Por que a esquerda norte-americana fracassou? Por Breno Altman

No próximo ano, vamos celebrar o cinquentenário das rebeliões populares e estudantis que ameaçaram derrotar a ordem burguesa nos países capitalistas desenvolvidos.

Um dos epicentros desse processo foram os Estados Unidos, com a combinação da luta contra a supremacia racial, o movimento contra a guerra do Vietnam e a emergência das lutas feministas.

Ao contrário do que ocorria na Europa, no entanto, o papel da classe trabalhadora era muito limitado.

Depois de quase duas décadas de impressionante crescimento da economia e da renda salarial, a crise do sistema era pelas margens: a internalização dos conflitos imperialistas, o conservadorismo de valores, a herança da institucionalidade racista, as questões de gênero.

O Partido Comunista, ao contrário de seus congêneres italiano e francês, por exemplo, era uma força inexpressiva, isolada e infiltrada pelo FBI até o talo.

Era natural, nessas circunstâncias, que a resistência anticapitalista fosse forjada por movimentos autônomos, sem maior ligame entre si, expressando as contradições periféricas do sistema.

O desafio seguinte seria, como foi, estabelecer um caminho unitário que fundisse as reivindicações grupais em um projeto de poder e sociedade, ao mesmo tempo em que transitasse da periferia para o centro do sistema, conquistando a adesão do proletariado fabril e dos trabalhadoras em geral.
Nesse momento, que coincidiu com o ápice da rebelião contra-hegemônica, a chamada nova esquerda fracassou e foi soterrada pela reação conservadora, dirigida por Richard Nixon.

Um fracasso curioso, pois determinado de antemão. Nenhum dos principais movimentos envolvidos era capaz ou se propunha a superar sua própria identidade essencial, buscando um leito cultural, ideológico, político e organizativo comum.

Os Panteras Negras, a mais importante organização política daquele período, apesar de inspirada pelo amálgama das experiências cubana, chinesa e vietnamita, jamais se propôs verdadeiramente a ser um partido universal, capaz de criar um bloco histórico anticapitalista viável.

Dividido entre o nacionalismo negro (que chegava a propor a criação de uma república afro-americana a partir da unificação de seis estados sulistas) e o integracionismo revolucionário, os Panteras nunca foram mais que a expressão exclusiva dos setores mais radicalizados do movimento de emancipação negra, incluindo regras de filiação que excluíam qualquer militante de outros extratos étnicos.

O movimento de mulheres era ainda mais "identitário" e fragmentado, enquanto as distintas organizações surgidas na luta contra a guerra do Vietnã, especialmente o Weather Underground, acabaram definindo seu perfil como operadoras da solidariedade ao movimento negro.

As pautas e lógicas de identidade se sobrepunham ao esforço de construir um projeto unitário de esquerda para o país.

Bastante previsível que, superado aquele momento histórico, mesmo com a derrota imperialista no Vietnã, a ofensiva progressista nos EUA se transformasse, já nos anos 70, em inúmeras partículas cuja soma era significativa, mas paulatinamente incapazes de constituir uma alternativa de poder fora ou dentro dos partidos tradicionais.

Os democratas, com a vitória de Jimmy Carter em 1976, ao adotarem sua política de defesa dos direitos humanos, para além de mudar a narrativa da Guerra Fria, começaram a incorporar à sua estratégia de hegemonia os discursos de base identitária e seus programas desprovidos de antagonismo com o sistema.

O período Reagan-Bush representou forte retrocesso nessa empreitada, mas com Bill Clinton e, mais ainda, com Barack Obama, depois de novo intervalo de oito anos republicanos, consolidou-se a base do que Nancy Frazer chamou de "neoliberalismo progressista": a dominância do capital financeiro e do complexo bélico-industrial associada à incorporação de programas e setores que contemplam a superação dos "efeitos colaterais" do sistema, concebidos como deformações que podem ser corrigidas sem ruptura da ordem capitalista.

Os mesmos movimentos que, há 50 anos, tinham efetivo potencial revolucionário, ao se deixaram limitar por sua pauta de identidade, se transformaram em forças críticas, mas objetivamente auxiliares, do sistema hegemônico.

A vitória de Trump novamente empurra esses grupos para fora do sistema e talvez abra novo ciclo de possibilidades para a esquerda norte-americana, do qual a candidatura de Sanders pode ter sido um prenuncio.

Se mantiverem como princípio reitor sua identidade essencial, no entanto, provavelmente estarão condenados a repetir velhos fracassos.

A esquerda só costuma ter presente e futuro quando forja um projeto geral, vertebrado pelas forças sociais que controlam o mundo da produção, em condições de disputar o rumo da história com seus inimigos de classe.

E esse projeto não é ditado pela soma de identidades e representações, mas por uma resposta universal cujo elemento determinante, pois o único com capacidade de generalizar e unificar todas as pautas, é a organização da classe, da velha classe trabalhadora.

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