"Os governos do PT e a burguesia 'nacional'", por Marcelo Barbosa

Publicado originalmente no Blog Algo a Dizer.


Em tom de condenação, alguns setores do campo democrático-popular “acusam” os governos do PT e de seus aliados de promoverem, nos últimos 13 anos, uma suposta conciliação entre as forças do capital e do trabalho, em favor de um projeto de (limitado) crescimento econômico com (restrita) distribuição de renda. Por esse ponto de vista, a atual ruptura institucional que o país atravessa seria decorrente do esgotamento de uma “tática” pautada pela moderação de atitudes no campo da economia (obediência ao chamado tripé macroeconômico) e da política (alianças pela governabilidade). Diante de tal diagnóstico – bastante crítico, por sinal – caberia indagar, tendo em vista o muito de positivo que ocorreu no Brasil desde janeiro de 2003: em que medida teria sido possível fazer diferente do foi feito?

Sem querer assumir o papel de advogado das escolhas do PT – algumas bem equivocadas, a exemplo da reforma da previdência, em 2003 – considero útil a reconstituição (sintética que seja) das condições nas quais os chamados governos progressistas foram chamados a assumir o poder. Em particular, a conjuntura de cerco produzida à época. Um quadro composto por enormes dificuldades, entre as quais duas quase insuperáveis: o risco de uma moratória das dívidas interna e externa por conta do estado de insolvência do país após o consulado FHC somado à extrema fragilidade da sustentação de um presidente vitorioso nas urnas, mas sem maioria no Legislativo. Para agravar situação, a nova ordem precisava, ainda, no plano simbólico, corresponder às expectativas, geradas aqui e no exterior, pela a investida da esquerda ao poder numa região do Terceiro Mundo considerada quintal da dominação neoliberal.

Como responder a esse tipo de desafio? No início do primeiro governo Lula, essa dúvida frequentava a mente de todos aqueles, de alguma maneira, envolvidos nos esforços de consolidação do governo progressista. No caso, o repertório de escolhas preconizado pelas tendências mais à esquerda – inclusive aquelas com representação dentro do próprio PT – envolvia a valorização dos ensinamentos da tradição marxista, em especial, o rompimento e a denúncia das limitações da democracia parlamentar, com a correspondente ênfase na organização e mobilização dos setores de baixo da pirâmide social. Caminho esse recusado pela liderança petista, por várias razões. A mais expressiva delas, a hipoteca a ser quitada por esse tipo de opção, em particular a necessidade de garantir a sobrevivência da nova ordem por todo tipo de meios, inclusive aqueles completamente alheios à prática dos partidos de massa, como o recurso à violência revolucionária presente na opção pela luta armada ou a guerra civil.

Afastada a via do enfrentamento, incumbia a montagem de alianças não só políticas, mas também sociais. Para atender ao primeiro critério – após uma desastrada tentativa de uma coalizão com partidos de aluguel – surgiu a proposta de ação conjunta com o malsinado PMDB. E visando promover a sustentação do governo do PT e de seus aliados com a sociedade civil, em especial junto às entidades de representação empresarial, começou a se desenhar, especialmente a partir da posse de Guido Mantega na pasta da Fazenda, um diálogo com a chamada burguesia “nacional”.

Esse entendimento não buscou, ao contrário de certas interpretações, criar condições para a continuidade da aplicação, sob novas condições, das diretrizes neoliberais praticadas durante o consulado tucano. Tampouco o PT – ainda fortemente atado à sua origem no sindicalismo e nos movimentos sociais – tornou-se uma representação partidária do grande capital, como pretenderam alguns autores, abusando da dialética. Ao inverso, os termos da negociação entre as forças do capital e do trabalho, naquele dado momento histórico, visaram a adoção de uma orientação econômica alternativa á receita intitulada pelos analistas do “Consenso de Washington”.

Parceira – pouco confiável – na criação de um ambiente econômico livre da coerção neoliberal, a chamada burguesia “nacional”, por volta da primeira década do século XXI, havia perdido qualquer pretensão à autonomia que tivesse cultivado, no passado, fosse em 1930 ou no pré-64. Acostumara-se a ser tutelada: primeiro pelos militares durante a ditadura civil-militar e, em seguida, pelos rentistas da alta finança, no consulado tucano. Sem a menor cerimônia deslocara-se à direita no AI-5, para duas décadas depois, derivar ao centro, na promulgação da Constituição de 1988. Muito provavelmente, por isso, quando a esquerda triunfou nas eleições de outubro de 2002, as elites empresariais “nacionais” não endossaram as políticas de desestabilização do novo poder propostas pelo consórcio entre os bancos de investimento, mídia monopolista e das empresas transnacionais, a quem se poderia designar por burguesia “associada”. Isto é, o empresariado nacional preferiu “pagar para ver” e esperar a atitude dos (então) novos ocupantes do Planalto.

Coerente com a sua atitude de prudência – ditada pela necessidade de romper o isolamento político que lhe queriam impor – o PT e seus parceiros aceitaram a aproximação não só da parcela produtiva do capital brasileiro, como também de franjas do rentismo representadas pelos bancos de varejo. Foram complexos os protocolos referentes ao relacionamento entre classes antagônicas registrada no período. Não cabe aqui comentar em detalhe os itens dessa aliança, exceto um aspecto: entre 2005 e pelo menos 2011, os sucessivos governos progressistas asseguraram uma orientação ao capitalismo brasileiro bastante favorável à expansão das oportunidades de lucro das empresas nacionais, por via do crescimento do mercado interno e da massa salarial. Todos os setores produtivos – e de crédito – se beneficiaram dessa espiral, reforçando, pelo alto, a sustentação política de Lula e de Dilma. Contudo, áreas como a indústria naval, aeronáutica (Embraer) e a engenharia de projetos (em especial no ramo da exploração de petróleo), entre outros, se credenciaram a participar de algo mais do que coalizões de poder episódicas. Por seu poder de empuxo sobre a economia e capacidade de associação com o Estado, tais segmentos produtivos se destacaram pela capacidade de integração do progresso técnico ao processo produtivo e geração de mão de obra qualificada. Algo de precioso em países em desenvolvimento.

Olhando em retrospecto, a simbiose de interesses entre diversas classes ou frações de classes – inclusive o setor mais dinâmico da burguesia ­– encontraria seu melhor desempenho, é de se presumir, caso incluída no âmbito de um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de abarcar não apenas objetivos econômicos, mas sobretudo conquistas políticas e sociais. Essa agenda, apenas rascunhada pela liderança petista, jamais foi elevada à condição de arte-final. Possivelmente em face do seu potencial de conflito. No entanto, tal explicitação dos interesses da representação dos trabalhadores dentro da aliança era de fundamental importância, pois serviria de antídoto contra a doença mais frequente nos processos de frente comum entre capital e trabalho: a ilusão de classe.

Retornando à pergunta que nos trouxe aqui, ao que tudo indica, não consistiu num equívoco apostar numa política de alianças sociais amplas, capazes de integrar a “burguesia” na base de sustentação dos governos progressistas. Provavelmente, não havia outra atitude a ser tomada. A falha – pelo menos até o momento – foi não distinguir entre os diferentes setores das elites empresariais e seus distintos interesses – ora antagônicos, ora complementares – a um projeto nacional de desenvolvimento com distribuição de renda. É de se desejar que ainda haja tempo para uma correção de rumos.


Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de "A Nação se concebe por ciência e arte - três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX".

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