"O Brexit e a Falência do Reformismo" Por Marcelo Barbosa


O cientista político Adam Przeworski, após estudar o comportamento da esquerda moderada europeia por muitos anos, chegou à conclusão de que o reformismo como método de ação política, apesar do avanço de suas aquisições - em especial nos países ao norte do “Velho Mundo” - exibe uma fragilidade sem solução: a incapacidade de tornar suas conquistas sociais “progressivas”, “cumulativas” e “irreversíveis” e, com isso, promover o trânsito a uma sociedade sem classes.

O resultado do Brexit, isto é, da votação em favor da saída do Grã-Bretanha da União Europeia parece lhe dar razão, pois marca uma derrota no caminho da mais recente utopia da social-democracia, a integração regional. Para piorar, lança dúvidas quanto à sobrevivência das forças progressistas num território envelhecido sob o ponto de vista demográfico e receptivo a todo tipo de mensagens do nacionalismo de direita, quando não diretamente do fascismo.

Para a parcela da esquerda associada ao paradigma da revolução, o impasse atual da social-democracia não surpreende. Era previsto. Um fracasso anunciado desde a cisão no interior da Segunda Internacional (com Lenin e Kautsky, em campos opostos), durante a segunda década do século XX. Vem de longe, portanto, a desconfiança e o ceticismo de comunistas, trotskistas e outras frações, em face das tentativas dos herdeiros de Bernstein em domar a natureza destrutiva e desigual da formação social capitalista. Mais do que pavimentada de fracassos, porém a trajetória da esquerda moderada sugere, paradoxalmente, a presença de muitos êxitos.

Presente nas reflexões de Engels, sobretudo em seus últimos escritos, o objetivo de buscar o socialismo sem passar pelo transe de uma revolução - isto é, exclusivamente pela via eleitoral - tornou-se uma possibilidade em vista do crescimento das votações do Partido Social Democrata Alemão (SPD) no período que precede à eclosão da Primeira Grande Guerra. Por essa época, o mesmo tipo de oportunidade surgia – sendo rapidamente aproveitada - no horizonte dos trabalhistas ingleses e dos socialistas escandinavos. Entretanto, é com a derrota de Hitler que se firma o processo -, em todo subcontinente europeu - de decolagem das correntes situadas ao meio do caminho entre a democracia liberal e o socialismo leninista. Governando ora em alianças com a esquerda revolucionária (leia-se comunistas), ora com o centro, os social-democratas logo se veriam diante de um dilema: aprofundar reformas que levassem, no limite, ao fim do capitalismo (com todos os riscos inerentes a tal escolha) ou prosseguir “administrando” os efeitos mais perversos da reprodução desse sistema. Optaram pela segunda alternativa. A primeira de suas renúncias. 

Assim, em 1959, para efeitos simbólicos, no Congresso de Bad Godesberg, o SPD alemão retirou de seu programa a referência ao marxismo como método de análise e transformação da realidade.                       
Daí para frente, a construção de um Estado de Bem-Estar monopolizou o esforço dos setores da representação política que migraram do projeto de ruptura com o “sistema” para a adoção de um programa de reformas. Uma opção, por certo, bem sucedida. Pelo menos em seu início, dada a elevação dos padrões de vida classe trabalhadora dos principais países da Europa Ocidental. (Até que ponto a melhoria decorreu dos mecanismos de exploração econômica das periferias do capitalismo, nas regiões da Ásia, África e América Latina, constitui questão a ser tratada noutro espaço). 

Amparado sobre três escoras de sustentação, o modo de governar dos social democratas previa, entre muitas outras variantes: a) no plano econômico, a “nacionalização” das empresas dos setores estratégicos da produção, impedindo assim a formação de cartéis e b) em escala social, a garantia do exercício de direitos coletivos como o acesso público e gratuito à saúde, educação e à previdência. C) tributação progressiva sobre as fortunas e os ganhos de capital.

Por mais de dois decênios, entre o período abrangido entre o segundo pós-guerra  e o início dos anos 1970, o sonho de uma ampliação progressiva dos limites do Wellfare State povoou a imaginação de líderes como Willy Brandt, Olaf Palme, Harold Wilson, entre outros. Isso durou até o despertar de uma crise fiscal sem precedentes. Estreando na arena pública, os neoliberais entoavam seu mantra de sempre em favor do corte de investimentos sociais financiados via impostos. 

Menos populosas e mais homogêneas sob o ponto de vista social, as nações do extremo norte Europeu – entre as quais a Suécia, a Noruega e a Dinamarca – mantiveram o curso reformista anteriormente traçado. A opção dos países mais ao sul foi outra: a autodestruição gradual do modelo de sociedade posto em prática, até então, naqueles Estados. Em alguns lugares, como a Grã-Bretanha, a demolição esteve a cargo, principalmente dos conservadores. Noutras praças, como a França, os próprios socialistas se incumbiram - e ainda se incumbem - do serviço sujo. Com diferenças mais de superfície do que de essência, o programa radicava nas mesmas medidas: privatizações, desregulamentação financeira, contrarreformas previdenciárias e trabalhistas, entre outras medidas. 

Essa ofensiva de desmonte já se iniciara quando a Europa abraçou a proposta de unificação política e econômica, após a assinatura do Tratado de Maastrich. Deixando para trás um passado de guerras e desentendimentos, os Europeus ganhavam um recomeço e uma ferramenta para competir, em igualdade de condições, com os Estados Unidos e uma Ásia cada vez mais presente no cenário internacional. Indo além das potencialidades econômicas, chamava a atenção nesse ideal de integração regional as suas promessas de aproximação cultural e política entre nações tão díspares e a mesmo tempo tão próximas em termos históricos.  Sonhando acordada, a Europa pouco se deu conta da precariedade do seu experimento: unidade monetária sem unidade tributária e fiscal podia levar – como de fato se deu – à abertura de um abismo entre países ricos e pobres da Comunidade.  Serve de ilustração, há pouco menos de dois anos, a escolha da poderosa Alemanha por deixar a Grécia à própria sorte, sem condições de sequer pagar pensões e aposentadorias de idosos. O que diz muito sobre uma fantasia tornada decepção.

Em resumo, no balanço da atuação da social-democracia, nas últimas décadas, são sucessivas as renúncias em defender os avanços a que deu origem. Uma vocação de Saturno para devorar os próprios filhos, usando uma metáfora extraída da mitologia. 

Servindo, simultaneamente, de inspiração e advertência, o malogro da estratégia reformista não parece implicar a reprovação em bloco do seu ideário histórico. Por certo, prossegue na ordem do dia a aspiração a um Estado de Bem-Estar. Da mesma maneira, a refundação de uma esquerda socialista, na Europa, não se sustenta sem um forte compromisso com o tema da integração regional, conforme defendem interlocutores engajados como o ex-ministro da economia grego, Varoufakis, e o filósofo marxista, Slavoj Sizek. A recidiva no nacionalismo – nos termos do Brexit – sinaliza falsa solução para um problema, sem dúvida, mais complexo.

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