A ficção das reformas e os oráculos neoliberais, por Pedro Paulo Zahluth Bastos


A melhor definição do Brasil em 2016 veio talvez da atriz Fernanda Torres, que diz eleger “a arte de farol” para sair da escuridão do debate entre economistas. Ao comentar um debate em que estive no "Entre Aspas" de Mônica Waldvogel, Fernanda percebeu que a controvérsia aumentou na crise, quando “todas as alternativas falharam”: as “benesses do governo Dilma Rousseff” e “a cartilha falida de Joaquim Levy, que levara o País à depressão”.  

Não é bem assim. A cartilha de Levy, o corte do gasto público à beira da recessão, partia de um diagnóstico errado: que a “gastança” do governo reduziria a confiança dos empresários, que investiriam caso o gasto público e os salários caíssem.

Esta cartilha fracassou. A contração da demanda interna só não leva a uma recessão quando a economia mundial carrega uma pequena economia exportadora. Não somos assim e o comércio mundial tem desacelerado desde 2014, a ponto de crescer menos (1,7%) que o PIB mundial (2,2%) no ano passado.

Recessões derrubam a arrecadação e frustram o ajuste fiscal. Se o governo reagir com mais cortes, a renda das empresas despenca e força a redução de encomendas e empregados, o que reduz o pagamento de impostos. Se o governo não interrompe o círculo vicioso, o crédito se contrai mais e as empresas vão à falência, piorando ainda mais o PIB e a arrecadação tributária. É melhor a dívida pública aumentar para evitar uma depressão do que por causa dela.

A opção à depressão não é voltar às “benesses” de Dilma. É cortar taxas de juros e aumentar o investimento público.

Elevaram, ao contrário, os juros “na marra”. No segundo ano da depressão, a Selic real acima de 9% é um absurdo, talvez três vezes acima do necessário. Por isso os juros custaram quase 9% do PIB em 2015, contra 1,1% do déficit primário provocado pela recessão, mesmo com corte de 3% do gasto, dada a queda da arrecadação.

O primeiro governo Dilma elevou o gasto primário menos que FHC e Lula, mas aumentou subsídios em 23,8% ao ano. O investimento público anual caiu 1,1%. Além disso, 2011 viu um dos maiores ajustes da história, que impulsionou a queda do PIB nos anos seguintes: em valores reais de 2015, o superávit primário aumentou 56 bilhões de reais entre 2010 e 2011, ou 1,28% do PIB, enquanto o BC contraía o crédito.

Fracassou, porém, a esperança de as empresas investirem com a demanda em desaceleração, só por terem mais subsídios. Levy, por sua vez, esperava que elas investissem com menos subsídios e corte de 37% do investimento público. Deu no que deu. Os neoliberais precisam de novos espantalhos, pois nem a recessão começou em 2014 (diz o IBGE), nem o aumento do investimento público foi o motivo.

A PEC 55 transforma em austeridade permanente o que seria ajuste rápido. Não é verdade que preserva o gasto real, pois o corrige pela inflação do consumo (IPCA) e não pelo deflator implícito do PIB (DIP), que retrata o gasto público. A diferença entre ambos foi de 33% entre 1996 e 2015.

Suponhamos que por milagre o DIP passe a acompanhar o IPCA. Em decorrência, o gasto per capita cairá muito, pois a população deve aumentar em 20 milhões de habitantes nos próximos 20 anos. A educação perde 13 bilhões de reais em 2017, pois o gasto vai ao piso legal. Nos primeiros dez anos, o valor per capita na educação cai de 320 para 225 reais. Na saúde, de 550 para 500 se o custo médico-hospitalar acompanhar o IPCA. Nos últimos dez anos, ele cresceu, no entanto, mais que o dobro, o que prenuncia cortes trágicos.

Tampouco se pode vender a PEC da reforma da previdência como um antídoto contra os cortes da PEC 55. Trabalhar até morrer não é só uma palavra de ordem. Basta lembrar que a população mais pobre tem em média expectativa de vida inferior a 65 anos e não consegue contribuir 25 anos por não ter sempre um emprego formal. No fundo, as duas PECs punem pobres e protegem rentistas, sonegadores e privilegiados pela estrutura tributária regressiva.

Os defensores da PEC pedem paciência para imitarmos a Espanha, que esperou cinco anos para voltar a crescer, passa por um desastre social e ainda não recuperou o PIB de 2008. Isso deve ocorrer em 2019, e mais ainda para a renda per capita, a não ser que a população caia mais rápido. Esquecem que Levy previa em janeiro de 2015 uma “recessão de um trimestre”. E que os economistas do mercado financeiro que pedem paciência com a tragédia de um triênio faziam coro em dezembro de 2014: “com Levy, a economia vai crescer 0,8% em 2015”.

“Só o tempo já vivido não nos deixa errar”, alertava o Corifeu na Antígona de Sófocles. Sem tomar a arte nem o povo como farol, os economistas que propuseram a política pró-cíclica em 2015 ainda não vieram a público reconhecer o fracasso de suas previsões e admitir uma mudança de curso. “Pode haver ameaças nos grandes silêncios”, ensinava o mensageiro em Antígona. Os oráculos neoliberais não moram em Delfos, mas sua tragédia é maior que a de Tebas e sobrevive à verdade do tempo. 



Pedro Paulo Zahluth Bastos é Professor Associado (Livre-Docente) do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON) da Unicamp e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica.

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