A delação premiada no Brasil - ontem e hoje: razões jurídicas, éticas e constitucionais pelas quais a repudiamos, por Rômulo de Andrade Moreira


No ano de 1990, mais precisamente no dia 26 de julho, publicava-se no Diário Oficial da União o texto de uma nova lei, vinda como uma resposta aos anseios populares de diminuição da violência urbana. Sancionada pelo então Presidente da República tentava em seus treze artigos (dois destes vetados) resolver por intermédio do Direito Penal um problema que definitivamente não é dele.[1] Exasperaram penas de determinados crimes, impossibilitando-se, também, a concessão de benefícios aos sentenciados, tais como a anistia, a graça e o indulto, além de proibir o gozo de direitos subjetivos individuais (mesmo estando presentes os requisitos específicos para a sua fruição) como a fiança e a liberdade provisória, tudo a atender “ao contagiante clima psicológico de pavor criado pelos meios de comunicação social e aos interesses imediatos de extratos sociais privilegiados”, como acentuou Alberto Silva Franco.[2]

Estamos a falar da Lei nº. 8.072/90 que dispõe “sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o., XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências”, cujos defeitos não iremos aqui abordar, pois não é este o nosso escopo no momento.[3]

Ali está a gênese da delação premiada no Brasil (ou, na expressão feliz de José Carlos Dias, extorsão premiada), como causa obrigatória de diminuição da pena em favor de autor, coautor ou partícipe nos crimes de extorsão mediante sequestro e associação criminosa (este última quando a societas sceleris tiver sido formada com o intuito de praticar os crimes considerados hediondos e outros a eles assemelhados).

Mais tarde, em 03 de maio do ano de 1995 foi sancionada a Lei nº. 9.034/95, já revogada, dispondo “sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.” Tal como a anterior esta lei, criada para definir e regular “meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando“, também considerava causa compulsória de diminuição da pena a delação de um dos participantes na organização criminosa.

Aliás, na lei dos crimes hediondos o legislador foi mais explícito e utilizou o verbo denunciar como sinônimo de delação, enquanto que nesta segunda norma preferiu a expressão colaboração espontânea, como que para escamotear a vergonhosa presença da traição premiada em um diploma legal.

Depois, no dia 19 de julho de 1995 foi sancionada a Lei nº. 9.080/95, prevendo, igualmente, a delação como prêmio ao coautor ou partícipe de crime cometido contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo quando cometidos em quadrilha ou coautoria.  Agora se preferiu a expressão confissão espontânea, o que resulta no mesmo.

Já no ano de 1998, entrou em vigor a Lei nº. 9.613/98, a chamada lei de “lavagem de dinheiro”, disciplinando, outrossim, a diminuição de pena para o “colaborador espontâneo”.

Temos, ainda, como exemplo a Lei nº. 9.807/99, de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, que também prevê a delação premiada, além da Lei nº. 8.137/90 (art. 16, parágrafo único). Faz-se referência também à Lei nº. 11.343/06 (a Lei de Drogas), que no art. 41 dispõe de forma semelhante e ao art. 159, § 4º. do Código Penal.

Também o art. 86 da Lei nº. 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, estabelece que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica poderá celebrar acordo de leniência com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: a identificação dos demais envolvidos na infração e a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. Tal acordo, segundo o art. 87 da mesma lei, nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº. 8.137/90, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº. 8.666/93, e os tipificados no art. 288 do Código Penal, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência, mitigando, portanto, a regra da obrigatoriedade da ação penal. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos referidos crimes. 

Por fim, veja-se o art. 4º. da Lei nº. 12.850/13 (Organização Criminosa) que prevê também uma exceção à regra da obrigatoriedade da ação penal pública quando houver a delação (§ 4º.). Segundo esta lei, os "prêmios" de um acordo de delação podem ir desde a diminuição da pena até o perdão judicial. Cabe ao Magistrado decidir qual medida deve ser aplicada ao caso. Em relação a essa discricionariedade, o art. 4º, parágrafo primeiro, da Lei nº. 12.850 disciplina que o Magistrado deve levar em consideração “a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração”. Qualquer que seja a opção do Juiz, entretanto, essa decisão deverá ser fundamentada. Assim, por exemplo, no julgamento do Habeas Corpus nº. 97.509, também na Quinta Turma, o Colegiado entendeu que “ofende o princípio da motivação, consagrado no artigo 93, IX, da Constituição Federal, a fixação da minorante da delação premiada em patamar mínimo sem a devida fundamentação, ainda que reconhecida pelo juízo monocrático a relevante colaboração do paciente na instrução probatória e na determinação dos autores do fato delituoso”.

No julgamento do Habeas Corpus  nº.  90.962, realizado pela 6ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, consignou-se o seguinte conceito:

“O instituto da delação premiada consiste em ato do acusado que, admitindo a participação no delito, fornece às autoridades informações eficazes, capazes de contribuir para a resolução do crime.” Neste julgamento, o Colegiado firmou o entendimento que não basta o investigado confessar a sua participação no crime. Ainda que conte detalhes de toda a atividade ilícita e incrimine seus comparsas, ele só fará jus aos benefícios da delação premiada se suas informações forem efetivamente eficazes para a resolução do delito. No caso apreciado, o Colegiado entendeu não haver nos autos nenhuma informação que atestasse que a contribuição do paciente foi utilizada para fundamentar a condenação dos outros envolvidos. Assim, foi reconhecida apenas a atenuante da confissão espontânea.

Pois bem.

Diríamos que, “no espectro do recrudescimento da legislação processual penal, visto como um reflexo da expansão tresloucada da cultura da emergência, ganhou vigor a figura da delação premiada, sobretudo com a sua propagação no processo criminal italiano e estadunidense.”[4] Isso é fato!

Segundo Damásio de Jesus, “a origem da "delação premiada" no Direito brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. O Título VI do "Código Filipino", que definia o crime de "Lesa Majestade", tratava da "delação premiada" no item 12; o Título CXVI, por sua vez, cuidava especificamente do tema, sob a rubrica "Como se perdoará aos malfeitores que derem outros á prisão" e tinha abrangência, inclusive, para premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios.”[5]

Aliás, já na Inquisição, “um filho delator não incorre nas penas fulminadas por direito contra os filhos dos hereges e este é o prêmio pela sua delação. In proemium delationis.”[6]

A delação premiada, para além de outras questões adiante suscitadas, comporta uma análise acerca de sua compatibilidade ética com o Estado Democrático de Direito. Sem dúvidas, “o tema da delação premiada desafia diversos questionamentos: desde sua conveniência político-criminal, passando por sua apreciação sob o ponto de vista da quebra da ética ínsita ao proceder dentro de um Estado Democrático de Direito, ou pelas questões relativas ao seu valor probatório, até sua natureza jurídico-penal, sua função processual penal e as implicações daí decorrentes para o postulado do devido processo legal em nosso direito positivo.”[7] Como diz Hassemer, “não é permitido ao Estado utilizar os meios empregados pelos criminosos, se não quer perder, por razões simbólicas e práticas, a sua superioridade moral.”[8]

Também a propósito, veja-se a opinião de João Baptista Herkenhoff: “A meu ver, a delação premiada associa criminosos e autoridades, num pacto macabro. De um lado, esse expediente pode revelar tessituras reais do mundo do crime. Numa outra vertente, a delação que emerge do mundo do crime, quando falsa, pode enredar, como vítimas, justamente aquelas pessoas que estejam incomodando ou combatendo o crime. Na maioria das situações, creio que o uso da delação premiada tem pequena eficácia, uma vez que a prova relevante, no Direito Penal moderno, é a prova pericial, técnica, científica, e não a prova testemunhal e muito menos o testemunho pouco confiável de pessoas condenadas pela Justiça. Ao premiar a delação, o Estado eleva ao grau de virtude a traição. Em pesquisa sócio-jurídica que realizamos, publicada em livro, constatei que, entre os presos, o companheirismo e a solidariedade granjeiam respeito, enquanto a delação é considerada uma conduta abjeta (Crime, Tratamento sem Prisão, Livraria do Advogado Editora, página 98). Então, é de se perguntar: Pode o Estado ter menos ética do que os cidadãos que o Estado encarcera? Pode o Estado barganhar vantagens para o preso em troca de atitudes que o degradam, que o violentam, e alcançam, de soslaio, a autoridade estatal?”[9]

Se considerarmos que a normatividade de um Estado Democrático de Direito é o último bastião do seu povo (e não o Poder Judiciário, como se diz, que cumpre apenas observá-la, sem ativismos e decisionismos populistas), no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressão de preceitos éticos intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo/constitucional.

Obviamente que poderemos aqui estar entrando em terreno movediço, é dizer, o limite entre o Direito e a Moral. Mas não é o caso. São conceitos distintos. Estamos falando de Direito e Ética. É o caso!

Ademais, a traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, eticamente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a opinião pública (ou publicada) ou satisfazer aos setores economicamente privilegiados da sociedade.

Não podemos arriscarmo-nos ao perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale, quando afirmou que o “Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a.“[10]         Como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura (o que não o diminui, por evidente, muito ao contrário) ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios/valores, diante dessa permissividade aética ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo?

Como afirma Paulo Cláudio Tovo, “a delação premiada de comparsa nos parece uma violação ética com perigosas consequências no mundo do crime (...). Este não é o verdadeiro caminho da Justiça, importa, isto sim, na confissão que o Estado não tem capacidade científica de chegar à verdade.”[11]

É certo que em outras legislações, inclusive em países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a americana), a figura da delatio já existe há algum tempo (diga-se de passagem, assegurando-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), entre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois o que é bom para eles, não é, necessariamente bom para nós. Aliás, esta coisa odiosa de copiarmos o "que vem de fora", "só porque vem de fora", assusta-nos, principalmente quando são institutos e categorias importados de sistemas jurídicos completamente distintos, como o norte-americano.

Aliás, Mangabeira Unger, afirma que a "a nossa academia está vidrada nas formas de idealização sistemática do direito que importamos dos Estados Unidos e da Alemanha. Então, ao invés de ser solução, faz parte do problema. É a realidade prática, o imperativo da transformação e do desenvolvimento que impõe essa agenda. Então, pode vir da prática o desafio e aí, se bate na porta da academia, talvez interrompa os devaneios da idealização sistemática que prevalece na elite do pensamento jurídico e constitucional brasileiro. (...) O pensamento jurídico brasileiro, em seu conjunto, rendeu-se a onda da racionalização idealizante que prevalece nas culturas jurídicas mais influentes do Atlântico Norte, sobretudo a dos Estados Unidos e da Alemanha. (...) O que é a vida, né, é a ideia do pensamento, do sonho, interagindo com a experiência. A experiência traz em sua tarefa o enigma. A experiência revela a superficialidade das nossas ideias e nos surpreendem. Qual é o objetivo maior? O bem supremo é a vida, a vitalidade. O inimigo são os preconceitos, as abstrações mortas, as práticas dogmáticas. O que eu estou pregando, o tema central da nossa conversa, é o triunfo da vida sobre o dogma e sobre as prisões em que nós nos acorrentamos voluntariamente. O direito pensado corretamente é a única alternativa à servidão voluntária."[12]

Tão somente para se argumentar, pode-se dizer que o fim visado pela delação (o interesse público, a segurança pública), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal afirmação é de toda aética, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc... Chega de eficiência no Processo Penal!

O próprio Rui Barbosa já afirmava "não se dever combater um exagero" (no caso a violência desenfreada) "com um absurdo" (a delação premiada). Não esqueçamos a lição de Hegel, para quem, a ética é filosofia do Direito, entre outras coisas porque o Estado é a expressão máxima de eticidade, ou seja, a substancialização da moralidade nas instituições históricas que a garantem.[13]

Em uma de suas crônicas,  João Ubaldo Ribeiro, após lembrar que as expressões “dedo-duro” e “dedurismo” surgiram ou generalizaram-se após o golpe militar de 1964, escreveu:

“Os próprios militares e policiais encarregados dos inquéritos tinham desprezo pelos dedos-duros – como, imagino, todo mundo tem, a não ser, possivelmente, eles mesmos. E, superado aquele clima terrível seria de se esperar que algo tão universalmente rejeitado, epítome da deslealdade, do oportunismo e da falta de caráter, também se juntasse a um passado que ninguém, ou quase ninguém, quer reviver. Mas não. O dedurismo permanece vivo e atuante, ameaçando impor traços cada vez mais policialescos à nossa sociedade.” E, conclui: “Sei que as intenções dos autores da idéia são boas, mas sei também que vêm do desespero e da impotência e que terminam por ajudar a compor o quadro lamentável em que vivemos, pois o buraco é bem, mas bem mesmo, mais embaixo.”[14]

Óbvio que o Sistema Jurídico deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. A Polícia e o Ministério Público, por exemplo, têm a obrigação de, por outros meios (menos eficientes, é bem verdade...), valer-se de meios efetivos para a consecução satisfatória de suas finalidades (que não são as mesmas do Sistema Social, Econômico e Político, diga-se de passagem), não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator como expediente facilitador da investigação policial e da efetividade da punição.

Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano”, que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária.                                                       

Além da atenuante referida há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede voluntariamente que o resultado da execução do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15 do Código Penal).

Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinqüente, reduzindo-lhe a pena.

Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse “menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as conseqüências”, como já acentuou o mestre Aníbal Bruno.[15] Não necessita, portanto, o legislador, em lei extravagante, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena. Também por isso é inoportuno.

Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do Poder e não por falta de leis repressivas, edita-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever. Incita-se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis; que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda de Calabar.

Aliás, como bem lembrado por Sérgio Rodas, "Autos da Devassa", foi uma delação premiada a responsável pela morte de Tiradentes, há 223 anos:

"No final do século 18, os mineiros estavam descontentes com a Coroa Portuguesa. Em 1785, a rainha d. Maria I proibiu que fossem produzidos na colônia manufaturas de ouro, prata, seda, algodão, linho e lã. Quatro anos depois, a metrópole resolveu compensar a queda na arrecadação — resultado do declínio econômico de Minas Gerais — instituindo uma forma mais eficiente de recolher o Quinto, imposto que garantia aos portugueses 20% de todo minério extraído até o teto de cem arrobas anuais (1,5 tonelada). Conhecida como “derrama”, a prática consistia em confiscar bens e objetos de ouro para garantir que a meta tributária não seria descumprida.Essas medidas inflamaram a elite da época. Inspirados pela independência dos Estados Unidos da América e pelo movimento intelectual que culminaria na Revolução Francesa, um grupo de bacharéis, militares, comerciantes e fazendeiros passou a se reunir rotineiramente nas casas dos poetas Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, que também era desembargador e foi apontado como o líder do movimento. A principal ideia deles era se livrar do domínio lusitano e tornar Minas Gerais um país independente, que seria organizado sob a forma de república.Quando soube do movimento, Silvério dos Reis vislumbrou uma oportunidade de obter os benefícios do parágrafo 11 do Título VI das Ordenações Filipinas (lei vigente na metrópole e em todas as colônias na época) e se livrar das pesadas dívidas que possuía junto à Coroa Portuguesa. De acordo com o livro O Processo de Tiradentes, escrito pelos advogados Ricardo Tosto e Paulo Guilherme Mendonça Lopes e editado pela ConJur, o dispositivo “previa não só o perdão, mas também favores do Reino para quem primeiro delatasse a existência de atos de crime de Lesa Majestade”. Este delito, tipificado no Título VI da mesma norma, era aplicado em caso de “traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu real Estado”.Visando à sua redenção, Silvério dos Reis resolveu abrir o bico – mas por livre e espontânea vontade, e não devido à coação de uma prisão preventiva. Ele então procurou o visconde de Barbacena e governador da Capitania de Minas Gerais na época, Luís Antônio Furtado de Mendonça, e contou tudo o que sabia. Depois de um mês, o nobre pediu que o dedo-duro formalizasse a denúncia por escrito, para que ela fosse enviada ao vice-rei, D. Luis de Vasconcelos.Na carta, Silvério dos Reis relatou que, certa vez, fora convidado a participar da conjuração pelo sargento-mor Luís Vaz. Este, segundo o delator, contara que Tomás Antônio Gonzaga liderava um grupo que iria mandar mais de 460 “pés-rapados”, “que haviam de vir armados de espingardas e facões, e que não haviam de vir juntos para não causar desconfiança; e que estivessem dispersos, porém perto da Vila Rica, e prontos à primeira voz”.Prontos para quê? Para fazer cabeças rolarem. E “a primeira cabeça que se havia de cortar era a de V. Excia. [visconde de Barbacena] e depois, pegando-lhe pelos cabelos, se havia de fazer uma fala ao povo que já estava escrita pelo dito Gonzaga; e para sossegar o dito povo se havia levantar os tributos”. E o suposto massacre não terminaria aí: os conjurados também decapitariam o ouvidor de Vila Rica, Pedro José de Araújo, o escrivão da Junta, Carlos José da Silva e o ajudante de Ordens Antônio Xavier – e talvez o intendente – “porque estes haviam de seguir o partido de V. Excia. [visconde de Barbacena]”.Conforme contou Silvério dos Reis, os inconfidentes o convidaram para participar do levante por saberem que ele devia dinheiro para a Coroa Portuguesa. Porém, logo deixaram claro que, se ele divulgasse os planos deles às autoridades, seria assassinado.O vigário da Vila de São José, Carlos Correia, disse ao delator que, para a conjuração, “trabalhava fortemente o alferes pago Joaquim José”, o qual já tinha vários seguidores nessa cidade e planejava angariar mais sujeitos no Rio de Janeiro, “pois o seu intento era também cortar a cabeça do Senhor Vice-Rei”. O relato do padre foi posteriormente confirmado por Silvério dos Reis quando ele encontrou Tiradentes, que lhe “fez certo o seu intento e do ânimo que levava”.Após ler a denúncia, o vice-rei determinou a abertura da devassa – uma mistura de inquérito criminal e processo judicial – para apuração dos fatos e julgamento dos culpados. Ao final, os juízes da Alçada culparam todos os inconfidentes pelo crime de Lesa Majestade.No entanto, só Tiradentes foi condenado à morte. Uns dizem que foi por ele ser o único réu confesso. Outros, por ser o mais pobre dos acusados. Controvérsias à parte, o fato é que a rainha d. Maria I converteu a pena dos demais conjurados em exílio para a África.Em 21 de abril de 1792, Tiradentes foi enforcado em praça pública no Rio de Janeiro. Depois de morto, seu corpo foi esquartejado.Atualmente, o delator que colaborar com as investigações e tiver comprovadas as informações que prestou pode ter a pena reduzida em dois terços, substituída por penas restritivas de direitos, como prestação de serviços à comunidade, ou até receber perdão judicial.Contudo, no Brasil Colônia, dedurar criminosos valia (ainda) mais a pena. Por ter denunciado os agitadores da Inconfidência Mineira, Silvério dos Reis recebeu, em Lisboa, o foro de fidalgo da Casa Real e o hábito da Ordem de Cristo. Além disso, suas dívidas com a Coroa Portuguesa teriam sido perdoadas, e ele teria recebido ouro, uma mansão e o cargo público de tesoureiro da bula de Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro.A partir daí, Silvério dos Reis adicionou “Joaquim” a seu nome e se mudou para Campos dos Goytacazes, que fazia parte da Capitania de São Tomé e hoje integra o estado do Rio de Janeiro. Lá, o novo-rico, junto com seu sogro, passou a cobrar foros indevidos dos locais e expulsar das terras os que não aceitavam a extorsão, de acordo com o livro O Processo de Tiradentes.Empolgado pelas recompensas que recebeu por denunciar os conjurados, mas querendo ganhar mais prêmios da metrópole, Silvério dos Reis planejou uma nova delação premiada, dessa vez contra o alferes Joaquim Vicente dos Reis, que combatia as arbitrariedades dele e de seu sogro na região. Como não havia crime a denunciar, o chantagista inventou uma denúncia e acusou o militar ter aberto duas cartas lacradas endereçadas ao vice-rei. Para corroborar sua tese, ele apresentou duas testemunhas, com quem havia previamente combinado o teor de seu depoimento.Porém, uma dela falou mais do que devia, gerando contradição com o depoimento de Silvério dos Reis. Por essa razão, a devassa foi arquivada, sepultando seu plano de obter mais recompensas. Pior ainda: os moradores de Campos dos Goytacazes denunciaram à Coroa Portuguesa os abusos de Silvério Reis e seu sogro. Embora o processo não tenha sido concluído, a ofensiva dos locais acabou forçando o delator dos inconfidentes a se mudar para a Baixada Fluminense.Silvério dos Reis morreu em 1819, no Maranhão, não tão rico quanto gostaria, mas certamente com melhores condições de vida do que as que tinha antes de delatar Tiradentes e os demais líderes da Inconfidência Mineira."[16]

Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta-se, que não estamos a fazer comparações, pois sequer são neste caso cabíveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um sequestrador, um corrupto, um latrocida ou um estuprador.

Do jeito que as coisas estão indo, far-se-á como um professor pernambucano o fez, no "governo" do Marechal Humberto Castello Branco: instituiu uma agenda para delatores, "informando que aceitaria denúncias às segundas, quartas e sextas, das oito ao meio-dia."[17]

Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida. Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofre forte contestação; de toda maneira, valhemo-nos da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (...).”[18]

Como diria Graciliano Ramos, já nos anos 30, estamos agora cheios de "energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações."[19] Em nosso caso, seriam "energúmenos microcéfalos" engravatados ou embecados!

E o que dizer do mau vezo de se prender provisoriamente com o manifesto fim de obter a delação premiada? Hoje no Brasil, especialmente em Curitiba, decreta-se a prisão provisória sem absolutamente nenhuma necessidade. Deixa-se o sujeito (de direitos) preso por meses, torturando-o portanto, até que ele sucumbe e resolve falar, denunciando "Deus e o mundo" para escapar da punição e obter os "prêmios" os mais estapafúrdios, ilegais mesmo, como se viu na "Operação Lava Jato". A propósito, vejamos o que disse o Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, durante o programa Espaço Público, da TV Brasil, ao ser questionado a respeito da postura do Juiz Federal Sérgio Moro na "Operação Lava Jato”: “Não posso desconhecer que se logrou um número substancial de delações premiadas e se logrou pela inversão de valores, prendendo para, fragilizado o preso, alcançasse a delação. Isso não implica avanço, mas retrocesso cultural. Imagina-se que de início a delação premiada seja espontânea e surja no campo do direito como exceção e não regra. Alguma coisa está errada neste contexto.”[20]

E, já concluindo, lembremos:

1) O art. 5º., LVI da Constituição Federal, estabelece expressamente que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

2) O mesmo art. 5º., LIV, impõe a observância do devido processo legal para que alguém seja privado da sua liberdade.

3) O devido processo constitucional exige a obediência aos princípios da República Federativa do Brasil (que se constitui em um Estado Democrático de Direito), estabelecidos expressamente na Constituição, dentre os quais, o respeito à cidadania, à dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos (arts. 1º., caput, II e III e 4º. da Constituição).

4) Ademais, constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, constituir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º., I, da Constituição).

5) O art. 157 do Código de Processo Penal (alterado em 2008, pela Lei nº. 11.690) estabelece que deve ser entendida como prova ilícita aquela obtida em violação a normas constitucionais, devendo ser desentranhada dos autos.

6) Se a delação premiada, por tudo quanto foi dito acima, fere aqueles princípios e objetivos da Constituição Federal, ela é uma prova ilícita.

7) "O Estado, enquanto reserva ética, não pode assumir este papel vingativo"[21] de incentivador de delações, e ainda premiar os delatores autores de crimes gravíssimos. Isso "somente serve para gerar mais violência e degradação dos valores éticos mínimos para a coexistência social".[22]

Portanto, será mesmo a delação premiada compatível com a Constituição Federal? Mutatis mutandis, podemos seguir este raciocínio de Juarez Cirino dos Santos, quando trata da possibilidade da interceptação telefônica:

"Se um procedimento clandestino de investigação criminal, autorizado por exceção à regra da inviolabilidade das comunicações, lesiona os princípios constitucionais superiores (a) do devido processo legal, mediante radical negação da igualdade de armas entre acusação e defesa, (b) do contraditório, que define o espaço exclusivo de produção da prova válida no processo penal, indispensável para avaliação crítica da legalidade da prova pela acusação e defesa, (c) da ampla defesa, excluída da produção de prova criminal clandestina, da qual não pode participar, (d) da proteção contra autoincriminação, mediante invasão enganosa ou ardilosa das esferas garantidas da privacidade e da intimidade do cidadão, (e) da presunção de inocência, substituída por odiosa presunção de culpa contra o cidadão, então o procedimento da interceptação de comunicações telefônicas, instituído em direta oposição a garantias constitucionais superiores do cidadão no processo penal, é inconstitucional."[23]


Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador - UNIFACS. Pós graduado em Direito Processual pela UNIFACS e pela Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca.


[1] Em conferência realizada no Brasil, em Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001, Zaffaroni contou a parábola do açougueiro: “El canicero es un señor que está en una carnicería, con la carne, con un cuchillo y todas esas cosas. Si alguien le hiciera una broma al canicero y robase carteles de otros comércios que dijeran: ‘Banco de Brasil’, Agencia de viages’, ‘Médico’, ‘Farmacia’, y los pegara junto a la puerta de la carnicería; el carnicero comenzaria a ser visitado por los feligreses, quienes le pedirían pasajes a Nueva Zelanda, intentarían dejar dinero en una cuenta, le consultarían: ‘tengo dolor de estómago, que puede hacer?’. Y el carnicero sensatamente responderia: ‘no sé, yo soy carnicero. Tiene que ir a otro comercio, a otro lugar, consultar a otras personas’. Y los feligreses se enojarían: ‘Cómo puede ser que usted está ofreciendo un servicio, tiene carteles que ofrecen algo, y después de no presta el servicio que dice?’. Entonces tendríamos que pensar que el carnicero se iría volviendo loco y empezaria a pensar que él tiene condiciones para vender pasajes a Nueva Zelanda, hacer el trabajo de un banco, resolver los problemas de dolor de estómago. Y puede pasar que se vuelva totalmente loco y comience a tratar de hacer todas esas cosas que no puede hacer, y el cliente termine con el estómago agujereado, el otro pierda el dinero, etc. Pero si los feligreses también se volvieran locos y volvieran a repetir las mismas cosas, volvieran al carnicero; el carnicero se vería confirmado en ese rol de incumbencia totalitaria de resolver todo.” Conclui, então, o mestre portenho: “Bueno, yo creo que eso pasó y sigue pasando con el penalista. Tenemos incumbencia en todo.”

[2] Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5a. ed., 1995, p. 2.074.

[3] Por todos, leia-se a obra de Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4a. ed., 2000.

[4] Natália Oliveira de Carvalho, A Delação Premiada no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 78.

[5] https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina...

[6] Manual da Inquisição, por Nicolau Eymereco, Curitiba: Juruá, 2001, (tradução de A. C. Godoy).

[7] Heloísa Estelita, "A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal", Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim: São Paulo, ano 17, n. 202, p. 2-4, set. 2009. Para nós é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais do que isso incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de se obter um prêmio ou um favor jurídico.

[8] Apud Paulo Rangel, in Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 7ª. ed., 2003, p. 605.


[10] Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 19a. ed. 1991, p. 60.

[11] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 13, nº. 154, setembro/2005, p. 9.

[12] Disponível em http://jota.info/critica-ao-pensamento-juridico-brasileiro-segundo-manga....

[13] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Princípios da filosofia do direito (tradução de Orlando Vitorino), 2ª. edição, Lisboa: Martins Fontes, 1976, § 258, p. 216.

[14] Publicada no jornal O Globo, na edição do dia 17 de dezembro de 1995

[15] Direito Penal, 4a. ed. Tomo. III, p. 140, 1984.

[16] http://www.conjur.com.br/2015-mai-02/delacao-premiada-foi-responsavel-mo..., acessado dia 02 de maio de 2015, 10h44.

[17] Revista Civilização Brasileira nº. 1, março de 1965, p. 243 (apud Elio Gaspari, in "A Ditadura Envergonhada", São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002, p. 221 (1ª. reimpressão).

[18] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

[19] Memórias do Cárcere, Vol. 1, p. 51.

[20] http://www.conjur.com.br/2015-jun-03/financiamento-privado-custara-caro-..., acessado no dia 05 de fevereiro de 2016.

[21] Como diria Aury Lopes Jr., Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2013, 10ª. edição, p. 850.

[22] Rogério Schietti Machado Cruz, Prisão Cautelar - Dramas, Princípios e Alternativas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 8.

[23] http://justificando.com/2015/05/13/interceptacoes-telefonicas-sao-consti...

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