Destino: Moçambique, por Andreia Prestes

Publicado originalmente no Jornal GGN.


Depois de 30 anos, estou voltando a Moçambique, país africano que acolheu meus pais e toda a família durante o exílio, no período da Ditadura Civil Militar no Brasil. Esse retorno, emocionante para todos nós, tem trazido à memória nossa história familiar e uma reflexão sobre as permanências e continuidades na história política brasileira.

Nasci em Moscou, na antiga URSS, no ano de 1978. Minha mãe, Rosa, brasileira, saiu do país acompanhando os meus avós que se exilaram diante do recrudescimento da ditadura civil militar no Brasil. Meu pai, João Massena Melo Filho, também brasileiro, saiu do Brasil para estudar, após a prisão do meu avô paterno, João Massena Melo, militante do Comitê Central do Partido Comunista.

No mesmo ano do meu nascimento, meu pai terminou o Mestrado na Universidade dos Povos Patrice Lumumba, em Moscou, e foi informado por intermédio do seu sogro, Luiz Carlos Prestes, que se retornasse ao Brasil corria o risco de ser preso no aeroporto em função das atividades culturais de mobilização que realizava junto a outros estudantes brasileiros no leste europeu.

Meu pai já tinha sido preso, em 1970, meses antes de deixar o Brasil. A polícia invadiu a casa onde morava no subúrbio do Rio, quebrou muita coisa e prendeu todos que estavam ali, inclusive a minha bisavó, uma senhora já idosa na ocasião. Após três dias de prisão na Ilha das Flores – uma ironia esse nome - todos foram soltos, com exceção do meu avô João Massena Melo que ficaria ali por mais três anos. Alguns meses depois da sua soltura, seria sequestrado pelas forças policiais de repressão da ditadura e considerado desaparecido político. Até hoje procuramos notícias do seu paradeiro.

Nesse contexto, foi tomada a decisão de não retornarmos ao Brasil. Fomos para Moçambique, país africano que havia recentemente conquistado a independência de Portugal e recebia diversos brasileiros exilados que queriam contribuir para a consolidação da independência no país.

Saímos de Moscou em junho de 1978 em direção à República Popular de Moçambique. No voo iam meus pais, minha avó Maria Prestes, eu, com três meses de vida, e meus dois irmãos mais velhos. No trajeto, estava previsto um pouso no Iêmen do Norte para abastecimento da aeronave. Em função de uma rebelião, o pouso foi realizado no Iêmen do Sul. O avião, cercado por militares fardados, negociava o abastecimento da aeronave para poder seguir viagem para Moçambique. Depois de algumas horas de muita tensão, partimos em direção a Maputo.

Fomos muito bem recebidos em Moçambique, onde fizemos grandes amigos tanto na escola pública onde estudamos, como no Clube Desportivo, onde nadávamos e disputávamos campeonatos locais. O país vivia na época uma efervescência política. Eram tempos de muito engajamento para a reconstrução de um novo país. Meu pai foi trabalhar na Universidade Eduardo Mondlane, contribuindo para formação de professores, função muito relevante na época diante do desafio que o país possuía especialmente na área da Educação.

A intenção inicial era ficar cerca de dois anos em Maputo. Em 1979, com a Anistia no Brasil, alguns exilados iam aos poucos retornando. Em 1982, meu pai deu entrada no Ministério da Educação no Brasil (MEC) para revalidação do seu diploma. Com ele seria possível voltar ao país e se empregar na sua área de formação – a Química. Entretanto, apesar de alguns avanços, o aparelho de repressão ainda estava em pleno funcionamento e a revalidação foi negada sob a alegação do MEC de que esse diploma não era de interesse nacional.

Em função disso, permanecemos em Moçambique. O país entrava em um período complicado, com o acirramento da guerra civil. No início dos anos 1980, em Maputo, no dia da comemoração da independência moçambicana, um grupo contrário ao governo incendiou criminalmente o paiol da cidade. Criança, lembro de escutar as seguidas explosões sem entender o que estava acontecendo. Foram centenas de crianças desaparecidas, que viviam em uma aldeia próxima a esse paiol e que fugiram das explosões.

Na ocasião, para facilitar o encontro dessas famílias, o governo moçambicano estabeleceu como ponto de referência um parque público que ficava em frente a nossa casa. Durante meses observamos o movimento dessas famílias, tentando encontrar os seus entes queridos. Impossível não associar essa imagem a nossa história pessoal e a situação política que o Brasil vivia na época: estávamos impossibilitados de voltar ao país, vivíamos a milhares de quilômetros de distância de nossos avós, tios e tias que escreviam com frequência, mas poucas vezes – em função da distância – puderam estar conosco. Também tínhamos notícia da luta empreendida por minha avó paterna e a Alice, minha tia, em busca do meu avô que foi sequestrado por militares brasileiro e considerado desaparecido político.

Em 1987, retornamos ao Brasil, quando finalmente o diploma do meu pai foi revalidado pelo MEC.

Em breve, vamos visitar Moçambique de férias pela primeira vez. Encontraremos um outro país, bem diferente do que conhecemos e vivemos no final da década de 1970 e início de 1980. Ainda assim, o momento é de grande emoção pois são de lá nossas referências de infância e onde aprendemos uma lição para a vida toda: que mesmo em tempos complexos de guerra civil e de extrema escassez de alimentos e bens materiais, é possível ser solidário e acolhedor com outros povos.

Esse retorno ao continente africano também tem nos levado a uma viagem no tempo para comparar as permanências e continuidades na história política brasileira. Em três décadas, tivemos poucos avanços no que diz respeito à consolidação da democracia. Muitas questões seguem ainda sem resposta oficial.

A busca pela história do meu avô paterno - João Massena Melo - continua, não temos notícia oficial sobre as circunstâncias da sua prisão e sobre o local onde está o seu corpo. Impunes, militares que cometeram crimes graves como os de tortura, estupro e ocultação de cadáver continuam em atividade, assumindo inclusive cargos de confiança, como acontece agora no Rio de Janeiro na gestão do prefeito Marcelo Crivela.

Nas favelas do Rio, crimes de tortura e assassinato cometidos pelo Estado brasileiro, principalmente contra a juventude negra, seguem impunes e nos fazem lembrar todo dia que temos ainda uma longa estrada, que passa necessariamente pela punição dos criminosos, para a consolidação da democracia no Brasil.


Andreia Prestes é historiadora, neta de desaparecido político e viveu parte da sua infância em Moçambique, durante o exílio dos seus pais.

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