O fim da era das democracias na América, por Guilherme Simões Reis


Situações políticas dramáticas nos impõem custos emocionais e sociais, todavia, não que isto seja um consolo, também oferecem oportunidades para que a ciência política e outras áreas humanas repensem e calibrem seus modelos e parâmetros analíticos. O fim da era das democracias na América Latina propicia uma reflexão sobre as classificações dos regimes, a categorização ou não como democracia, e sobre como se classificar aquilo que não é democrático. A análise de conjuntura da sucessão de golpes e degradação da democracia no continente será feita aqui de modo a discutir, também, o método, os critérios e os conceitos, com o intuito de colaborar para que a ciência política lide com esta conjuntura de modo mais rigoroso.

Após um período de redemocratização, com a transição de regimes militares, associado a uma correlação de forças que permitiu a hegemonia neoliberal dos anos 90, o continente americano viu, na maior parte dos países, uma “onda rosa” de vitórias eleitorais progressistas introduzir políticas fortes de redução da pobreza e considerável aprofundamento da democratização (tanto por primar mais pelo elemento da igualdade da democracia como por introduzir mecanismos para maior participação popular). Toda uma literatura “especializada” saudosa de governos mais submissos aos ditames de Washington reagiu a isso: desde então, prolifera a banalização preconceituosa e nada rigorosa de uma reciclagem do conceito de populismo. Ainda assim, em claro desafio à condição de quintal do império, governos de esquerda, com maior ou menor nível de contradições (nenhum rompeu plenamente com a política econômica de incentivo aos rentistas, por exemplo), conseguiram notável durabilidade para os padrões continentais. Até 2016, foram cinco eleições consecutivas na Venezuela, quatro no Brasil e no Equador, e três na Argentina, no Uruguai, na Bolívia e na Nicarágua. Como nota Pereira da Silva (2017, p. 3):

A única formulação de destaque de populismo com um caráter distinto, a de Ernesto Laclau, é interessante mas confunde mais do que explica, pois 1) quando falamos de populismo sempre se entende algo diferente do que Laclau propunha, e 2) a ideia laclauniana de significante vazio a ser preenchido implica no limite que qualquer política possa ser populista [, tratando-se portanto de um conceito ] tão amplo que pode ser tudo.

Diante de forte poderio econômico e apoio estrangeiro para a oposição neoliberal, bem como cobertura midiática permanente de forte viés conservador e antigovernista, vários presidentes de esquerda eleitos no período enfrentaram ofensivas disruptivas antidemocrática de direita. Houve tentativas de golpes de Estado, boicote a eleição (nos pleitos legislativos na Venezuela em 2005), não reconhecimento de derrota eleitoral (Henrique Capriles contra Nicolás Maduro na Venezuela em 2013, Aécio Neves contra Dilma Rousseff no Brasil em 2014, Guillermo Lasso contra Lenín Moreno no Equador em 2017) etc. Tal insegurança, somada ao perfil muito personalista de alguns desses governos, bastante dependentes do carisma de seu líder e incapazes ou desinteressados em preparar adequadamente quadros para sucessão, levou a mudanças de regras para permitir reeleições para os próprios mandatários em exercício (no Brasil, no entanto, semelhante medida foi tomada antes, pela direita, com Fernando Henrique Cardoso em 1997). Em geral, tais medidas foram respaldadas em referendos, o que, apesar de nunca ser louvável a mudança das regras no meio do jogo, configura algum nível evidente de legitimidade democrática. Críticas ao esvaziamento da relevância do parlamento, por sua vez, sempre acompanharam tal ênfase na “democracia direta”.

Procedimentos, mesmo que aprovados em constituições elaboradas pelos próprios grupos no governo, foram flexibilizados e contornados várias vezes, em alguns países, para não abalar a continuidade do regime. Do outro lado, as seguidas derrotas nas urnas desnudaram os setores reacionários de quaisquer pudores democráticos. Derrotas eleitorais por margens estreitas passaram a ser contestadas, com acusações infundadas de fraude e tentativas de impugnação. A era dos golpes de Estado de direita, após o intento frustrado contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002 e o bem-sucedido golpe militar supostamente apoiado pelos Estados Unidos contra Jean-Bertrand Aristide no Haiti em 2004, voltou a partir da derrubada de Mel Zelaya em 2009 em Honduras (a despeito de ter se enquadrado na onda rosa, não foi eleito com plataforma progressista, tendo realizado inusitado policy switch após assumir). Fracassou ainda uma tentativa de golpe policial contra Rafael Correa no Equador em 2010. Pela esquerda, alguns governos fecharam os espaços de atuação institucional da oposição, em níveis variados. 2

Fica claro que a trajetória de aprofundamento da democracia não apenas acabou como está em processo de regressão. Isso é consensual, ainda que boa parte dos casos não seja considerada por um analista ou outro, em grande parte devido a afinidades programáticas. Entretanto, há falta de clareza, no debate público e acadêmico, sobre a natureza dos regimes vigentes. Quais mudanças foram realmente golpes de Estado? Os casos bem-sucedidos surgidos depois do hondurenho não tiveram participação das Forças Armadas e em sua maioria contaram com procedimentos presentes nas constituições, levando muitos a questionarem sua classificação como golpes. Inclusive, entre os opositores da derrubada da democracia no Brasil, o termo “golpe” vem sendo usado muito mais como palavra de ordem do que como uma concepção de que tecnicamente ocorreu um golpe de Estado. Análoga a esse imbróglio está a questão da classificação dos regimes que emergiram. Pode-se falar em ditaduras? O presente artigo visa a responder tais questionamentos e a sustentar certa estratégia de estabelecimento de demarcações nessa zona cinzenta.

Dos golpes de Estado sem farda


A deposição de Zelaya em Honduras inaugurou a nova onda de golpes no continente americano. Na ocasião, o presidente havia decidido convocar um referendo, meramente consultivo mas não previsto legalmente, para verificar o grau de apoio da população (e por extensão sua capacidade de pressão) a sua intenção de convocação de uma Constituinte. A Corte Suprema de Justiça ordenou que o Exército o derrubasse e o enviasse ao exílio, e assim foi feito, com ele conduzido à noite, de sua casa, ainda vestido com pijama, para um avião rumo à Costa Rica, sem direito sequer a defesa.

Pode-se dizer que, depois do hondurenho, houve golpes de Estado mais discretos, sem Exército, com ar de institucionalidade, referendados pelo Judiciário, com extrapolação dos limites legais passível de não ser reconhecida pelos mais relativistas ou parciais. Conforme nota Pereira da Silva (2017, p. 9), golpes de Estado de aparência legal, que se processam por meio das instituições vigentes, “mais sutis no uso concentrado da força”, dificultam a condenação da comunidade internacional e, desse modo, facilitam o reconhecimento dos governos emergentes por parte de Estados “estrangeiros que esperaram ou apoiaram essas mudanças de regime”. Na mesma linha, de acordo com Coelho (2016, p. 12):

Teria ocorrido um aprendizado por parte das forças conservadoras acerca do alto custo da realização de um golpe militar clássico nos moldes concretizados no passado, já que no atual momento tanto a população como a opinião pública internacional não percebem com bons olhos o retorno do autoritarismo, exercendo forte pressão para que esse tipo de estratégia não seja mais utilizada.

Golpes se sucederam no Paraguai, no Brasil e na Nicarágua. Deve ocorrer também em breve na Venezuela, polarizada entre o chavismo e a direita, com ambos os lados sem comprometimento democrático. Ao que tudo indica, o golpe, tentado pelos dois lados, ocorrerá quando um deles tiver força suficiente para concretizá-lo. Esta última situação, polêmica, ainda está indefinida e será tratada na penúltima seção deste artigo.

Dois dos demais três casos, contra Fernando Lugo no Paraguai em 2012 e contra Dilma Rousseff no Brasil em 2016, foram falsos impeachments, ou golpeachments, em que o presidente foi retirado sem que tivesse cometido crime, como se fosse um voto de desconfiança contra o primeiro ministro em um sistema parlamentarista. O terceiro foi o autogolpe de Daniel Ortega na Nicarágua: o presidente sandinista não fechou o parlamento inteiro, com tanques na rua, como no caso clássico do neoliberal Alberto Fujimori no Peru em 1992, mas destituiu toda a oposição, o que, na prática, é uma categoria equivalente de golpe. Até onde tenho conhecimento, o primeiro a utilizar a feliz expressão “golpeachment” para se referir a golpes de Estado travestidos de impeachment – também conhecidos como “golpes parlamentares”, “golpes institucionais”, “golpes brancos”, “golpes frios”, “golpes de novo tipo” ou “golpes paraguaios” – foi o cientista político e jornalista Cristian Klein, em artigo para a edição de 31 de março de 2016 do jornal Valor Econômico intitulado “O ‘golpeachment’”.

Existem, portanto, nesta ruptura da era das democracias no continente, dois grupos totalmente diferentes de golpe, mas ambos derivados de um contexto comum. Há os golpes da direita para derrubar governos da chamada “onda rosa” e há o fechamento de todos os espaços para a oposição reacionária em governos presididos pela esquerda. No primeiro grupo, a destituição de Zelaya foi um caso mais típico de golpe de Estado, com militares conduzindo o presidente para o exílio. Depois desse, seguiram-se golpes com feição institucional, flexibilizando os critérios do processo de impeachment, o qual é constitucional, para que governantes sem crime de responsabilidade pudessem ser retirados, o que é inconstitucional.

No Paraguai, em que a esquerda era diminuta, o golpe contra Lugo, da Frente Guasú, foi um processo extremamente rápido, de 48 horas, que analisei à época em detalhes em outro artigo neste periódico (Reis, 2012). No Brasil, a capacidade de mobilização popular da esquerda para impedir o golpe se mostrou decepcionante, mas, ainda assim, o Partido dos Trabalhadores e seus aliados tinham muita capilaridade para que fossem ignorados em um processo de impeachment relâmpago como o realizado no “laboratório” paraguaio. Assim, com a conivência do Supremo Tribunal Federal, que se absteve de defender a Constituição ao não declarar o golpeachment inconstitucional, Dilma Rousseff foi afastada, e depois impedida, em processo que durou nove meses. O argumento fajuto do STF para isso foi justamente o de que o rito do impeachment foi cumprido à risca e que, para não interferir na separação de Poderes, não julgaria o mérito, isto é, se houve crime de responsabilidade da presidenta. Um guardião da Constituição que se prende ao rito e não avalia o mérito é tão efetivo quanto um cérbero, o cachorro de três cabeças guardião do Hades, desprovido de dentes.

Há, por outro lado, uma tensão entre a ofensiva conservadora, que, com o apoio da mídia, tenta de forma antissistêmica debilitar a democracia e o governo progressista, e a forma como este se defende. A postura da esquerda governista pode ser a de reagir de modo inerte e absolutamente passivo, como foi o caso do Brasil, ou com maior polarização. Esta pode se dar de modo mais agônico ou antagônico, nos termos de Mouffe (2005). Enquanto alguns casos se limitam a um debate duro (como ocorreu durante boa parte da era Chávez na Venezuela, o que estaria no âmbito do agonismo), outros chegam ao ponto de contornar regras para fragilizar os opositores. Estes desvios podem ser criticados do ponto de vista dos valores democráticos, mas ocorrem, também, em níveis variados entre si, conforme será explicado mais adiante. Para se considerar que há uma ruptura democrática, é preciso que o referido desvio seja profundo, com total ou grave cerceamento à oposição. Esse é o caso da Nicarágua.

No país centro-americano, Daniel Ortega eliminou toda a oposição parlamentar, por meio do Conselho Supremo Eleitoral, que lhe é submisso. Este destituiu a liderança do bloco oposicionista na Assembleia Nacional e impôs um novo nome para substituí-la, de interesse do governo; com a não aceitação deste por parte dos parlamentares, o tribunal eleitoral destituiu todos os 28 deputados opositores, sendo 16 titulares e 12 suplentes, membros do Partido Liberal Independente e do Movimento Renovador Sandinista. Como afirmado anteriormente, mesmo sem ter propriamente fechado o Congresso, Ortega promoveu um autogolpe ao eliminar toda a oposição parlamentar.

Da ditadura civil brasileira: democracia derrubada


O termo “golpe” tem sido corriqueiramente tratado como palavra de ordem, não efetivamente como golpe de Estado. O resultado disso é o não entendimento da gravidade da situação, o que por sua vez é um obstáculo para o enfrentamento dela. O ditador é chamado por termos mais suaves, por eufemismos como “presidente golpista” e “ilegítimo”. Enquanto recusa-se a chamar a coisa pelo nome – “ditadura civil” – diz-se que há um “golpe em curso”, ainda, e o que deveria ser entendido como o esperado avanço programático e também repressivo de um governo ditatorial ultraconservador é lido como “um golpe atrás do outro”. O golpe esteve realmente “em curso” enquanto houve a tentativa de não reconhecer o resultado das urnas na eleição presidencial de 2014, a conspiração de bastidores para tirar Dilma Rousseff, a aceitação da abertura do processo de impeachment sem efetivo crime de responsabilidade, o massacre policial nas manifestações contra o golpe. Quando Dilma foi afastada para que Michel Temer assumisse, em 12 de maio de 2016, antes mesmo, portanto, da conclusão do golpeachment, o golpe estava concluído; o que veio depois é ditadura, a qual avança e se agrava.

Na constituição da Roma antiga, o termo “ditadura” se referia à delegação de poderes ilimitados por um período determinado para um único homem, com vistas a enfrentar alguma situação de crise, devendo a institucionalidade voltar à normalidade tão logo o problema fosse resolvido. O termo sofreu mudança de significado, passando, na década seguinte à Primeira Guerra Mundial, a ter seu uso generalizado como sinônimo de absolutismo ou autocracia (Seligman, 1931, p. 133-134). Talvez a maior parte das ditaduras contemporâneas, mesmo com sentido diferente do original, busque ainda se legitimar por um discurso de necessidade para enfrentar alguma crise, e não raro sugere ser um “remédio” temporário. Às vezes o que seria breve se arrasta por 21 anos, como a ditadura militar inaugurada em 1964 no Brasil. Quem sabe a enganação tenha algo a ver com o golpe ter ocorrido no dia 1º de abril?

Há ditaduras mais repressivas e menos repressivas – tanto que se cometeu o ultraje de se referir à ditadura militar brasileira como “ditabranda” por, mesmo torturando e matando, ter sido menos brutal que os genocidas regimes militares chileno e argentino, por exemplo. O não entendimento disso é justamente a razão para que muitos discordem de que estejamos numa ditadura, pelo fato de hoje a repressão ainda não ser tão forte: resume-se à perseguição política a um ou outro intelectual, político ou ativista não amparados pelos direitos e garantias de um devido processo legal, somada à repressão policial nas manifestações de oposição. Ora, faz sentido imaginar que ela não é maior porque o grau de ameaça representado pela resistência popular não é significativo hoje. Essa confusão conceitual ignora também que ditaduras frequentemente não são igualmente repressivas ao longo de sua existência: o regime militar brasileiro inaugurado em abril de 1964 só atingiria seu clímax repressivo com o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, arrefecendo com a emenda constitucional nº 11 de outubro de 1978 (que deu fim ao AI-5), e depois novamente com a Lei da Anistia de agosto de 1979.

Outra questão embaralha o caso brasileiro contemporâneo: quem manda nesta ditadura? Há ditaduras mais personalistas e outras menos, há ditaduras de junta e ditaduras unipessoais, há ditaduras com enorme autoridade do governante e outras em que se conspira seguidamente, com frequentes trocas no comando – o caso argentino, com quatro diferentes juntas militares (mas com um dos membros da junta, pertencendo ao Exército, sendo o respectivo presidente de facto) se substituindo em seus seis anos de duração (1976-1983) é um caso paradigmático no continente.

A aparente fraqueza de Michel Temer – a despeito de, com sua afinidade programática com a reacionária legislatura, ele ter enorme taxa de sucesso em seus projetos – é argumento recorrente para não se classificá-lo como ditador. Paralelamente, trata-se de uma ditadura em que a autoridade do Executivo como poder máximo pode ser posta em dúvida em função da crescente judicialização da política, com o Judiciário ampliando suas prerrogativas, sem poder ser controlado efetivamente por outros poderes ou ser submetido a accountability, e contornando os próprios princípios jurídicos fundamentais: respeito a direitos e garantias, inocência até prova em contrário, ausência de pauta política etc.

Há uma última questão importante para se balizar o debate acadêmico e de análise política sobre o Brasil. Além da incompreensão sobre o que é o golpe e da impressionante resistência a se chamar a coisa pelo nome – “ditadura” – há uma crença de que, se realizada a eleição presidencial de 2018 – é provável que ocorra, mas isso não é garantido –, a democracia terá sido restabelecida. Conforme os marcos analíticos sustentados aqui, isso não pode ser afirmado independentemente do que ocorrer em tal eleição. Por quê? Primeiramente, é grande a possibilidade de o favorito nas pesquisas, o ex-presidente Lula, ser tornado inelegível pela “lei da ficha limpa” por meio de condenação carente de provas (mesmo ainda podendo recorrer), tal como se tornou possível com o novo modo de atuação do Judiciário, conforme denunciei antes do golpe de Estado:

Mesmo o status de “regime democrático”, no entanto, fica em xeque quando a judicialização atinge um nível ainda mais incontido, dadas sua partidarização, seletividade e flexibilização interpretativa dos próprios procedimentos jurídicos – tal flexibilidade, por sua vez, é enviesada, pois, quando os réus são de classe social baixa, o positivismo estrito é bastante comum. Exemplos do mencionado fenômeno que compromete a democracia são os vazamentos seletivos para a mídia de informações confidenciais das investigações, a condução coercitiva ilegal de um ex-presidente com um aparato policial digno da prisão de chefe narcotraficante, o recurso vulgarizado da marginal teoria do domínio do fato que viola direitos jurídicos fundamentais como o princípio de que todos são inocentes até que se prove o contrário, e a atuação midiática e explicitamente oposicionista de figuras dos altos escalões do Judiciário e ministros do Supremo Tribunal Federal (Reis, 2015).

A exclusão de Lula sem motivo legítimo do processo eleitoral, por si só, tiraria o necessário caráter contestatório da eleição necessário para uma poliarquia, conforme o modelo de Dahl (1997), se tratado a sério (o próprio Dahl é pouco rigoroso quanto a isso, considerando a existência minimamente competitiva de dois partidos quaisquer como suficiente).

Há, no entanto, razões adicionais para se discordar que uma eleição em 2018, mesmo com a participação de Lula, significaria a volta da democracia: não há garantia, dependendo de quem vencesse a eleição, de que este poderia governar, não seria derrubado. Uma vez tendo sido dado o golpe em 2016, seria preciso se esperar algum tempo para, no futuro, dizer-se que os pleitos de 2018 significaram a redemocratização. Esse ponto será detalhadamente explicado na seção seguinte, pois é exatamente o caso da não-democracia vigente no Paraguai. O mais cedo possível para se certificar que a democracia teria voltado no Brasil seria em janeiro de 2023, na eventualidade de o mesmo grupo político da presidenta Dilma Rousseff sair vitorioso nas urnas em 2018 e esse presidente eleito passar a faixa para seu sucessor ou iniciar seu segundo mandato.

Da não-democracia paraguaia: e das manobras ilegais que não são golpes


Se regimes civis que ascendem a partir de golpes de Estado contra a democracia devem ser entendidos como ditaduras, como classificar o Paraguai atual? Após o golpeachment de 2012 contra Lugo, evidentemente o vice-presidente liberal Federico Franco, ao assumir, tronou-se um ditador civil, tal como Temer no Brasil. Terminado seu mandato, no entanto, foram realizadas eleições em 2013, limpas ao que tudo indica, em que saiu vitorioso Horacio Cartes. Foi a volta à “normalidade”, com um presidente do Partido Colorado, aparentemente o único desde os anos 40 que consegue governar sem sofrer golpes no país (a menos que sejam golpes por parte de outros colorados!). De todo modo, antes disso, o país só teve presidentes colorados ou liberais, com impressionante quantidade de golpes de Estado, não apenas de um partido contra o outro como também liderados por facções intrapartidárias rivais. A presidência de Cartes, portanto, também deve ser considerada como uma ditadura? Certamente não, mas isso não a qualifica como uma democracia.

Mesmo aderindo a critérios minimalistas, realistas e procedimentais de democracia, o sistema político paraguaio deve ser entendido como um regime eleitoral, mas não como democrático. Eleições são condição necessária mas não suficiente para a democracia. Conforme abordei em outro artigo neste periódico (Reis, 2015), quando o golpe ia se consolidando no Brasil, citando O’Donnell (1999):

Em um regime democrático, as eleições são competitivas, livres, igualitárias, decisivas e includentes, e os que votam são os mesmos que, em princípio, têm o direito de ser eleitos – os cidadãos políticos. […] Finalmente, as eleições devem ser decisivas, em vários sentidos. Primeiro, os vencedores devem tomar posse dos cargos para os quais foram eleitos. Segundo, com base na autoridade conferida aos seus cargos governamentais, os funcionários eleitos devem poder tomar as decisões que o marco democrático legal e constitucional lhes autoriza. Terceiro, os funcionários eleitos devem concluir seus mandatos nos prazos e/ou nas condições estipulados por essa estrutura institucional. Eleições livres, igualitárias e decisivas implicam, como argumenta Adam Przeworski (1991, p. 10), que governos podem perder eleições e devem acatar seus resultados.

As eleições paraguaias não podem ser consideradas decisivas pelo fato de um presidente colorado conseguir governar, uma vez que, no mandato anterior, quando a esquerda saiu vitoriosa nas urnas, foi derrubada. Comprometeu-se o que Álvarez et al. (1996) chamam “irreversibilidade est post”, característica central para a democracia juntamente com a incerteza ex ante – deve ser possível a vitória da oposição – e a repetibilidade, isto é, as eleições se sucederem no tempo, não sendo um evento isolado. Tira-se daí, portanto, outra lição para a classificação dos regimes como democracias: tal avaliação, uma vez ocorrendo ruptura, só pode ser realizada a posteriori, retrospectivamente (Álvarez et al., 1996). É preciso que se tenha uma sequência de eleições limpas, prolongando-se no tempo, com chances reais para que a oposição as dispute, sem novos golpes. Aí sim, no futuro, será possível definir se, a partir de Cartes, o Paraguai realmente se redemocratizou.

A julgar pelos eventos políticos de 2017, tal perspectiva é pouco provável. Grave crise política acometeu o país quando a maioria da câmara alta lançou mão de uma manobra irregular para alterar a Constituição com o intuito de passar a permitir a reeleição presidencial – no Paraguai é proibida não apenas a reeleição consecutiva mas também até mesmo uma segunda eleição de ex-presidentes, tal como acontece no México. A medida foi aprovada por 25 dos 45 senadores em gabinete fechado, fora do plenário, em função da resistência de parte da oposição, particularmente o Partido Liberal Radical Autêntico (aquele que havia dado o golpe contra Lugo para empossar Federico Franco, com o apoio do restante da direita). Os membros liberais da Câmara de Senadores, incluindo seu presidente e seu vice-presidente, não participaram da sessão e estavam no plenário para fazer pressão. Seguiu-se reação violenta nas ruas, com forte repressão policial, até que parte dos manifestantes conseguiu furar o cerco e atear fogo ao Congresso. Entre eles estavam membros da juventude do PLRA; um membro da organização foi executado sumariamente por policiais fora dali.

A sessão na câmara alta foi evidentemente ilegal e os liberais a chamaram de “golpe parlamentar”. Prontamente alguns analistas políticos se apressaram em classificar o fato como um segundo golpe no Paraguai. Novamente, fica patente a necessidade de não se banalizar o sentido de um golpe de Estado. É preciso que se diferencie uma ruptura tão grave que leve à substituição não democrática do presidente, ou que anule a oposição, de medidas que, se carecem de legalidade e legitimidade, não chegam a configurar quebra tão decisiva das regras do jogo.

Diferentes manobras desviam ou flexibilizam as regras com o intuito de beneficiar o governo em questão. Emendas constitucionais que possibilitem a reeleição ainda para o mandatário em exercício evidentemente são um déficit na qualidade da democracia, dado que não se mudam as regras de um jogo enquanto a partida está sendo jogada, mas não chegam a configurar quebra da democracia, visto que não asseguram a reeleição ou impedem a vitória da oposição, algo ainda a ser decidido por aqueles com a máxima legitimidade, os cidadãos, nas urnas.

Tais manobras podem ainda ser hierarquizadas quanto ao grau de desvio das normas estabelecidas, sendo mínimo quando aprovado normalmente pelo parlamento (a princípio foi o caso de Fernando Henrique Cardoso, mesmo que com a forte e jamais investigada suspeita de compra de votos de parlamentares, o que, se ocorreu, evidentemente amplia muito seu grau de ilegalidade) ou por referendo constitucionalmente previsto (como a emenda nº 1 de 2009 da Constituição Bolivariana, que permitiu reeleições ilimitadas para presidente e outros cargos na Venezuela). O grau de desvio é algo maior quando o procedimento retira dos parlamentares poder previsto na lei e o transfere para modalidades plebiscitárias não preexistentes (como teria sido o caso de Zelaya, caso o referendo convocado não fosse consultivo e sim vinculativo), e é bem maior quando são realizados procedimentos não previstos legalmente e que não recorrem diretamente à soberania popular (é o caso da manobra cartista no Paraguai, mas será também o da Bolívia, caso Evo Morales efetivamente consiga habilitar nova candidatura sua à reeleição a despeito de emenda constitucional nesse sentido ter sido rejeitada em referendo popular, exigido constitucionalmente, realizado em fevereiro de 2016). Sobre isso, Cunha Filho (2017) menciona também a esdrúxula proibição em 2015 por parte do Órgão Eleitoral de deputados e senadores oposicionistas de disputarem as eleições a alcaide com a alegação de que não teriam residido de forma constante em seus domicílios eleitorais – norma não estendida, aliás, aos candidatos a prefecto dos departamentos. Ainda assim, mesmo nestes casos mais graves, o termo “golpe” só pode ser utilizado de modo mais frouxo, devendo ficar claro não se tratar de golpe de Estado.

As democracias existentes, ou poliarquias, são todas elas imperfeitas. Essa afirmação não se deve à defesa de uma concepção deontológica e não realista de democracia (O’Donnell, 1999), mas sim ao fato de que, se levados com máximo rigor os critérios de liberdade de expressão, de associação e de informação, bem como a existência de eleições perfeitamente limpas em todo o território, não existirá um único caso de democracia no mundo. É, portanto, preciso relativizar o conceito de democracia, mesmo sob critério minimalista, para que haja países entendidos como democráticos. Isso não se deve à expansão dos regimes democráticos, de modo mais imperfeito, para países fora do capitalismo avançado, como sugere O’Donnell. Conforme ironizei em outro texto (Reis, 2014), se forem usados os mesmos critérios, todos os países europeus terão os déficits democráticos que são apontados pela literatura especializada quando trata da América do Sul.

Essa relativização do que é democracia para efeitos de categorização implica separar o dever-ser (sem, no entanto, perdê-lo de vista como imperativo categórico em uma desejável trajetória de aprofundamento da democracia) dos casos existentes. Isso significa que nenhum caso será plenamente satisfatório e, como a qualidade da democracia pode variar, é preciso estabelecer critérios de corte para separar quem seria democrático ou não nesta abordagem realista. Procedimentos indesejáveis do ponto de vista democrático, argumentei aqui, não devem ser considerados suficientes para se entender como não-democracia. A ruptura democrática, o golpe de Estado, portanto, deve ser algo mais dramático e decisivo do que muitas manobras antidemocráticas que não levam à anulação da oposição ou à perda do caráter decisivo e de limpeza das eleições.

Outro ponto do debate que merece atenção é a posição da Frente Guasú, coalizão de esquerda liderada por Lugo, que apoiou as medidas governistas de aprovação da reeleição. O ex-presidente lidera com folga as pesquisas de intenção de voto e obviamente uma mudança nas regras foi vista como possibilidade para a volta da esquerda ao poder. Enquanto a Frente Guasú foi rápida em criticar os liberais pelo ataque ao Congresso (Lima, 2017), recebeu também duras críticas por ter “transgredido as melhores tradições democráticas da esquerda paraguaia que viria a representar, ao concretizar um pacto com o cartismo e comprometer os votos de senadores da Frente Guasú com a aprovação da emenda constitucional por meios contrários à legalidade.” (Soler e Quevedo, 2017). Rivarola (2017) diz que “a última frente democrática terminou se tornando golpista”.

Ora, pode-se questionar se foi uma tática eficiente ou se foi “um tiro no próprio pé”, que enfraquecerá o apoio da coalizão de esquerda entre o eleitorado progressista. Entretanto, essa argumentação de que é antidemocrática ignora o elemento fundamental: o Paraguai não é mais uma democracia. Não se pode contrariar algo que não existe. A Frente Guasú sofreu um golpe de Estado e não teve forças para retomar de imediato o poder que lhe foi tirado ilegitimamente; não teve alternativas, portanto, a não ser seguir no maculado jogo institucional. Isso não significa que não possa recorrer a qualquer medida possível para tirar do poder aqueles que o usurparam. É justificado um pacto pontual para a provação de uma emenda constitucional – já não importa a forma como ela foi aprovada, pois não se trata de uma democracia – que permita a candidatura de Lugo (ainda que dando alguma chance a Cartes de prosseguir com seu projeto reacionário). Tampouco deve a Frente Guasú se solidarizar com os parlamentares liberais, que protagonizaram o golpe de Estado cinco anos antes. O esquecido Kautsky (1979, p. 7) é bom conselheiro neste momento:

Sem dúvida, quando num Estado democrático o proletariado ganha força, deve-se esperar tentativas da classe dominante no sentido de impedir, por meios repressivos, a realização da democracia pela classe ascendente. Mas, mesmo assim, a inutilidade da democracia para o proletariado não está provada. Se, nas condições descritas, as classes dominantes recorrem à violência, é porque elas receiam, sobretudo, as consequências da democracia. E sua violência não levaria senão ao desmoronamento da democracia.

As consequências dessas tentativas previsíveis da classe dirigente no sentido de abolir a democracia não provam, pois, a inutilidade da democracia para o proletariado, mas demonstram a necessidade de defendê-la, em qualquer parte, de forma tenaz. Com efeito, se se faz crer ao proletariado que a democracia é, no fundo, apenas ornamento inútil, isso impedirá a mobilização das forças necessárias para defende-la. Mas, a massa do proletariado está, apesar de tudo, bastante presa a seus direitos democráticos para que se espere sua renúncia voluntária a esses direitos. Ao contrário, o mais provável é que ela defenda esses direitos com tal firmeza que, se os oponentes procurarem destruir pela violência os direitos do povo, sua resistência resoluta transformar-se-á em subversão política.

Do impasse venezuelano: quando se determina o golpe?


A situação política venezuelana é marcada pela deterioração democrática. Esta afirmação não se dá do ponto de vista, tão comum na ciência política, de que a virtude de um sistema democrático está na estabilidade e na alternância no poder. Hugo Chávez apostou em radicalização de polarização e isso, por si só, não significou autoritarismo, como se acusou, pois tal estratégia pode se dar de modo agonístico e não antagônico. Uma lógica consorciativa não permite a legítima disputa entre grandes projetos, de modo que defendê-la implica, também, pôr-se a favor da manutenção do status quo. Este comentário, contudo, não implica a defesa de uma lógica majoritária de democracia em oposição à lógica consensual, no sentido que ela não se alinha à defesa de um sistema eleitoral majoritário, do bipartidarismo etc. Considero que apenas o sistema proporcional é justo, pois todas as correntes de opinião da sociedade devem ser representadas. Isso não está em desacordo com minha visão de mundo favorável à construção de uma nova hegemonia.

Muito menos se deve considerar como antidemocrático que Chávez tenha sido reeleito seguidas vezes. O que é antidemocrático é o entendimento por muitos politólogos de que a alternância no poder seja mais relevante para uma democracia do que a vontade popular. Isso pode ser ilustrado pela desconcertante decisão de Álvarez et al. (1996) de considerarem como democrático o governo João Baptista Figueiredo, o último da ditadura militar brasileira, por ter permitido a eleição (indireta!) do civil Tancredo Neves à sua sucessão (seu critério é o de que o candidato da oposição venceu o pleito seguinte sob as mesmas regras que ele havia sido eleito), e, adicionalmente, classificarem Botsuana como uma ditadura porque, desde a independência do país, o mesmo partido tinha vencido, de forma limpa, todas as eleições já realizadas, de modo que não se poderia afirmar que, se algum dia perdesse, permitiria que a oposição assumisse, por mais que nunca tivesse dado qualquer sinal nessa direção. O critério é absurdo, pois, dado que ser democrático é tido como um valor positivo, e autocrático como negativo, deveria ser aplicada a máxima do direito “in dubio pro reo”, isto é, todos são inocentes até prova em contrário. Como dito, deve haver incerteza ex ante acerca do vencedor nas urnas, e o resultado de eleições limpas deve ser acatado pelo perdedor seja ele quem for, mas é demofóbica a concepção de que o eleitorado não deva ter o resultado que deseja caso este não implique alternância.

O déficit democrático na Venezuela, portanto, se deve especificamente a que o antagonismo crescentemente se sobrepôs ao agonismo. O pacto democrático foi rompido seguidamente, em alguma medida, pelas duas partes em disputa. Não se pode dizer ainda que a democracia ruiu, mas tem baixíssima qualidade. Após uma atuação golpista da oposição e uma escalada autoritária por parte do governo eleito, os movimentos antidemocráticos de uma parte e de outra se somaram e se retroalimentaram em ciclo vicioso em espiral, inclusive com conflitos físicos nas ruas. O cenário atual é de empate catastrófico, nos termos de García Linera (2008), e nenhum dos dois lados teve, ainda, força para dar o golpe de Estado. Ambos querem dá-lo, e uma guerra civil não está fora da gama de possibilidades.

Golpes de Estado podem ter um dia decisivo – quando o governante é afastado ou a oposição é excluída – mas em muitas das vezes esse é um processo turbulento, que se arrasta com reviravoltas. Nem sempre o início de um processo de golpe tem sentido idêntico a seu desfecho. O golpe de 1926 em Portugal, por exemplo, levou a três diferentes governantes até 1928, em seguidos golpes dentro do golpe, com a intenção original de “apenas” excluir o Partido Democrático, de esquerda, sendo substituída, ao fim do processo, por um regime fortemente fascista que abriu espaço para o salazarismo. Há também golpes que não se concretizam, como a tentativa contra o próprio Chávez, em 2002, em que a oposição golpista “assumiu o poder” por brevíssimas 48 horas. A Venezuela está hoje à beira de novo golpe, mas este ainda não ocorreu, passadas tentativas de ambos os lados em disputa, sem que qualquer deles tenha tido força suficiente para encerrar tal processo, em empate catastrófico.

Ambos os lados, governo e oposição, após uma série de ataques recíprocos amparados pelos respectivos recursos de poder formais e informais, institucionais e extrainstitucionais, tentaram dar um golpe de Estado um contra o outro. Em janeiro de 2017, de um lado, a ampla maioria oposicionista de dois terços no parlamento declarou o Executivo em vacância, por “abandono de cargo”, por “não estar cumprindo bem suas funções”, e, de outro, o Judiciário passou para o Executivo as funções do Legislativo (acusando-o de desacato por ter mantido três deputados oposicionistas do estado do Amazonas condenados por fraude eleitoral – um quarto parlamentar amazonense, governista, também impugnado, acatou a decisão judicial e, espontaneamente, não se reintegrou), o que na prática se configuraria como autogolpe. Inicialmente, o governo só devolveria as atribuições do parlamento quando este desincorporasse os deputados impugnados, mas tampouco a justiça eleitoral convocou novas eleições para substituir os parlamentares irregulares, cujos três membros oposicionistas são necessários para que o bloco não governista tenha a maioria qualificada de dois terços da assembleia.

Por mais que o argumento do governo era o de que não se tratou de uma supressão do parlamento, pois bastava que este saísse da situação de desacato para que voltasse a ter suas prerrogativas, o fato é que a continuidade dessa situação se configuraria como autogolpe e que nenhum dos dois lados tinha real interesse em ceder: a oposição queria denunciar o golpe e obter apoio para desgastar o Executivo e mesmo derrubá-lo, enquanto que ao governo interessava tirar dos oposicionistas o controle sobre o Legislativo. A corte suprema, no entanto, voltou atrás, dias depois, por pressão internacional, que incluiu até mesmo a OEA e países vizinhos (o Peru, governado por Pedro Pablo Kuczynski, político de perfil semelhante ao da direita venezuelana, retirou seu embaixador do país).

Palavras finais


A democracia representativa não é mais uma referência “moralmente obrigatória” no cenário político latino-americano. A mobilização de cláusula democrática por parte da OEA ou do Mercosul é, evidentemente, cínica e parcial, pois ambos os organismos permaneceram impassíveis, por exemplo, durante o efetivo golpe de Estado brasileiro de 2016, cujo emergente ditador permanece na presidência da República. Por sua vez, o fato de o Brasil, com suas dimensões, complexidade e relevância estratégica, ter sofrido a ruptura democrática é evidente sinalização de que nenhum país no continente está a salvo de risco semelhante.

A situação venezuelana, ainda inconclusa, sintetiza o dilema: há uma oposição de direita que se utiliza de todos os meios, inclusive os paraconstitucionais sempre que necessário, e conta com apoio midiático e estrangeiro para desestabilizar o governo e tomar o poder, e um presidente de esquerda, amparado por um Judiciário submisso, que avança em escalada autoritária e cerceamento da contestação como forma de se manter no cargo e resistir a quaisquer pressões, legítimas ou não. Os países vão se alinhando em um polo ou outro, e na Venezuela ambos se chocam em empate catastrófico.

Em alguns países a direita venceu democraticamente. Entretanto, isso não significa que a democracia não esteja se degradando ali também, como mostraram já as primeiras semanas de Mauricio Macri na presidência da Argentina: em dezembro de 2015, emitiu decretos de urgência sem consultar o Congresso da Nação, cancelando a Lei de Meios Audiovisuais e indicando juízes para a Suprema Corte.

A unidade entre as esquerdas da região, mesmo entre as que restaram no poder, está em frangalhos. O secretário geral da OEA que “falou grosso” com os venezuelanos e se escondeu diante do golpe no Brasil é Luis Almagro, da Frente Ampla uruguaia. O governo do Uruguai tampouco se opôs a que, por não “internalizar as normas do Mercosul”, a Venezuela perdesse o direito de voto no bloco econômico sul-americano. Maduro afirmou que o Uruguai coordena as ações com o Departamento de Estado dos EUA, e, diante da exigência uruguaia de pedidos públicos de desculpas, o presidente venezuelano reagiu: “Há por aí uma esquerda covarde que tem medo e treme as pernas quando recebe uma ligação em inglês de algum embaixador, e não demora um segundo para se unir diante de fatos desconhecidos para condenar a Venezuela e dizer ‘golpe de Estado na Venezuela!’.

Com o Mercosul boicotado por governos de direita pró-Washington em Brasília e em Buenos Aires e desacreditado quanto à cláusula democrática por ter Brasil e Paraguai como membros, os uruguaios compreensivelmente têm se voltado para tratados bilaterais de comércio com a China e o Reino Unido, além do Chile. O continente, que avançava em sua integração regional e mostrava consistência no contraponto à hegemonia estadunidense, hoje se encontra crescentemente rachado, com dois blocos que não evitam conflitos diplomáticos com os presidentes do polo contrário, sendo um destes polos submisso aos interesses dos Estados Unidos. A primeira década do século XXI deixará saudades.


Guilherme Simões Reis é Professor de Sistemas Eleitorais e de Formas e Sistemas de Governo na UniRio, pesquisador do Observatório Político Sul-Americano, doutorando em Ciência Política no IESP-UERJ e mestre pelo antigo Iuperj. Passou um período “sanduíche” como pesquisador visitante na Universidade de Frankfurt. Tem interesse no estudo da social-democracia, dos partidos políticos e outras instituições, das eleições e sistemas eleitorais, da teoria democrática, do pensamento socialista, entre outros temas.

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