Aniversário do golpe, 1 ano de retirada de direitos no campo, por Luiza Dulci

Publicado originalmente no Brasil Debate.


A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi decretada pela MP 726, publicada no Diário Oficial da União extraordinário da tarde de 12 de maio de 2016, dia do afastamento da Presidenta Dilma e da posse de Michel Temer, ainda como interino. Sua estrutura e atribuições foram então erraticamente alocadas na Esplanada, resultando no imediato enfraquecimento das políticas públicas federais agrícolas e agrárias voltadas à agricultura familiar e à reforma agrária.

Ao longo do último ano, as ofensivas contra os direitos das populações do campo, das florestas e das águas se multiplicaram em ritmo avassalador. Trabalhadores rurais são alvo de todas as contrarreformas propostas pelo governo e/ou pelo parlamento: I) extinção da Ouvidoria Agrária Nacional; II) CPI Funai/Incra; III) MP 759; IV) terceirização; V) desmonte da previdência; VI) contrarreforma trabalhista e o PL trabalhista sobre o trabalhador rural.

Aliadas à criminalização dos movimentos sociais, tais medidas são verdadeiros incentivos à perseguição contra trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas. Seus efeitos já estão sendo sentidos. Somente em abril registrou-se que 9 agricultores foram massacrados no Mato Grosso; 1 agricultor foi assassinado e outros 3 foram feridos em Minas Gerais; 2 foram baleados em Pernambuco; e 10 índios foram feridos no Maranhão.

Ainda em novembro de 2016, os movimentos sociais e trabalhadores rurais haviam perdido um importante aliado na luta contra a violência, a Ouvidora Agrária Nacional. Criada ainda no governo FHC, a Ouvidoria era vinculada ao MDA e destinava-se à prevenção e à mediação dos conflitos no campo. Seu funcionamento vinha descontínuo desde o fim do Ministério e em novembro de 2016 foram exonerados os servidores que compunham sua equipe.

A CPI da Funai e do Incra foi instaurada em outubro de 2015, voltada à investigação dos processos de demarcação de terras indígenas e quilombolas. O relatório da Comissão, de maio de 2017, indiciou cerca de 120 pessoas, dentre elas antropólogos e professores universitários; procuradores federais; advogados da União; membros da Igreja católica, em especial do Conselho Indigenista Missionário (CIMI); servidores da Funai e do Incra.

As denúncias perpassam contestações a laudos antropológicos; verificação de ‘indícios de condutas antijurídicas’ por parte de procuradores; invasões de terras com apoio da Igreja/CIMI; repasses de recursos ilícitos a movimentos sociais e por aí vai. O objetivo não é outro senão a deslegitimação dos órgãos de demarcação de terras do país.

A MP 759, de 22 dezembro de 2016, trata da regularização fundiária urbana e rural. Dentre outras ações, ela extingue os critérios legais de interesse público e social que balizavam a venda e a doação de imóveis da União, desrespeitando, portanto, o princípio constitucional da função social da terra; amplia o prazo para “regularizar” invasões e grilagens, tolerando inclusive o desmatamento como prova de ocupação; permite a comercialização dos lotes da reforma agrária – medida essa que deve gerar flutuações de preços com forte potencial gentrificador no campo; desonera o Incra de obrigações para com as famílias assentadas; e transfere a seleção das famílias da reforma agrária para os municípios (municipalização da reforma agrária), enfraquecendo assim os movimentos sociais e submetendo as populações rurais às pressões das oligarquias agrárias locais.

O desmonte da Previdência (PEC 287/16) evidencia dois objetivos: enfraquecer a função distributiva desempenhada pelo sistema previdenciário; e aquecer os mercados de previdência privada. Em relação aos trabalhadores rurais, vale lembrar que a Previdência não data da CLT, mas do Funrural (1971), e somente com a Constituição de 1988 veio a ser equiparada, em benefícios, à previdência urbana.

As medidas da contrarreforma visam a extinguir as particularidades da contribuição rural, que atualmente é familiar e respeita a sazonalidade das safras, incidindo em 2,6% do valor comercializado da produção. Com as alterações propostas, a contribuição rural passaria a ser convencional e individual, em até 5% do salário mínimo, isto é, necessariamente mensal e não mais familiar. Somadas ao aumento do tempo de contribuição, tais medidas inviabilizam na prática as aposentadorias rurais, impactando diretamente mais de 9 milhões de famílias agricultoras, a economia dos pequenos municípios e a produção de alimentos do país.

A aprovação da Lei nº. 13.429/2017, que libera a terceirização das atividades fins, impacta os trabalhadores das cidades e do campo. A contratação sazonal, típica do setor sucroalcooleiro, é prato cheio para a terceirização, especialmente nas áreas de fronteira. Os efeitos já são diagnosticados: aumento de acidentes, piora nas condições de trabalho e redução de salários.

Por fim, mas não menos devastador, o PL 6.442/2016, em discussão no Congresso, referente à contrarreforma trabalhista rural. Ele traz 166 artigos, com alterações não incluídas a tempo no relatório da reforma trabalhista aprovado no último 26 de abril.

Destes, as mais danosas são I) a prevalência do negociado pelo legislado; II) a possibilidade de pagamento em qualquer espécie, incluindo-se moradia e alimentação; III) a ampliação da jornada para até 12 horas; IV) a substituição do repouso semanal por período contínuo, com até 18 dias de trabalho sem descanso; V) a autorização de trabalho aos domingos e feriados; VI) a venda integral das férias de trabalhadores que vivem no local de trabalho; VII) o fim do pagamento de horas quando no deslocamento em veículos da empresa até o local de trabalho; VIII) a instituição de jornadas diárias intermitentes, permitindo o trabalho em variados horários; IX) a revogação de normas do Ministério do Trabalho relativas à oferta de primeiros socorros nos locais de trabalho e aos exames demissionais; X) o estabelecimento da dupla visita de fiscalização do Ministério do Trabalho, sendo a primeira para aviso e a segunda para a efetiva autuação; xi) a exclusão dos Ministérios da Saúde e do Trabalho na regulação da manipulação de agrotóxicos, cabendo a fixação das normas apenas ao Ministério da Agricultura; XII) a dispensa de infraestrutura como banheiros e locais adequados de alimentação nas frentes com até 20 trabalhadores; e XIII) a ampliação dos contratos de safra (temporários) de forma sucessiva, inclusive para a pecuária.

Todas essas medidas, que têm sido apresentadas como reformas modernizantes, são, ao contrário, contrarreformas às transformações democráticas e civilizatórias conquistadas nas últimas décadas. O que se vê é um enorme contraste entre a fragilidade do governo Temer e a força da agenda que vem sendo implementada. A convergência de interesses privados nacionais e internacionais é cada vez maior – haja vista a proposta de liberalização da venda de terras para estrangeiros. É também cada vez mais coesa e objetiva a aliança de interesses entre mercado e parlamento, que têm explorado ao máximo a conjuntura de instabilidade política do país para pressionar pela aprovação de medidas até há pouco impensáveis.


Luiza Dulci é economista (UFMG), mestre em sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ).

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