Texto belíssimo e reflexão mais que necessária do camarada e historiador Luis Antônio Simas

Este texto certeiro do camarada Luiz Antonio Simas é sobre uma livraria onde se promove encontros e fuzuês dos mais emocionantes, mas também sobre uma cidade e um país que sucumbem ao desatino especulativo e neoliberal.
Amanhã é a saideira do Al-farabi, o sebo, bar e restaurante que sucumbiu ao desvario especulativo do solo urbano no Rio de Janeiro olímpico. Em certo sentido, o Alfa foi tragado por uma lógica de cidade encarnada na figura do empreendedor ousado (nada contra empreendedores ousados honestos, diga-se) personificado pelo foragido homem de rapina Eike Batista. 
Ninguém representou mais o projeto do Rio de Janeiro como uma cidade para negócios, o balneário de megaeventos, que Eike "sempre ele" Batista. Bajulado por boa parte da imprensa e por políticos poderosos, citado como o empreendedor do futuro, laureado como homem do ano, ícone da ideia de que podemos ser bilionários sem culpa e o escambau, Eike foi elevado ao posto de carioca maior. 
A cidade do Eike é exatamente aquela em que os alfarabis sucumbirão mais cedo ou mais tarde. O comércio de rua virou uma espécie de ararinha-azul, em vias de extinção. Barbearias, açougues, livrarias, quitandas, botequins, floristas, lojas de macumba, aviários, marcenarias, etc., estão indo para o beleléu.A tendência é que esse comércio pequeno e mais afetivo seja engolido pelo gigantismo dos hortifrútis, salões de shopping, ‘megastores’, franquias de bares de grife, butique de carnes e similares. 
Cresci aprendendo que as coisas têm fundamento, e um lugar não é apenas a matéria bruta de seus alicerces. Uma cidade é feita das memórias, aspirações, sonhos, desilusões, conquistas, fracassos, alegrias e invenções da vida de inúmeras gerações que cruzaram suas ruas. Um lugar tradicional é, portanto, também o resultado das experiências intangíveis, matéria da memória acumulada pelos que ali experimentaram modos de vida e instâncias de sociabilidade. 
Boa parte da vitalidade da cultura do Rio de Janeiro veio da rua. Como escrevi em certa ocasião, entre pernadas, batuques, improvisos, corpos dançando na síncopa, gols marcados na várzea, gudes carambolando e pipas cortando os céus, a tessitura da cidade foi se desenhando nas artes de inventar na escassez. Foi assim que o carioca zuelou tambor, jogou capoeira, fez a sua fé no bicho, botou o bloco na avenida, a cadeira na calçada, o despacho na esquina, a oferenda na mata, a bola na rede e o mel na cachoeira. 
O pequeno comércio, o mercado de rua, jogava nesse time de sociabilidades mundanas.No fim das contas, é urgente que a cidade recupere o sentido da rua como um espaço de convivência e desaceleração do cotidiano. Uma rua que permita, no resíduo de seus acontecimentos miúdos, maneiras de viver que não sejam simplesmente receptivas ou reativas aos desígnios do mercado e do deus carro; mas que propicie o encontro entre as gentes da Guanabara. 
O Al-farabi era essa cidade dos encontros. O "sempre ele" é um foragido da polícia e os grandes negócios eram só rapinagem mesmo. 
Que cidade sobrará, que cidade teremos que inventar? Não sei, mas ela certamente sobreviverá e se reinventará, potente como sempre, a partir das frestas, das franjas, das mundanidades, dos cerzimentos e bordados miúdos e dos encontros nos escombros da megacidade que herdamos como o legado da rapina.

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