Keynes e o vendaval de imediatismos, por Luiz Gonzaga Belluzzo

Publicado originalmente na Carta Capital.


Em sucessivos e peremptórios decretos baixados do alto de suas sabedorias, os comentaristas de economia repetem, em gestos e vozes talmúdicas, a despreocupação com o déficit público dos chamados economistas keynesianos. Os sabichões pretendem vender a vulgata dos detratores de Keynes a respeito dos déficits, das dívidas e de seu financiamento nos mercados em que traficam a bugiganga intelectual que produzem.

Se algum dia tivessem passado os olhos – apenas uma passada de olhos – na literatura de melhor qualidade, ficariam sabendo que o sofisticado teórico da economia monetária jamais poderia receitar déficits a torto e a direito. Esse, diga-se, aliás, é tema recorrente na obra de John Maynard.

Keynes repudiava veementemente as políticas de curto prazo, “oportunistas”, típicas do keynesianismo bastardo. A propósito das formas de intervenção do Estado, ele revela suas concepções em resposta irada a seu amigo James Meade: “Você acentua demais a cura e muito pouco a prevenção. A flutuação de curto prazo no volume de gastos em obras públicas é uma forma grosseira de cura, provavelmente destinada ao insucesso.

Por outro lado, se a maior fração do investimento está sob controle público ou semipúblico, e assim caminhamos para um programa de estabilidade de longo prazo, flutuações mais intensas serão muito menos prováveis de acontecer. Eu sinto, portanto, que você não faz justiça ao investimento sob controle público ao simplesmente enfatizar a deficiência desse método, enquanto subestima sua eficácia para propósitos preventivos e como forma de evitar flutuações pronunciadas, as quais, uma vez tendo ocorrido, são tão difíceis de enfrentar”.

Em todo o caso, as palavras de Keynes suscitaram outras lembranças. Gillles Deleuze, o filósofo, dizia que a “filosofia (e eu acrescentaria a economia política) é inseparável de uma cólera contra a época, mas não é uma Potência. As religiões, os Estados, o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião, a mídia, são potências, mas não a filosofia... Não sendo potência, a filosofia não pode empreender uma batalha contra as Potências: em compensação, trava com elas umas guerra sem batalhas, uma guerra de guerrilhas. Não pode falar com elas, nada tem a lhes dizer, nada a comunicar, e apenas mantém conversações”. 

Apesar de suas formidáveis intuições e descobrimentos, Keynes deixou-se carregar pelas ilusões do poder das ideias e do convencimento, imaginando ser possível, com tais armas, travar batalha contra as Potências. Mas, na realidade, as Potências estão desinteressadas em sufocar a crítica ou as ideias desviantes.

Elas dedicam-se a algo muito mais importante: fabricam os espaços da literatura, do econômico, do político, espaços completamente reacionários, pré-fabricados e massacrantres. “É bem pior que uma censura”, continua Deleuze, “pois a censura provoca efervecências subterrâneas, mas a reação quer tornar tudo isso impossível.”

Nesses espaços fabricados pelas Potências, talvez seja até mesmo impossível manter conversações, porque a norma não é a crítica racional, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. “Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém”, diz Deleuze.

Alguns senhoritos da mídia, transformando a opinião em Potência, abandonam a crítica pela vigilância e a vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Gritam, implacáveis: “Esses malditos keynesianos, promotores de déficits, vamos pegá-los. Vamos pegá-los, porque os déficits são maus. Abaixo os déficits, morte aos keynesianos”.

Só um insensato, em meio à perseguição, tentaria explicar alguma coisa a esse bando  enlouquecido. O filósofo Franco Berardi vai além e conclui que o vendaval de abstrações e imediatismos produzidos pelos mercados financeiros, pela mídia e pelas tecnologias de informação capturou as energias cognitivas da sociedade. De um lado, diz ele, são ondas avassaladoras de sofrimento mental e, de outra parte, a depressão e o rebaixamento intelectual encontram remédio no fanatismo e no fascismo.

O autor da Teoria Geral tinha fé no poder das ideias e depositava esperanças na persuasão e no convencimento. É de se temer (não Temer, por favor, revisão) que, ressuscitado, o velho Keynes, ao tomar conhecimento dos comentários sobre sua obra, implorasse por uma volta imediata aos confortos e tranquilidades da eternidade.


Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor da UNICAMP.

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