Democratização do Judiciário é necessária para combater a corrupção, por Almir Felitte

Publicado originalmente no Justificando.


Não é novidade que a cruzada anticorrupção venha ditando o ritmo da política brasileira. Do mesmo modo, o debate sobre os novos rumos do Direito Penal parece ser cada vez mais guiado pela Operação Lava Jato, muito embora, em regra, as leis penais sejam aplicadas a pessoas pobres envolvidas (ou não) em crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas, e não a empresários e políticos que praticam crimes de colarinho branco. O desenrolar desse processo mostra, nos últimos meses, que o discurso populista de caça aos corruptos tem servido de cortina de fumaça para que o Estado e as elites ampliem seus métodos de controle sobre a população.

Nesse sentido, impossível não contestar o projeto original das 10 Medidas Contra a Corrupção, cujo nome esconde o verdadeiro objetivo de realizar uma reforma geral do Processo Penal. Em uma breve análise, é possível compreender que as medidas dão superpoderes ao Ministério Público e ao Judiciário e cerceiam o direito à defesa, através de limitações ao uso do Habeas Corpus e à prescrição, não se limitando apenas aos casos de corrupção. Desse modo, não será surpresa que a nova legislação venha a atingir as camadas mais vulneráveis da população, que hoje já sofrem com o superencarceramento e recorrem sistematicamente ao sistema abarrotado das Defensorias Públicas.

É necessário que se combata a corrupção, mas não com um modelo policialesco e inquisitório falido, nem mesmo com “importações” de um modelo americano, onde a corrupção é legalizada através das atividades de lobistas lá consideradas lícitas. Mais sentido faria que a política de anticorrupção brasileira se pautasse em uma reforma das leis eleitorais e de licitação, na revisão de contratos administrativos e na reestruturação das Controladorias e dos Tribunais de Contas. Vale lembrar que uma das primeiras medidas do Governo Temer foi diminuir a autonomia da CGU.

Mas como no Brasil da crise o fundo do poço nunca parece chegar, a resposta da classe política às 10 Medidas não poderia ser pior. Com motivações no mínimo suspeitas, o projeto de lei anticorrupção foi completamente desfigurado e transformado em uma lei para coibir o abuso de poder do Judiciário, do Ministério Público e das forças policiais. Diante das claras atitudes antidemocráticas destas três instituições quando do outro lado está a camada mais pobre da população, a medida do Congresso seria louvável, não fosse seu conteúdo.

Isso porque a proposta do Congresso Nacional traz, na verdade, uma série de políticas extremamente genéricas que abrem precedentes para a criminalização da atividade judiciária. Tal medida não só reforça a cultura punitivista brasileira, na qual se crê que a tipificação de condutas é solução para qualquer problema social, como pode se tornar uma lei “para inglês ver”, esbarrando no corporativismo do Judiciário, que tem certa aversão a condenar seus pares.

Para a eficaz coibição do abuso de poder por agentes do Estado, deveria haver, sim, um maior controle popular sobre essas instituições. Deve-se criar mecanismos de participação de cidadãos, como as Ouvidorias Externas ou, principalmente, a criação de cargos sujeitos a eleições abertas dentro desses órgãos. Afinal, o Judiciário é o único dos três Poderes que não se sujeita ao voto do povo. Não se trata aqui de defender que juízes sejam eleitos por voto popular, dado o grau técnico de suas atividades e a necessária independência que a função jurisdicional exige em relação ao clamor popular. Mas não há razão para o CNJ e o CNMP, que controlam e fiscalizam Judiciário e Ministério Público, serem constituídos por juízes e promotores indicados pela própria classe.

Fato é que o Poder Judiciário possui uma estrutura completamente antidemocrática e avessa a qualquer participação popular. Sua própria organização, por exemplo, é tratada como tema distante do interesse público, devendo ser regulada de acordo com as regras determinadas em Lei Complementar criada pelo próprio STF. E o Novo Estatuto da Magistratura, em fase de confecção no Supremo para substituir a antiga LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), não parece caminhar no sentido de democratização do Judiciário.

A minuta desse novo Estatuto conserva a distância entre o Judiciário e o povo com a manutenção da ocupação das Ouvidorias judiciais exclusivamente por magistrados. Além disso, cargos de direção nos tribunais continuarão a ser eleitos de forma secreta e interna, incluindo o de Corregedor, responsável pelo controle dos membros da instituição.

O projeto demonstra, ainda, grande corporativismo ao mais do que dobrar as prerrogativas dos magistrados, que hoje são 5, passando para 11. Já na questão remuneratória, o Estatuto é generoso ao prever a gratificação por tempo de serviço, além de garantir 21 tipos de verbas indenizatórias, entre elas, o auxílio moradia e a indenização por serviço de bagagem. Ao mesmo tempo, a responsabilização dos magistrados por descumprimento de deveres não deve sofrer grandes mudanças. Atitudes gravíssimas como o vazamento de informações sigilosas ou a nomeação de parentes para cargos de confiança não receberão a punição máxima de perda do cargo para os magistrados.

Diante dessas informações, o que fica evidente é que as falhas do sistema de justiça brasileiro e a própria corrupção são facilitadas pela falta de participação popular na administração de órgãos estatais. A ausência de mecanismos de participação ativa dos cidadãos resulta na criação de leis absurdas que, quando não protegem seus próprios criadores, não trazem soluções práticas aos reais problemas do país. Além disso, o voto e a participação popular são pilares fundamentais para a construção do Estado verdadeiramente cidadão previsto na Constituição. Nesse sentido, devemos nos perguntar: até quando a Justiça brasileira vai agir como se estivesse acima de seu próprio povo?


Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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