, junto ao alto funcionalismo público, consome boa parte do excedente produtivo que deveria ser destinado aos investimentos em educação, saúde e infraestrutura, sem os quais não há desenvolvimento.

Sabem dos riscos a que foram expostos pela lei das delações premiadas (que eles mesmos aprovaram) e que tornou possível à Polícia Federal e ao Ministério Público, fortalecidos na Constituição de 1988, exporem as entranhas do criminoso intercurso entre cartéis gigantes do setor privado e os “braços do Legislativo” introjetados no Executivo para vender favores.

Sob qualquer ponto de vista, o sistema eleitoral vigente é imprestável. Há poucas esperanças de que venha a se aperfeiçoar. Os “caciques” dos partidos tentam, a qualquer preço, a sua salvação eleitoral, propondo “lista fechada” e “financiamento público”. Talvez se consiga alguma regra de “barragem” (que o STF considerou inconstitucional) e a eliminação das coligações nas eleições proporcionais em que o eleitor escolhe x e elege y.

É preciso reconhecer que, no Congresso, existe uma “cultura” que condiciona o comportamento dos seus membros: 1. Não há arrependimento. Colhido o voto, ele não pode ser modificado. 2. A “palavra” dada vale. Trata-se do famoso “logrolling”. Frequentemente, transacionam-se “votos” para que o sistema funcione quando há preferência temporal na ordem de votação. 3. Nunca se pede explicação para os votos dados de cada um.

Todos são questão de “consciência”. 4. Acordos estabelecidos pelos “líderes” dos partidos são, geralmente, cumpridos. Não há desculpa: o líder que deu a palavra não cumprida por seus liderados perde o respeito dos outros e a capacidade de continuar no jogo. 5. O pior instrumento para convencer o plenário é a lógica. O melhor é a “transação” à “boca pequena”, de interesses nem sempre republicanos.

Todo o nosso sistema eleitoral foi montado para permitir a apropriação do poder político (o Legislativo e o Executivo) pelo poder econômico, através do financiamento por pessoas jurídicas que possam mobilizar amplos recursos – em dinheiro vivo –, não apenas no comércio lícito, mas também por organizações mafiosas que movimentam bilhões de reais em armas e drogas, agora proibido pelo STF.

Esse foi o começo do fim do processo democrático que civiliza o capitalismo, dando “paridade de força” entre o trabalho e o capital. Todos sabem o que precisa ser feito: uma redução dos custos das campanhas eleitorais e uma enorme dispersão do seu financiamento, de forma que nenhuma “fonte” seja “importante”. O que não se sabe é como fazê-lo, diante dos interesses políticos consolidados nos costumes atuais.

Paira hoje uma enorme incerteza sobre o nosso futuro. Esperar que a troca de governo conservará a mesma política econômica porque não tem outro objetivo que não “o bem do Brasil” é ignorar a pobreza dos interesses que agitam o sistema político. Ele naufraga tentando andar sobre as águas, puxando seus próprios cabelos.


Delfim Netto é economista formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal.

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