Análise do curtíssimo prazo após a repressão de 24 de maio de 2017, por Bruno Lima Rocha

Introdução


O Brasil está em transe político, vivendo com intensidade cada hora de noticiário e cobertura da Operação Lava-Jato a partir da mudança de alvo, ou da exposição do presidente Michel Temer (MT) e seus assessores diretos como possíveis envolvidos na trama de intermediação por serviços prestados no exercício de função pública. A Procuradoria Geral da República (PGR) e sua base operacional de Brasília tomou a frente dos pares de Curitiba e num lance ousado, emparedou o mandatário com baixíssima legitimidade. A conta é simples: pouca legitimidade, um programa anti-popular não abalizado pelas urnas e agora o fiapo de legalidade se esvaindo. Do outro lado, as baterias investigativas da Polícia Federal (PF) sob coordenação direta da Força Tarefa e os acordos de convênio e cooperação com distintos países, mas com destaque para os convênios de EUA e Suíça (no típico "follow the money", siga o dinheiro).

O país em uma montanha-russa


Ao contrário da expectativa gerada com os vazamentos exclusivos para o jornal O Globo através do colunista Lauro Jardim, o governo Temer resistiu e resiste. Sua tábua de salvação - ou o prolongamento da sobrevida por aparelhos - é a capacidade de aglutinar a base parlamentar, segurando a cúpula das oligarquias políticas e conter a debandada geral. Assim, o residente do Jaburu e seus assessores diretos evitam o comportamento de manada sendo este substituído por uma saída a conta gotas (ao menos dos parlamentares). As defecções se dão a partir da iniciativa acusatória da Lava-Jato (via Brasília) e não por um automático realinhamento.

Embora analistas como este que escreve quase enlouqueçam a cada dois ou três dias, a reação majoritária - de quem está na sobrevivência e desorganizado em termos políticos ou reivindicativos - é de estarrecimento. A nova direita também minguou diante da propaganda hipócrita deles mesmos; a indignação da UDN pós-moderna transformou-se em um "fora todos" cibernético e sem expressão nas ruas. Quem ganhou a política em termos públicos, marcando um avanço já agendado de luta geral cumprindo o calendário que começou com a Greve Geral de 28 de abril de 2017, foram as distintas agrupações de centro-esquerda e esquerda, eleitorais ou não, com ou sem vínculos ao governo deposto. E sobre esta aglutinação, inchada pelas sete centrais sindicais em luta comum contra a regressão das leis do trabalho e da seguridade social previdenciária, se abateu uma brutal repressão na quarta-feira dia 24 de maio de 2017. Nesta fatídica tarde, o Estado chegou a flertar por cerca de 12 horas com a tentação autoritária do governo Temer, entusiasticamente respaldada pelo ministro da Defesa Raul Jungmann e o titular do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) general Sérgio Westphalen Etchegoyen. Durou pouco, mas foram abertas as porteiras do inferno.

O nível repressivo e os conflitos políticos vêm em um crescente desde as jornadas de março, abril, maio e junho de 2013, mas agora alcançaram um patamar de descontrole dos partidos eleitorais e centrais sindicais sobre suas bases organizadas. A tarde de Brasília, no longo trajeto do Plano Piloto, entre a Rodoviária e a Praça dos Três Poderes, assistiu a um tipo de conflito com uma intensidade típica dos países latino-americanos vizinhos. Mas, ao contrário dos países hermanos, há pouca inserção social da revolta.

Reconheço que a penetração deste Brasil em transe é proporcional ao envolvimento direto com a política no país. 

Logo, a tensão não penetra profundamente nas classes sociais da base da pirâmide e suas respectivas regionalidades e representações étnico-culturais. Em outras palavras, o "transe político" é da metade da pirâmide para cima. Não mexe intensamente com as camadas populares embora atinja diretamente seus interesses mais evidentes. O pacote de leis regressivas modifica a expectativa mais evidente de seguridade social e alguma mobilidade, em função dos riscos reais para a estabilidade do servidor público. Mas, a carência organizativa e a babel simbólica localizada nos territórios das periferias brasileiras faz da massa mais expectadora do que protagonista....

O conflito sócio-político e o decreto de Garantia da Lei e da Ordem


Não tem como esquivar ou evadir o tema do conflito do dia nacional de luta, ou o Ocupa Brasília. Tampouco há termo de comparação entre o emprego da Defesa por Dilma Rousseff e o executado por Michel Temer nesta tarde de 24 de maio. A lambança começou com um pedido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) por Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ele, Maia, pediu Garantias e Temer, aproveitando da situação, virou o fio. Na origem do conflito, uma medida absurda onde a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), a pedido do Congresso - segundo o que ouvi em redes nacionais, alguns canais de TV e algumas emissoras de rádio - teria feito um gigantesco anel de segurança próximo da Praça dos Três Poderes e exigido revista individual dos manifestantes. Como é possível revistar mais de 150 mil em espaço aberto - não é um estádio com entradas controladas, não se trata de um espetáculo com hora programada para começar - e não gerar uma sensação de impedimento do ato, de proibição da jornada de luta?! É simplesmente impossível. 

Vi as imagens do primeiro cordão sendo rompido e pareceu que o confronto ia parar naquele momento. Mas, há que ser dito, o absurdo aparato repressivo - com helicópteros atacando a massa composta por sete centrais sindicais, duas frentes político-sociais e dezenas de agrupações políticas de centro-esquerda e esquerda - teve uma resposta tão contundente quanto, incluindo uma já aqui citada perda parcial de controle das bases.

Após o decreto de Garantia da Lei e da Ordem, baseado no Artigo 142 - de defesa interna - e o pronunciamento da pasta da Defesa referendada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) - simplesmente houve um descompasso dos tempos do protesto. A repressão violentíssima - incluindo uso de munição letal flagrado em vídeos de portais profissionais de notícias - foi empregada pelo Governo do Distrito Federal (GDF), com o governador Rodrigo Rollemberg (PSB) à frente. Rollemberg, cuja PM bateu à vontade, foi surpreendido com o decreto. A última chuva de bombas já caiu sobre o ato na dispersão no rumo da Rodoviária; ou seja, já distante dos Três Poderes e da Esplanada.

O decreto de GLO veio acompanhado de um profundo mal-estar no país. Esta sensação foi quase ecumênica, ao menos nas instituições responsáveis, mesmo naquelas conservadoras. 
Também houve uma tentativa de acusar aos analistas de esquerda de haverem silenciado quando Dilma executou decretos semelhantes. Tampouco é verdade. Ninguém silenciou nada, eu menos ainda. Dilma aprovou no segundo mandato uma absurda legislação "anti-terrorista" de conceito aberto e semelhante a lei chilena - onde há a criminalização do protesto de rua (sendo que os dois governos Bachelet não a alteraram). Ainda nos últimos meses do segundo governo Lula (com Dilma já eleita), houve o emprego das Forças Armadas na tomada da Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro (medida entusiasticamente saudada pelo então governador Sérgio Cabral Filho com direito a cobertura ao vivo das redes de TV Globo e Record). Um decreto semelhante foi assinado para cercar o perímetro da área onde ocorreu o Leilão do Campo de Libras. Ainda assim, há uma diferença de emprego.

Há que se reconhecer que esse decreto de GLO passou do limite. O presidente Michel Temer cedeu a segurança do DF para as Forças Armadas por uma semana (na redação original seria de 24 a 31 de maio de 2017). No texto oficial, não havia restrição ou especificações da atuação dos militares profissionais. Menos de doze horas depois, com a ponderada reprovação do general Eduardo Villas Bôas (comandante em chefe do Exército Brasileiro), Temer revogou-o. Foi uma gigantesca lambança institucional e abriu um temível precedente. Nada havia sido sequer combinado ou comunicado ao governador do DF; há uma diferença substantiva entre o emprego da Força Nacional (Ministério da Justiça) e das FFAA (Ministério da Defesa). Ceder a segurança do DF para o GSI é a ponta de um novelo que se for desenrolado, tem um final imponderável e cuja memória histórica é terrível.

Encruzilhadas e teoria dos jogos simultâneos; apontando conclusões


O país se vê diante de uma mescla de encruzilhadas e teoria dos jogos. Encruzilhadas no plural porque os caminhos da política, e em especial das oligarquias profissionais, estão abertos e os frágeis consensos que amarraram a troca de regime e a posse do ex-vice de Dilma Rousseff se desfizeram. 

Os jogos de rodadas simultâneas e os blocos de poder rachados fazem da política no curtíssimo prazo uma piscina de incógnitas. 

O último consenso restante por direita é a aprovação do pacote de leis regressivas onde o Brasil seria reposicionado. Internamente, na superexploração de mão de obra (esta é a bandeira, a dimensão substantiva do empresariado brasileiro que apoiou o golpe). No plano externo, a subordinação geopolítica para os EUA e a dilapidação das cadeias produtivas nacionais (incluindo as transnacionalizadas) por capitais de diversos países (com evidente aumento de presença predatória da China). 

O dissenso interno da direita se dá porque a Operação Lava-Jato está totalmente "fora de controle" e o epicentro de Curitiba mostrou-se de um perigoso udenismo infantil e ideologicamente pró-EUA; mas com poder ínfimo diante da coordenação de Brasília e a capacidade operacional vinda da PGR. 

Podemos comparar a Operação Lava-Jato como a Mãos Limpas brasileira e a consequente subordinação tanto do sistema político como do modelo de crescimento econômico dos campeões nacionais. 

Os caminhos imediatos das oligarquias colocam a Lula no miolo do debate e na possibilidade de um acórdão de pacificação do sistema político sobrevivente. Me refiro a uma possível - e até agora negada - conversa de aproximação do PSDB e do PT, ou especificamente, de FHC com Lula. Essa é a única via para uma eleição indireta sem um conflito maior dos grandes partidos. 

Outra via, mais difícil de aprovação no Congresso mas com apelo popular direto é aprovar uma emenda de antecipação das eleições chamando por Diretas Já. Sinceramente não me iludo com pleito direto como elemento de mudança, mas ao menos conseguiria deslegitimar de vez as oligarquias profissionais em torno do governo Temer. 

Entendo que a única garantia da maioria, agora sim da classe trabalhadora assalariada, de quem vive no campo e da base da pirâmide social metropolitana é amarrar junto com o movimento das Diretas algum compromisso de mini-constituinte exclusiva e reforma política com elementos de democracia direta e participativa. Somente um exercício direto do poder de veto, como estava em pauta em 2013, tanto antes e durante as jornadas de protesto, pode garantir algum protagonismo e a própria legitimidade do mecanismo democrático. Reconheço que o tema é ardente e urge o debate. Em futuras séries de postagens vamos mergulhar na questão das formas de consulta direta em plena democracia burguesa (liberal, indireta, representativa, estelionatária, eleitoreira, delegativa e de auto-engano").


Bruno Lima Rocha é cientista político e professor de relações internacionais (www.estrategiaeanalise.com.br / blimarocha@gmail.com para e-mail e Facebook).

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