A França insubmissa e uma nova esperança, por Josué Medeiros

Artigo publicado originalmente na Carta Capital.


Vem da França insubmissa uma nova esperança a mobilizar quem luta por igualdade e liberdade em uma conjuntura internacional tão adversa para a democracia: a candidatura anti-neoliberal de Jean-Luc Mélenchon, do movimento France Insoumise (França Insubmissa) cresce vertiginosamente e chega na reta final do pleito presidencial naquele país com chances reais de ir para o 2º turno.

O primeiro turno ocorrerá no próximo domingo, dia 23 de abril de 2017, e apresenta um quadro complexo cujos sentidos ultrapassam em muito o território francês: quem liderou a corrida desde a pré-campanha foi a candidata da extrema-direita Marine Le Pen, com um patamar consistente de cerca de 25% das intenções de voto. Entretanto, ela vem apresentando um nítido viés de baixa na última semana, aparecendo com 22/23%, o que coloca em xeque a sua presença no segundo turno, e isso só pode ser explicado pelo crescimento de Mélenchon.

Em 2011 Marine Le Pen assumiu a presidência do partido fascista Front National (FN), quando iniciou um projeto de modernizar a direita radical francesa, se afastando da postura antissemita e homofóbica que marcou a trajetória Jean-Marie Le Pen, fundador da FN e pai da atual líder. Marine foi capaz de canalizar a revolta de parte da população francesa que teve uma significativa piora de vida com a crise econômica e com a política de austeridade da União Europeia.

Ela organiza essa revolta para um projeto xenófobo e conservador, no qual o nexo central reside na questão da imigração, que passa a ser responsabilizada não só pela pobreza, mas também pela degradação moral do que seriam os “verdadeiros” valores franceses. A vitória de Le Pen serviria para confirmar uma trágica situação internacional de avanço do conservadorismo e da xenofobia, somando-se a eventos tais como a eleição de Trump nos EUA, a ruptura britânica com a União Europeia e o crescente fechamento democrático em países como Rússia e Turquia.

Durante todo o processo eleitoral quem se apresentou em condições de vencer a líder fascista foram duas candidaturas inseridas dentro do paradigma neoliberal e do sistema político dominante. Pela direita tradicional quem concorre é François Fillon, —primeiro-ministro entre 2007 e 2012, que propõe ao país uma plataforma conservadora nos costumes e de destruição dos direitos trabalhistas como fórmula para retomar o crescimento.

Fillon começou o pleito com muita força, disputando em pé de igualdade com Le Pen, porém suas pretensões sofreram um abalo poderoso quando, em finais de janeiro, explodiram denúncias de corrupção contra ele e sua mulher, o que o fez estagnar em torno de 20%, porcentagem insuficiente para chegar ao segundo turno.

O outro forte concorrente é Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia (entre 2014 e 2016) do atual presidente socialista François Hollande, que termina o seu governo desmoralizado devido a uma gestão de continuidade das políticas neoliberais. Macron, que rompeu com o Partido Socialista (PS) e fundou seu próprio movimento – En Marche, defende que a polarização entre esquerda e direita precisa ser superada em prol de uma “política moderna”.

Esta vem a ser, na plataforma do jovem candidato de 39 anos que pela primeira vez em sua vida disputa uma eleição, um mix de forte liberalização da economia, incluindo o desmonte de leis trabalhistas que ele já começou a fazer enquanto foi ministro, com progressismo nos costumes e temas dos direitos civis e, principalmente, na defesa dos ideais republicanos que são caros à memória coletiva da cidadania francesa.

Macron vem apresentando um crescimento constante, partindo do patamar de 15% das expectativas de voto em janeiro para um teto de 25% ao final de março. No mês de abril, contudo, começou a apresentar leve queda nas sondagens, e ele também chega na reta final oscilando entre 22% e 23%, empatado na liderança com Le Pen.

É na explicação da redução/estagnação dos favoritos que a nova esperança aparece. Mélenchon dobrou seu patamar de votos desde o começo de 2017, protagonizando uma arrancada no momento derradeiro das eleições e se tornando o protagonista político da disputa. Em janeiro, Mélenchon situava-se perto dos 15% dos votos, porém sua posição recebeu um duro golpe quando, nesse mesmo mês, as bases do PS surpreenderam e escolheram como candidato Benoît Hamon, um quadro crítico do neoliberalismo de Hollande e com uma plataforma renovadora que inclui a defesa de uma renda básica cidadã.

De partida, Hamon saltou de mais ou menos 5% para cerca de 15% (chegou a bater o teto de 18% em uma pesquisa de 29 de janeiro realizada pelo instituto Ifop-Fiducial), enquanto Mélenchon baixou para um piso de 10%. As esquerdas francesas viveram um tenso processo de debates e pressões para uma unidade – em torno de Hamon - que garantisse sua presença no 2º turno. Mélenchon, insubmisso, recusou a unidade em nome da coerência e da legitimidade que carrega desde 2008, quando iniciou a organização de um movimento alternativo ao socialismo moderado e adaptado ao neoliberalismo.

O resultado, ao menos até aqui, não podia ser melhor para Mélenchon. Ele conseguiu, na prática, produzir a unidade das esquerdas. Hamon viu seus índices de voto despencarem para cerca de 7% entre fevereiro e abril na mesma proporção em que o líder da França Insubmissa chegou a 20% na última semana de campanha, consolidando-se como grande fenômeno eleitoral da disputa presidencial.

De acordo com pesquisa feita entre os dias 13 e 15 de abril pelo instituto Le Terrain/Scan-research, Mélenchon já está em segundo lugar, passando de 19% que ele apresentava em sondagem divulgada no dia 31 de março para 22%, à frente de Le Pen, que caiu de 24,5% para 21,5% nesse mesmo período, enquanto Macron lidera com 24%, apresentando redução de 0,5% em face da pesquisa anterior.

O mais importante é que o candidato insubmisso amparou seu crescimento em uma grande mobilização social anti-neoliberal. Seu nome representa um movimento coletivo no qual as eleições não são um fim em si mesmo e sim, como afirma Gramsci, um processo no qual o voto é o resultado final de uma dinâmica mais ampla de disputas entre projetos políticos. Nesse sentido, Mélenchon – que por diversas vezes declarou se inspirar na esquerda latino-americana – teve sucesso em organizar um discurso coerente com uma ação que sempre combateu o arranjo neoliberal da União Europeia.

Sua plataforma fortalece os laços já presentes na cultura política francesa entre os valores da república e os direitos sociais. Seu desempenho primoroso nos debates eleitorais a partir dessas bases foi capaz de golpear a intolerância fascista de Le Pen pois ele também apresenta uma plataforma radical e, ao mesmo tempo, denuncia o neoliberalismo progressista de Macron, demonstrando que o programa do movimento En Marche é precisamente o que está destruindo a República francesa e que abre espaço para a ascensão do fascismo.

Uma possível vitória de Mélenchon terá um significado global para as esquerdas e para as lutas democráticas. Seu principal sentido estratégico será o de reposicionar as esquerdas no poder em um país central, com muito mais capacidade de organizar um projeto alternativo ao paradigma neoliberal do que, por exemplo, o Syriza possui governando a Grécia.

Ademais, trata-se de um retorno da França ao protagonismo dos processos políticos transformadores em escala internacional, lugar que ela ocupou desde o final do século XVIII – Gramsci dizia que toda a história do ocidente é uma consequência da revolução francesa, passando por todo o século XIX, quando Marx acompanhou in loco a primavera dos povos de 1848, iniciada em Paris, além da Comuna que governou a capital francesa por três meses em 1871. Essa centralidade revolucionária francesa reapareceu no século XX com o Maio de 1968, síntese de revolta estudantil e greve operária cujos ventos se espalharam pelo mundo afora e pode ressurgir agora, no século XXI, nos 100 anos da Revolução Russa, com uma nova esperança insubmissa que teima em apostar que outro mundo é possível.


Josué Medeiros é professor de Ciência Política e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

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